Era naquele país, que vós não desconheceis, em que
sempre se sente, em torno da nossa alma, o cair de folhas amarelas. Sabeis
decerto que nessa (…) abandonado há lagos mais estagnados e silenciosos do que
os outros lagos, e que à superfície deles bóiam, como que permanentemente,
verdes folhas espalmadas, mais vulgares de ver ao pé das margens, onde se (...)
entre as algas quebradas sonolentamente e como que adormecidas. É o país,
decerto que vos não é estranho, em que no pôr do Sol, as horas desaparecem e o
ruído do passo do tempo e os próprios sons da natureza — o zumbir de instantes
e cantos de aves e o murmúrio fresco das árvores vagamente alteradas de
encontro ao céu pálido nas minúcias dos seus contornos. Neste país bem o
sabeis, nada disto existe. Há árvores mas não se movem Rios, riachos (...) que
sejam de água corrente — não os há ali. Tudo é parado e sonolento. O sol não
nasce ali, nem é nunca meio-dia ou noite naquela terra. O pôr do Sol — sumido
já o sol abaixo do horizonte acima do qual nunca esteve — é eterno nesse país.
De sobre os lagos escuros e esquecidos não sai nunca a vaga luz saudosa que
levemente os transfigura. Não há ali ruído, nem movimento, nem vida. Bem sabeis
que as próprias árvores e ervas (...) não foram nunca sementes ou (...), mas
sempre assim silenciosamente como são. Movimento nenhum? Não, há um só. Ruído
nenhum? Não, há um apenas. É o cair eterno das folhas amarelas no pálido
sossego eterno.
Debalde queremos poder sonhar ninfas ou faunos
entre aquelas árvores. Não as houve nunca naquela terra. Como as poderia haver?
Não seria preciso que o vento acordasse, os rios começassem a correr, e as
ervas fossem verdes e as folhas cessassem de cair [...]: folhas que não se vêem
cair mas se sente apenas... fechados os olhos sobre aquela terra. Abertos não
se vêem nem se ouvem — vêem-se apenas as folhas caídas, amarelentas no chão.
Sim; à vista nada se move ou vive; ao ouvido apenas
o que deve ser folhas caindo amarelentas decerto, naquele chão outonal que
nunca foi da primavera.
Sim, sim. Deve haver mais. Há sem dúvida um vento
ligeiro, onde as folhas vêm caindo, caídas, arrastadas, paradas, revolvidas e
tresmalhadas. Mas ao abrir os olhos não se vê isto. Apenas os lagos quedos e
vagos de luz, e sobre distantes montanhas silenciosas o sossego eterno do dia
permanentemente moribundo.
Foi esta a terra onde eu nasci.
Chamo-me o Tédio — já o deveis saber.
Nasci nessa terra sim, mas não sei porquê, nem
como, nem me importa saber. Basta-me que tenha eternamente esta nostalgia dessa
pátria. O mais — nada sei. Sei que nasci nessa terra, mas não me lembro de ali
ter vivido nunca. Ao pé daqueles lagos nunca decerto eu estive. Aquele pôr do
Sol, lembro-me dele mas não o conheço... E o cair de folhas amarelas no som?
Não sei. Não o vi nunca, mas ouvi-o, e onde havia de ser senão nessa terra
quando eu dormia nem sei mesmo se nela se longe dela, se de todo dormindo, se
quase dormindo apenas.
Conheceis decerto esta terra por minha. Sentis
talvez como eu a nostalgia dela; e como eu talvez não desejais conhecê-la ou
vê-la. Vejo-a sempre e dói-me o vê-la mas não a quero, e desejo não a ver. Mas
lembro-me sempre dela; não ouso querer esquecê-la.
Ainda que silenciosa e inerte ela não é sossegada.
Nada nos diz de novo. E mais quieta do que uma casa deve ser. Parece um
universo morto; uma terra a pensar; há ali pouco e muito para a alma, de menos
e de mais para o sonho.
Inclinai a cabeça sobre a mão. Pensai quanto é
desejável para não viver nela esta terra estranha onde eu nasci. Não o podeis
esquecer, nem querer, nem de qualquer modo sentir para com ela. Desejais como
eu não é verdade? — dormir e não saber do mais. Mas, como eu, não podeis
dormir. Meditais comigo eternamente naquela paisagem eterna. Fechemos os olhos
ao menos; ouçamo-lo, o cair leve das folhas amarelas no entenebrecido chão.
Como elas caem e rastejam em torno da nossa alma! Fechados ou abertos os olhos,
elas caem sempre, bem ouvidas ou mal, ternas ou menos ternas. No mais escuro do
fechar os olhos ouve-se leve o tal vento que as arrasta.
Que tristeza a minha, por ter nascido nessa terra;
e a vossa também, por ali não ter nascido!
s.d.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990