22 fevereiro 2019

jorge roque / estes poetas eruditos




Não entendo estes poetas eruditos. Escrevem poemas com teorias da poesia, usam conceitos da retórica, hermenêutica, linguística, gostam de metaliteratura e auto-referenciação, filosofia (como não), mas apenas das mais contemporâneas referências. Concretizam com elevada abstracção temáticas abordadas em seminários e congressos, matérias complicadas que eles, fluentes, vertem em alegorias, metáforas, hipálages, sinédoques. Praticam, além disso, intertextualidade, hipertextualidade, transtextualidade (a que não gostam de chamar comércio e propaganda, embora seja disso exactamente que se trata), e cultivam aquilo a que se chama estilo, sabem vestir o manequim da literatura tão bem quanto a si mesmos. Impressionante é a cultura que exibem, cinco minutos bastam para se comprovar que leram quase todos os grandes livros (quase é aqui eufemismo ou antífrase, subtilmente litote, ironia não é decerto), isso mesmo é manifesto em todos os planos da autoria que vão da obra à entrevista, sem esquecer a rádio e a televisão e, com abnegada dedicação, as feiras e os festivais, nacionais e internacionais. Que acrescentar? Somos todos pequenos ao pé deles, não adianta iludi-lo. Aquilo é discurso de gente que sabe o que nós nem entrevemos e somente eleitos podem alcançar. Adivinha-se-lhes o contido sorriso envolvido numa calma superior, uma aura de perscrutação que o olhar profundo amplia. O enigma é que nem esse sorriso, nem essa calma, nem a perscrutação, nem o olhar, nem sobretudo o que por detrás se agita e comanda, são algumas vezes escritos. Em vez disso, lá vem outra figura de estilo, outra teoria implícita, outro reenvio. Nada tenho contra estes poetas eruditos. Mas cansa-me ler e não perceber, consultar dicionários, enciclopédias, monografias da especialidade, e quando por fim percebo, ou julgo que percebo, continuar sem perceber onde queriam chegar com tão elaborado dizer. Bem sei, não sou propriamente um erudito. Faltar-me-á até um pouco de ambição (dessa que o pragmatismo dirige), e perderei tempo que não devia em esforços e minúcias difíceis de explicar. Seja como for, escapa-me o sentido. Querem ser amados? É o que todos queremos. Querem ser reconhecidos? Absolutamente justo. Pergunto-me apenas se será para tanto preciso ser-se erudito? Nada tenho contra estes poetas eruditos. Mas a vida, estou em crer, é coisa bem mais simples. Nela escrevo a tinta morte a verdade de um só homem. Letra a letra, cada traço, cada ponto, deste rosto em que me sou.



jorge roque
o martelo
edição do autor
2012







21 fevereiro 2019

fernando assis pacheco / estrada de elvas


  

Cilindros ao longo do asfalto
esmagam a tua memória sem sentido.
É o Inverno em Borba, não recordo
quase nada de ti. Vejo o trabalho
destes homens com suas pás, seus maços,
paro um momento à beira deles
para acender um cigarro. «Compadre,
tenho um irmão na Angola!» E nada sabem
do gelo que nascia em tua boca.

Levo outro amor mais claro do que o teu.
Não te recordo já: talvez morresses
antes de ser memória, chuva, e a noite.



fernando assis pacheco
cuidar dos vivos (1963)
a musa irregular
tinta-da-china
2019





20 fevereiro 2019

joão luís barreto guimarães / decepção à regra




Sentar-me e
ver os outros passar é o
meu exercício favorito. Entretém.
Não esgota.
É gratuito. Neste meu jogo-do-não
são os outros que passam
(é aos outros que reservo a tarefa
de passar). Lavo daí os pés.
Escrevo de dentro da vida.
Pode até parecer que assim não
chego a lugar algum mas também quem
é que quer ir
ao sítio dos outros?



joão luís barreto guimarães
luz última (2006)
o tempo avança por sílabas
poemas escolhidos
quetzal
2019







19 fevereiro 2019

antónio franco alexandre / demoro-me no espaço




demoro-me no espaço
que as portas abrem, antes
de misturar as árvores e os

dias, as duras
maçãs redondas,
o percurso da água junto

ao teu nome incompleto,
o resto
indolor das casas

das corolas ardendo
na névoa, e
as desabridas,

as sílabas sem terra e
horizonte, as vivas.



antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983






18 fevereiro 2019

manuel de freitas / strela negra




                                           para o Rui


Sabemos há muito tempo
que são cada vez mais frias
as manhãs. E, no entanto,
teimas em inventar
um biombo para a morte,
um rosto de arame
que conhece os últimos porteiros.

A suave desrazão daquele
charro fez-nos perceber
subitamente tudo,
enquanto confundias
o Largo do Conde Barão
com a Praça do Rossio
e a poesia
com o corpo mais ausente.

Mas vou ter de concordar
que era alegre, demasiado alegre,
a música dos táxis nessa noite:
30 de Dezembro de 2004.



manuel de freitas
cretcheu futebol clube
assírio & alvim
2006





17 fevereiro 2019

bernardo soares / não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio.




Não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio. Os livros são apresentações aos sonhos, e não precisa de apresentações quem, com a facilidade da vida, entre em conversa com eles. Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre, a cada passo, o comentário da inteligência ou da imaginação me estorvou a sequência da própria narrativa. No fim de minutos, quem escrevia era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma.

