05 março 2019

roland barthes / a espera




6.
Um mandarim estava apaixonado por uma cortesã. «Serei vossa, diz ela, quando tiverdes passado cem noites à minha espera, sentado num tamborete, no meu jardim, debaixo da minha janela.» Mas, à nonagésima nona noite, o mandarim levantou-se, pôs o tamborete debaixo do braço e foi-se embora.


roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017











04 março 2019

daniel faria / guarda a manhã




Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar

Porque tu és o meio da manhã
O ponto mais alto da luz
Em explosão



daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998









03 março 2019

vicente guedes / muito longe



Era naquele país, que vós não desconheceis, em que sempre se sente, em torno da nossa alma, o cair de folhas amarelas. Sabeis decerto que nessa (…) abandonado há lagos mais estagnados e silenciosos do que os outros lagos, e que à superfície deles bóiam, como que permanentemente, verdes folhas espalmadas, mais vulgares de ver ao pé das margens, onde se (...) entre as algas quebradas sonolentamente e como que adormecidas. É o país, decerto que vos não é estranho, em que no pôr do Sol, as horas desaparecem e o ruído do passo do tempo e os próprios sons da natureza — o zumbir de instantes e cantos de aves e o murmúrio fresco das árvores vagamente alteradas de encontro ao céu pálido nas minúcias dos seus contornos. Neste país bem o sabeis, nada disto existe. Há árvores mas não se movem Rios, riachos (...) que sejam de água corrente — não os há ali. Tudo é parado e sonolento. O sol não nasce ali, nem é nunca meio-dia ou noite naquela terra. O pôr do Sol — sumido já o sol abaixo do horizonte acima do qual nunca esteve — é eterno nesse país. De sobre os lagos escuros e esquecidos não sai nunca a vaga luz saudosa que levemente os transfigura. Não há ali ruído, nem movimento, nem vida. Bem sabeis que as próprias árvores e ervas (...) não foram nunca sementes ou (...), mas sempre assim silenciosamente como são. Movimento nenhum? Não, há um só. Ruído nenhum? Não, há um apenas. É o cair eterno das folhas amarelas no pálido sossego eterno.

Debalde queremos poder sonhar ninfas ou faunos entre aquelas árvores. Não as houve nunca naquela terra. Como as poderia haver? Não seria preciso que o vento acordasse, os rios começassem a correr, e as ervas fossem verdes e as folhas cessassem de cair [...]: folhas que não se vêem cair mas se sente apenas... fechados os olhos sobre aquela terra. Abertos não se vêem nem se ouvem — vêem-se apenas as folhas caídas, amarelentas no chão.

Sim; à vista nada se move ou vive; ao ouvido apenas o que deve ser folhas caindo amarelentas decerto, naquele chão outonal que nunca foi da primavera.

Sim, sim. Deve haver mais. Há sem dúvida um vento ligeiro, onde as folhas vêm caindo, caídas, arrastadas, paradas, revolvidas e tresmalhadas. Mas ao abrir os olhos não se vê isto. Apenas os lagos quedos e vagos de luz, e sobre distantes montanhas silenciosas o sossego eterno do dia permanentemente moribundo.

Foi esta a terra onde eu nasci.

Chamo-me o Tédio — já o deveis saber.

Nasci nessa terra sim, mas não sei porquê, nem como, nem me importa saber. Basta-me que tenha eternamente esta nostalgia dessa pátria. O mais — nada sei. Sei que nasci nessa terra, mas não me lembro de ali ter vivido nunca. Ao pé daqueles lagos nunca decerto eu estive. Aquele pôr do Sol, lembro-me dele mas não o conheço... E o cair de folhas amarelas no som? Não sei. Não o vi nunca, mas ouvi-o, e onde havia de ser senão nessa terra quando eu dormia nem sei mesmo se nela se longe dela, se de todo dormindo, se quase dormindo apenas.

