27 julho 2018

rui diniz / a situação literária em 1968




Ainda nos séculos se pergunta uma respiração.
O poema é a consciência irreversível que gira
cruelmente na tarde.
Consumimos tabaco na penumbra. Aqui estou
rindo convulsivamente o tom pestilento da
opressão, meditando uma bebida e nunca
a imaginar a terra.
No calor incidem as moscas que lembram
lentamente um destino, pétalas que destilam
a necessidade de publicar.

Quentes mãos que temi em dias de olhares.
Compreendendo assim os ares, os espaços…

Põe poema a tua metafísica azulada
nas fendas dos lábios de aldeia.
A literatura do sul é o sono profundo das memórias.
Tudo ali nos entontece confusamente.
As erínias zumbem com o vento nas narinas.
O mar gera as crianças estagnadas. É talvez
Tudo uma intensa visão. O ócio do cansaço…

Ainda nas casas as paredes se idolam.
Os poetas param à beira dos poços, passam
Um dedo pela cal, pensam
em publicar. Vão para as searas,
abraçam friamente as avós, conversam
debaixo do crepitar das uvas, preferem
dizer que as braseiras não existem.

É-lhes a noite propícia às surtidas, à visita.
E ao convencimento da cultura, à virgem idade dos
livros.

Isto leva-nos à contemplação dos demónios, aos
obscuros encandeamentos. Assim as lâmpadas
condenam por todo o sempre a palavra que
foi escrita.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977






26 julho 2018

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano




26

não me importa o amor que tenhas
e o amor não se dá nem tem nada para dar
as tuas mãos nas minhas são o tempo que volta
a mover sombras de nanquim, e nos teus lábios
é o sabor a tinta que me atrai.
Ebbro d’ inchiostro é mais bonito, quando
ao calor de agosto as bocas se desatam
e as línguas mordem a brancura do linho.



antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999









25 julho 2018

luís miguel nava / olhando o sol




     Um dia, olhando o sol, deu conta de que nele tinha os ossos mergulhados. Era no entanto impensável proceder a escavações no sol, embora tarde ou cedo a gente acabe por sentir no coração as escavadoras. Dir-se-ia um sol magnético, capaz de decidir dos resultados das mais árduas partidas de xadrez. Como se fosse uma das peças, dir-se-ia, ou como se a luz dele recuperasse através deste uma etimologia insuspeitada.

     Há quem em si se embrenhe até lhe dar o coração pela cintura – começou ele a escrever então. Como se a espinha do próprio acto de escrever ficasse à mostra, a mão foi-lhe emergindo aos poucos do papel.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002







24 julho 2018

josé ángel cilleruelo / o segredo




Entraste na noite
pelo lado da solidão.
A ela contas que sais com eles,
a eles que sais com ela.
Encaminhas o velho Renault 4
pelo certo lugar desabitado
da cidade.
Fizeste entrar um corpo,
acenderam um cigarro enquanto
procuras um retiro pelas sombras.
Silencias a sua voz quando quer falar-te,
com um gesto decides
forma de desejo.
Entraste num corpo
pelo lado da solidão.
Por um instante sentiste-te bem
mas não o dizes,
embora não consigas reprimir
uma carícia no vidro embaciado.
Atrás da porta que fechou deixa-te
um rasto de perfume ignóbil
que aspiras com deleite:
como símbolo o queres
para quando queimar a claridade
da manhã.



josé ángel cilleruelo
o dom impuro
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2004






23 julho 2018

konstandinos kavafis / na rua




O seu rosto bonito, um bocado pálido;
os olhos castanhos, como que sem brilho;
de vinte e cinco anos, embora se calhar pareça ter vinte;
com algo artístico na sua roupa
– qualquer coisa na cor da gravata, forma do colarinho –
sem rumo caminha pela rua,
como que hipnotizado ainda pelo prazer sem lei,
pelo muito prazer sem lei que adquiriu.



konstandinos kavafis
os poemas
II 1916-1918
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005







22 julho 2018

fernando pessoa / árvore verde,




Árvore verde,
Meu pensamento
Em ti se perde.
Ver é dormir
Neste momento.

Que bom não ser
estando acordado!
Também em mim
Enverdecer
Em folhas dado!