As minhas leituras predilectas são a repetição de livros banais que dormem comigo à minha cabeceira. Há dois que me não deixam nunca — A Retórica do Padre Figueiredo e as Reflexões sobre a Língua Portuguesa do Padre Freire. Estes livros, releio-os sempre a bem; e, se é certo que já os li todos muitas vezes, também é certo que a nenhum deles li em sequência. Devo a esses livros uma disciplina que quase creio impossível em mim — uma regra de escrever objectivado, uma lei da razão de as coisas estarem escritas.

O estilo afectado, claustral, fruste, do Padre Figueiredo é uma disciplina que faz as delícias do meu entendimento. A difusão, quase sempre sem disciplina, do Padre Freire entretém o meu espírito sem o cansar, e educa-me sem me dar preocupação. São espíritos de eruditos e de sossegados que fazem bem à minha nenhuma disposição para ser como eles, ou como qualquer outra pessoa.

Leio e abandono-me, não à leitura, mas a mim. Leio e adormeço, e é como entre sonhos que sigo a descrição das figuras de retórica do Padre Figueiredo, é por bosques de maravilha que oiço o Padre Freire ensinar que se deve dizer Magdalena, pois Madalena só o diz o vulgo.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982





16 fevereiro 2019

pedro loureiro / não há absolvição







Não há absolvição
apenas a ilusão de um recomeço
a subversão do ontem
perfídia disfarçada
urdindo formações de desalojados
saciando a abstinência virulenta
cabeças que cortam cabeças
matilhas de pássaros orgânicos
causando a obstipação dos profetas



pedro loureiro
astigmatismo ou redenção
ilustrações inma serrano & josé louro
editora urutau
2019






15 fevereiro 2019

eduardo pitta / nenhum de nós passeia impune




Nenhum de nós passeia impune
pelos retratos: fazem-nos doer
os recessos da memória.

Deles saltam, por vezes, sustos,
primeiras noites, secreta
loucura, lábios que foram.

Interditam-nos sempre.
Trepam-nos pelo torpor
mais desprevenido, subsistem.

A sua perenidade é volátil
e cheia de venenosos ardis.
Um sopro no oceano.

Distintos, os seus contornos
não são nunca
os que supomos.



eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011





14 fevereiro 2019

howard altmann / a barrar com chocolate




Pega na tua tristeza e põe-na
naquele frasco de doce vazio que guardas.
Pega no teu esconderijo e adoça-o.
Compra o jornal antes de te sentares.
Lê os obituários depois de leres a banda desenhada.
Come uma sopa que a tua mãe costumasse fazer.
Toma uma bebida que o teu pai costumasse pedir.
Imagina o mundo habitado por órfãos.
Depois procura o homem que se senta sozinho
e pergunta-lhe se podes pendurar
o teu casaco ao lado do dele.



howard altmann
enquanto uma fina neve cai
trad. eugénia de vasconcellos
guerra & paz
2019





13 fevereiro 2019

till lindemann / estranho




Como é estranho o que se transforma em dia
Que tu vivas é o que está em causa
Estranho é o que se transforma em noite
Trouxe-te bem para debaixo de mim

No crepúsculo vermelho lava-se o dia
levo-te aos mortos amanhã
para que a multidão não se esqueça
de qual de nós já morreu



till lindemann
nas noites tranquilas
trad. pedro garcia rosado
alma mater
2018






12 fevereiro 2019

luiza neto jorge / o sítio em visita




*

Há no mundo inteiro uma, quando muito, rua
difícil de encontrar.

São os campos, gente humílima, absorta em grãos
de areia, praia inequívoca onde,
na estação tardia, os do mar se deitam.

Algumas folhas, de livros, assinalam o ponto.
Algumas cartas, de marear,
não chegam.



luiza  neto jorge
os sítios sitiados
poesia
assírio & alvim
1993







11 fevereiro 2019

luís miguel nava / rapazes




Foi há cerca de um ano que eu
os vi, onde o granito e a luz são consanguíneos.

Seguiam abraçados um
ao outro, o pensamento posto no amoroso
lençol de que era na mão deles
o guarda-chuva uma antecipação.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002






10 fevereiro 2019

bernardo soares / a leitura dos jornais, sempre penosado ponto de ver estético,




A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver estético, é-o frequentemente também do moral, ainda para quem tenha poucas preocupações morais.

As guerras e as revoluções — há sempre uma ou outra em curso — chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma: é a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa inevitavelmente inútil. Todos os ideais e todas as ambições são um desvairo de comadres homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrificio de um comboio de lata. Que império é útil ou que ideal profícuo? Tudo é humanidade, e a humanidade é sempre a mesma — variável mas inaperfeiçoável, oscilante mas improgressiva. Perante o curso inimplorável das coisas, a vida que tivemos sem saber como e perderemos sem saber quando, o jogo de dez mil xadrezes que é a vida em comum e luta, o tédio de contemplar sem utilidade o que se não realiza nunca (...) — que pode fazer o sábio senão pedir o repouso, o não ter que pensar em viver, pois basta ter que viver, um pouco de lugar ao sol e ao ar e ao menos o sonho de que há paz do lado de lá dos montes.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982