Conheceis decerto esta terra por minha. Sentis talvez como eu a nostalgia dela; e como eu talvez não desejais conhecê-la ou vê-la. Vejo-a sempre e dói-me o vê-la mas não a quero, e desejo não a ver. Mas lembro-me sempre dela; não ouso querer esquecê-la.

Ainda que silenciosa e inerte ela não é sossegada. Nada nos diz de novo. E mais quieta do que uma casa deve ser. Parece um universo morto; uma terra a pensar; há ali pouco e muito para a alma, de menos e de mais para o sonho.

Inclinai a cabeça sobre a mão. Pensai quanto é desejável para não viver nela esta terra estranha onde eu nasci. Não o podeis esquecer, nem querer, nem de qualquer modo sentir para com ela. Desejais como eu não é verdade? — dormir e não saber do mais. Mas, como eu, não podeis dormir. Meditais comigo eternamente naquela paisagem eterna. Fechemos os olhos ao menos; ouçamo-lo, o cair leve das folhas amarelas no entenebrecido chão. Como elas caem e rastejam em torno da nossa alma! Fechados ou abertos os olhos, elas caem sempre, bem ouvidas ou mal, ternas ou menos ternas. No mais escuro do fechar os olhos ouve-se leve o tal vento que as arrasta.

Que tristeza a minha, por ter nascido nessa terra; e a vossa também, por ali não ter nascido!

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990






02 março 2019

liliana s. ribeiro / paisagem




Aqui me sento ao teu lado
tu do meu
embora nenhum fale
e por vezes calemos hesitações urgentes

atiramos preces ao mar

que a vida seja boa
o céu
flanco um do outro



liliana s. ribeiro
eufeme
magazine de poesia
n.º 10 janeiro /março 2019






01 março 2019

paul éluard / a cabeça contra as paredes




                                                    (fragmento)


Eram apenas uns poucos
Em toda a terra
Cada um se julgava só
Cantavam tinham razão
Para cantar
Mas cantavam como quem saqueia
Como quem se mata

Noite húmida surrada
Iremos nós suportar-te
Mais tempo ainda?
Não vamos nós sacudir
Tua evidência de cloaca
Não esperaremos por uma manhã
Feita à medida
Queríamos ver claro nos olhos dos outros
As suas noites de amor esgotadas
Eles não sonham senão em morrer
As suas belas carnes abandonam-se
Pavanas a rodar no coração

Abelhas colhidas no seu mel
Eles ignoram a vida
E a nós tudo nos dói.



paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977






28 fevereiro 2019

elio pecora / atravessar a dor



Atravessar a dor
como um quarto escuro
contando os passos, os fôlegos.
Procurar no fechado
um buraco, uma fenda,
para que não seja memória
mas presença
naquela ausência de luz.

À saída saber
que é preciso voltar.
E a alegria ainda
à espera do assalto.



elio pecora
poemas escolhidos
simetrias (2007)
tradução de simoneta neto
quasi
2008








27 fevereiro 2019

ana hatherly / príncipe




Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito
tudo era apenas lábios pálpebras
intumescências cobrindo o corpo de flutuantes
volteios de palpitações trémulas adejando
pelo rosto beijava os teus olhos por dentro
Beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão
sobre o meu pensamento corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me



ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980







26 fevereiro 2019

charles simic / bar à beira da estrada




As notícias do mundo são sempre velhas.
Nunca nada de novo acontece,
Os inocentes são chacinados
Enquanto um tipo na televisão arranja desculpas

E o barman nos volta a encher os copos
A mão esquerda fechada atrás
Das costas arqueadas, mordida
Por um cão ou segurando um cassetete.

As nossas guerras, parece, não vão bem.
Um senador foi apanhado a tentar engatar
Numa casa de banho num aeroporto
E vêm aí neve e chuva.