Tremulamente
Sentir no corpo
Brisa na alma!
Não ser quem sente,
Mas tem a calma...

Eu tinha um sonho
Que me encantava.
Se a manhã vinha,
Como eu a odiava!

Volvia a noite,
E o sonho a mim.
Era o meu lar,
Minha alma afim.

Depois perdi-o.
Lembro? Quem dera!
Se eu nunca soube
O que ele era.

3-8-1930



fernando pessoa
poesias inéditas (1919-1930)
ática
1956






21 julho 2018

antónio cândido franco / galáxias




De noite no céu faz sol.
Tudo palpita animado de vida.
De noite o mundo duplo do além
é como o centro da terra.
Movem-se as galáxias brancas
como se estivéssemos em pleno dia.
O céu é o interior da terra.
Palpitam aí os abismos incriados
destes fogos.
Penso nas galactites, pedaços que estalaram
do céu.
O céu é uma via de luz.
Vêem-se correr as espessas resinas do dia.
Larvas de pus. Fogos galácticos
como estradas dum sono branco.
Acordam, mas não se levantam.
Andrómeda com a sua cinza enxuta
fermenta através do escuro
uma brancura diurna. Resina
expansiva.
Andrómeda tem os braços cheios de leite.
Estátua compacta
enquanto em seu redor o céu está repleto
de prata.
A noite, lugar galactífero, pedra
de leite
que recorda na terra o sol.
As galáxias são a meteria mesma da memória.


antónio cândido franco
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002





20 julho 2018

ernesto sampaio / travessia




     Contemplar na sua própria trajectória o movimento do corpo que se destrói e do espírito que envelhece

       Conquistar à intranquilidade, o sentido do eterno, à amargura, o poder da revolta, à solidão, o direito ao diálogo

        Cada deus definitivamente sepultado é um homem livre sobre a terra

       Eu que circulo no labirinto e dirijo a fatalidade do caminho, espero o abrir da porta para além da qual alguma coisa se perca desta conjunção que se transporta comigo

     Através o tempo, através a carne, sem sequer supor do reverso do realizável a transfiguração que tudo redima

      Eu que, nesta sala hoje imensa, idêntica e sem exaltação possível, me detenho e esqueço o haver memória, furto-me à provável substituição do homem pela sua semelhança

       Cintila por vezes nestes quartos uma persistência do passado. A história possível da humanidade também tem a sua corte própria, uma virtualidade imperiosa, quase essencial, como se o irrealizado fosse a verdadeira alma do mundo

       Todo o possível se eterniza, vive sempre mais que o realizado, prologa-o, ilimita-o, dá dele a pálida imagem duma realidade profunda, desafiadora

       Decerto a mais pequena ambição humana é sempre maior que o mais alto dos homens

       Decerto a sua transformação em acto é inferior ao ser possível de que provém – e tudo o que poderia ter sido fica a pesar sobre o silêncio, temporariamente se organiza também em passado, presente e futuro, ganha pelo menos direito à memória

         E como o peso duma sentença, a memória indestrutível sustenta as nossas vidas e as nossas cidades

       A memória do que existe e do que faz e prolonga esse existir, e a memória do que poderia existir e que ocultamente cresce e se renova, longe da teia de actos em que nos debatemos

       Escorrendo como humidade, a persistência da recordação corrompe o nosso poder, prolonga nele a tensão constante do realizado e do irrealizado, do real e do possível, substitui-se à imaginação e à liberdade

     Sucessivamente se irão abrindo as portas, num percurso infindável, numa pálida sucessão de pequenos actos e adornos mentais, enquanto o labirinto se continua, se contorce sobre si mesmo, sem regresso possível ou detenção, sem fórmulas ou sagrações, nu e deserto, alheio e hostil, frio, ante o pavor que se inscreve no olhar mais subtil e delicado, na alma mais entregue à interrogação do seu fim

      Ó natureza incriada e geradora de afrontas, de homens, mãe absoluta de todos os nossos gestos e fantasmas, de que parcela mais inútil do teu ventre se gerou esta minha carne, estes meus remorsos e ousadias

      Que inquietação me criou, se tudo era sossego e silêncio, medida e equilíbrio, repouso e eternidade                                      

        Em cada gesto se insere o tempo, quando tudo é imóvel e o próprio movimento uma tendência para o repouso
               
