03 julho 2019

juan vicente piqueras / instruções para sair do deserto



Para sair deste íntimo deserto
é preciso saber que não tem saída.

Esperar, caminhar, desesperar,
cultivar a paciência até perdê-la
quando todo tu sejas já pura paciência.

É preciso sentir que o deserto és tu mesmo,
recordar com irónica ternura
aqueles dias só agora felizes
em que tivemos fé nas miragens.

Já não há mais coração do que aquele que ardeu.

Não há maneira nem água nem amanhã
nem oriente nem ocidente. Não há estrelas
que te digam onde, que te indiquem
messias ou saídas que não existem.

Até que um dia encontres
diante de ti as tuas pegadas de outros anos
e compreendas que chegaste ao teu passado,
que já estás onde estavas,
que morrerás de sede.
                                         Olha na areia
as sombras dos abutres que julgavas gaivotas.




juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019






02 julho 2019

paul éluard / a perder de vista



NO SENTIDO DO MEU CORPO


Todas as árvores com todos os ramos com todas
                                                                      [as folhas
A erva na base dos rochedos e as casas
                                                               [amontoadas
Ao longe o mar que os teus olhos banham
Estas imagens de um dia e outro dia
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A transparência dos transeuntes nas ruas do acaso
E as mulheres exaladas pelas tuas pesquisas
                                                                  [obstinadas
As tuas ideias fixas no coração de chumbo nos
                                                              [lábios virgens
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A semelhança dos olhares consentidos com os
                                                [olhares conquistados
A confusão dos corpos das fadigas dos ardores
A imitação das palavras das atitudes das ideias
Os vícios as virtudes tão imperfeitos

O amor é o homem inacabado.



paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977






01 julho 2019

octavio paz / a ponte



Entre instante e instante,
entre eu sou e tu és,
a palavra ponte.

Entras em ti mesma
ao entrar nela:
como um anel
o mundo fecha-se.

De uma margem à outra
há sempre um corpo que se estende,
um arco-íris.

Eu dormirei sob os seus arcos.


octavio paz
antologia poética
salamandra (1958-1961)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984







30 junho 2019

carlos edmundo ory / elegia da minha mão



Olho a minha mão: é antiga
como uma planta viva
como uma gota última
de mármore
Olho a minha própria mão distribuída
pelos sítios mais tristes
… nas ocas madeiras do olvido
mão que um pouco de poalha de primeva
luz secou
Minha mão como uma
decepada mão sobre a terra
como uma obscura mão
de ninguém… de outro homem
não minha… de um louco
que a abandonou naquela mesa
… de um morto bem morto
e a quem falta a mão… ou de um homem muito novo
que a deixou esquecida sobre um corpo
de mulher



carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997







29 junho 2019

josé pascoal / eco



Sentes uma vontade terrível de gritar
De maneira que o eco seja ouvido
Dentro de ti.



josé pascoal
ponto infinito
editorial minerva
2018







28 junho 2019

josé saramago / opção



Antes arder ao vento como um archote
Num deserto de sombras e de medos
Que ser dócil rima do teu mote,
Um morrão de cigarro nos teus dedos.



josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018






27 junho 2019

luís veiga leitão / os grandes amigos



São como as árvores
de grande porte,
quando elas partem
as raízes ficam
aquém da morte

1987



luís veiga leitão
a bicicleta e outros poemas
associação dos jornalistas e
homens de letras do porto
2012








26 junho 2019

joão miguel fernandes jorge / íamos por onde uma erva pudesse crescer



Íamos por onde uma erva pudesse crescer.
Nos cantos da casa, nos mais remotos, onde
cai a chuva e não se sabe onde um dia a
criança deixou pão bolorento depois seco depois cinzas.

Esses remotos sítios das formigas
hei-de entretê-los com pedras
e desbotadas flores de papel
páginas cheias de ninguém.



joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019







25 junho 2019

r. lino / nove instantâneos do sul



.segundo.

que sonho têm os pássaros,
luminoso mar,
navegados os dias?


circunstâncias do sol,
vão as manhãs
as folhas dos pessegueiros
os caroços
e as frutas sumarentas…



r. lino
nove instantâneos do sul
políptico
companhia das ilhas
2016





24 junho 2019

jacques prévert / paris at night





Três fósforos um a um acesos na noite
O primeiro para ver o teu rosto inteiro
O segundo para ver os teus olhos
O terceiro para ver a tua boca
E toda a escuridão para recordar tudo isso
Apertando-te nos braços.




jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007






23 junho 2019

camilo pessanha / singra o navio



Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
— Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara.
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
— Ó fulgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...


camilo pessanha
clepsidra
1920







22 junho 2019

saint-john perse / estrofe



[…]

«E como o sal está no trigo, o mar em ti no seu princípio, a coisa em ti que foi do mar, deu-te esse sabor a mulher ditosa de quem nos aproximamos… E o teu rosto está derrubado, a tua boca é fruto a consumir, no casco do barco, dentro da noite. Livre o meu alento na tua garganta, e o remontar por todos os lados dos lençóis do desejo, como nas marés de lua próxima, quando a terra fêmea se abre ao mar salaz e dócil ornado de bolhas, até aos seus pântanos, às suas maremas, e o mar alto nas pastagens faz o seu ruído de nora, a noite está cheia de eclosões…

[…]


saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016






21 junho 2019

federico garcia lorca / rosa mutável




Ao abrir pela manhã
rubra como sangue está.
O orvalho não a toca
com medo de se queimar.
Aberta à luz do meio-dia
é dura como um coral.
O sol assoma nos vidros
só para a ver fulgurar.
Quando nos ramos começam
os pássaros a cantar
e quando a tarde desmaia
nas violetas do mar,
torna-se branca, tão branca
como uma face de sal.
E logo que a noite toca
brando corno de metal
e as estrelas avançam
enquanto se esconde o ar,
no risco fino da sombra
começa-se a desfolhar.



federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013