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018






25 fevereiro 2019

herberto helder / poemacto



IV
As vacas dormem, as estrelas são truculentas,
a inteligência é cruel.
Eu abro para o lado dos campos.
Vejo como estou minado por esse
puro movimento de inteligência. Porque olho,
rodo nos gonzos como para a felicidade.
Mais levantadas são as arbitrárias ervas
do que as estrelas.
Tudo dorme nas vacas.
Oh violenta inteligência onde as coisas
levitam preciosamente.
O campo bate contra mim, no ar onde elas
dormem —
vacas truculentas, estrelas
apaziguadas estrelas — e a inteligência, afinal
selvajaria celeste sobre a minha respiração.
Eu penso mudar estes campos deitados, criar
um nome para as coisas.
Onde era estábulo, na doce morfologia,
fazer
com que as estrelas mugissem e as poeiras
ressuscitassem.
Dizer: rebentem os taludes, enlouqueçam as vacas,
que minha inteligência se torne pacífica.
Unir a ferocidade da noite ao inebriado
movimento da terra.
Posso mudar a arquitectura de uma palavra.
Fazer explodir o descido coração das coisas.
Posso meter um nome na intimidade de uma coisa
e recomeçar o talento de existir.
Meto na palavra o coração carregado de uma coisa.
Eu posso modificar-me.
Ser mais alto que a corrupção.

Campos abanados pelo silêncio. Pessoa como eu
mergulhando no que é o obscuro
das vacas dormindo.
Estrelas giradas, de repente mortas
sobre mim. Ah, penso alterar tudo,
recuperar agora as colinas do mundo.
Falando de amor, eu falo
do génio destruidor. Falo que é preciso
criar a velocidade das coisas.
Que é preciso caçar flores, golpear estrelas,
meter o sono nas vacas, desentranhar-lhes
o sono,
dar o sono às estrelas.
Enlouquecer.
Que é preciso recriar o criar, meu Deus, ser truculento.
Ser simples e não o ser.
Abandonar os campos, rodopiar
a inteligência, a crueldade.
Abro a porta para não esquecer esta
absurda tarefa.
Esta tão particular necessidade.
Porque agora deixei totalmente de ser puro.
Levanto-me para dar de comer quentes
estrelas às vacas.
Sou tão puro, meu Deus, tão truculento.
É preciso principiar.

Digo baixo o nome. Corto os pés das estrelas.
Deixá-las na sua seiva estremecente.
Digo baixo que é talento envenená-las.
Minha alegria furibunda é a pureza do mundo.
E é tão belo agarrar com os ossos
que há dentro das mãos
na ponta de um nome, e desdobrá-lo.
Arrancar essa alma apertada.
Porque eu sei o estilo de uma alma
precisamente original.
Corto as estrelas das vacas.
Trago candeias para os campos extraordinários.

Porque eu bato na porta com meu júbilo furioso.
O amor acumula-se.
É para dar o ardor em doce dissipação.
Deus não sabe e sorri, esmigalhado
contra o muro humano.
Respiro, respiro. As coisas respiram.
Esta oferta masculina vocifera na treva.
Criar é delicado.
Criar é uma grande brutalidade.
Porque eu sou feliz. Durmo
na obra.
Só eu sei que a loucura minou este ser
inexplicável
que me estende nas coisas.
A loucura entrou em cada osso,
e os campos são o meu espelho.
Esta imagem perfeita arromba os espelhos.
Os nomes são loucos,
são verdadeiros.


herberto helder
poesia toda
poemacto
assírio & alvim
1996






24 fevereiro 2019

ricardo reis / domina ou cala. não te percas, dando




Domina ou cala. Não te percas, dando
Aquilo que não tens.
Que vale o César que serias? Goza
Bastar-te o pouco que és.
Melhor te acolhe a vil choupana dada
Que o palácio devido.

27-9-1931



fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946








23 fevereiro 2019

joão esteves / a cor da esperança





A ambiguidade do silêncio é como o amarelo de um semáforo: só cai para o impedimento, nunca para a livre passagem. Nunca vi semáforos a mudarem de amarelo para verde, mas sempre de amarelo para vermelho. Ver um sim no silêncio é passar com o amarelo: coisa arriscada, às vezes até um pouco forçada, condescendência de mulher perante o desejo do homem. Já um não augura maiores possibilidades de sucesso: poderá demorar muito, mesmo até uma vida, mas quando mudar será certamente para a cor da esperança.


joão esteves
do lado de fora
editora urutau
2018 




22 fevereiro 2019

jorge roque / estes poetas eruditos




Não entendo estes poetas eruditos. Escrevem poemas com teorias da poesia, usam conceitos da retórica, hermenêutica, linguística, gostam de metaliteratura e auto-referenciação, filosofia (como não), mas apenas das mais contemporâneas referências. Concretizam com elevada abstracção temáticas abordadas em seminários e congressos, matérias complicadas que eles, fluentes, vertem em alegorias, metáforas, hipálages, sinédoques. Praticam, além disso, intertextualidade, hipertextualidade, transtextualidade (a que não gostam de chamar comércio e propaganda, embora seja disso exactamente que se trata), e cultivam aquilo a que se chama estilo, sabem vestir o manequim da literatura tão bem quanto a si mesmos. Impressionante é a cultura que exibem, cinco minutos bastam para se comprovar que leram quase todos os grandes livros (quase é aqui eufemismo ou antífrase, subtilmente litote, ironia não é decerto), isso mesmo é manifesto em todos os planos da autoria que vão da obra à entrevista, sem esquecer a rádio e a televisão e, com abnegada dedicação, as feiras e os festivais, nacionais e internacionais. Que acrescentar? Somos todos pequenos ao pé deles, não adianta iludi-lo. Aquilo é discurso de gente que sabe o que nós nem entrevemos e somente eleitos podem alcançar. Adivinha-se-lhes o contido sorriso envolvido numa calma superior, uma aura de perscrutação que o olhar profundo amplia. O enigma é que nem esse sorriso, nem essa calma, nem a perscrutação, nem o olhar, nem sobretudo o que por detrás se agita e comanda, são algumas vezes escritos. Em vez disso, lá vem outra figura de estilo, outra teoria implícita, outro reenvio. Nada tenho contra estes poetas eruditos. Mas cansa-me ler e não perceber, consultar dicionários, enciclopédias, monografias da especialidade, e quando por fim percebo, ou julgo que percebo, continuar sem perceber onde queriam chegar com tão elaborado dizer. Bem sei, não sou propriamente um erudito. Faltar-me-á até um pouco de ambição (dessa que o pragmatismo dirige), e perderei tempo que não devia em esforços e minúcias difíceis de explicar. Seja como for, escapa-me o sentido. Querem ser amados? É o que todos queremos. Querem ser reconhecidos? Absolutamente justo. Pergunto-me apenas se será para tanto preciso ser-se erudito? Nada tenho contra estes poetas eruditos. Mas a vida, estou em crer, é coisa bem mais simples. Nela escrevo a tinta morte a verdade de um só homem. Letra a letra, cada traço, cada ponto, deste rosto em que me sou.



jorge roque
o martelo
edição do autor
2012







21 fevereiro 2019

fernando assis pacheco / estrada de elvas


  

Cilindros ao longo do asfalto
esmagam a tua memória sem sentido.
É o Inverno em Borba, não recordo
quase nada de ti. Vejo o trabalho
destes homens com suas pás, seus maços,
paro um momento à beira deles
para acender um cigarro. «Compadre,
tenho um irmão na Angola!» E nada sabem
do gelo que nascia em tua boca.

Levo outro amor mais claro do que o teu.
Não te recordo já: talvez morresses
antes de ser memória, chuva, e a noite.



fernando assis pacheco
cuidar dos vivos (1963)
a musa irregular
tinta-da-china
2019