      Da face plácida do mistério me arrancaram e devolveram à desordem, quando em ti tudo reclama a perenidade desse mistério – de ti, incriação, assim partimos, contendo em nós, ocultamente, o apelo que nos marcaste e que de novo nos conduzirá ao silêncio e à totalidade

    Preencho o caminhar destes passos com o som crescente desse apelo, dessa voz irresistível, desse chamamento atordoador, desse desejo de regresso, quando não se regressa nunca e apenas se acelera a vertigem em que nos possui a certeza dessa aglutinação final, dessa ausência para sempre, como quem entra num nevoeiro sem fim, e sucessivamente perde o olhar, o sentir, a consciência

      Hoje, sobre a terra rolando pelo tempo, dentro deste labirinto cada vez mais estreito, onde as paredes mais se comprimem e o ar se rarefaz, coalhado de ameaças, de sinais indecifráveis, reflexos de povos e de memórias, ecos de acções e de sonhos, ruir de paredes que outras paredes cercam, gemidos de naufrágios e tempestades, girar de planetas

     Uma voz abafada, longínqua, do peito do homem se levanta, segura, lenta, uma voz que não se esquece nunca, vibrátil, ardente, correndo pelo íntimo da terra como um fogo secular, um murmúrio ameaçador, humano, implacável




ernesto sampaio
a procura do silêncio
hiena editora
1986




19 julho 2018

manuel lima / américa



I
Aqui está a América com a sua Estátua!
Que alta é a «Liberdade» dos brancos,
que espessas cadeias me põe no Sul!

E arrastei os meus grilhões de desespero
por todo o Mississipi, Kentucky, Alabama
Georgia, Carolina, Louisiana,
onde cada gota de suor germinou
um Estado,
um verdugo.

Não pressentes na bandeira
os meus esforços constelados?
Estão nas estrelas americanas
forjadas pelo tio Sam
nos meus grilhões de desespero
por todo o Mississipi, Kentucky, Alabama,
Georgia, Carolina, Louisiana,
ai
que terra tamanha
com pulmões de aço,
narinas como chaminés,
cérebro de gelo,
olhos eléctricos.
Os braços são máquinas,
o ventre é um cofre.
Não sei por quanto me venderão amanhã,
não sei onde me lincharão depois de amanhã.

Aqui aparece a cruz
Ku-Klux-Klan,
labareda de racismo
talhada em angústia negra
nos soluços da noite
Ku-Klux-Klan,
veneno carregado de fúria americana
Ku-Klux-Klan,
punhal de sonhos meninos no Sul
Ku-Klux-Klan,
punhal sangrento sobre o meu Povo
gemente in United States of America
Ku-klux-Klan.

II
Olha o curtido Sul como uma larga pele de bisonte,
impreciso,
chamejante de solidez!

Não ouves o trompete no vento?

Olha o clarão meridional,
a pedra antiga,
o metal da solidão!
…e o trompete no vento…

Armstrong!

Nada cruza o céu,
nem pássaro,
nem borboleta,
nem vampiro.

Só Armstrong!

…e o trompete no vento…

IV
Mas quando chegares a New Orleans
olha para os meus dentes teclas
de jazz,
minhas pernas múltiplas
de jazz,
minha cólera ébria
de jazz,
olha os mercadores da minha pele,
olha os matadores ianques
pedindo-me
jazz,
one
                two
                               three
jazz,
sobre o meu sangue
jazz,
milhões de palmas para mim
jazz.




manuel lima
poezz
jazz na poesia em língua portuguesa
almedina
2004






18 julho 2018

bob dylan / acho que estou a sair-me bem




Bem, não tenho a minha infância
Ou os amigos que outrora conheci
Não, não tenho a minha infância
Ou os amigos que outrora conheci
Mas ainda me resta a minha voz
Posso levá-la onde quer que vá
Ei, ei, portanto acho que estou a sair-me bem

E nunca tive muito dinheiro
Mas seja como for ainda ando por aqui
Não, nunca tive muito dinheiro
Mas seja como for ainda ando por aqui
Muitas vezes me dobrei
Mas ainda nunca me submeti
Ei, ei, portanto acho que estou a siar-me bem

Infortúnio, oh infortúnio
Tenho infortúnio na mente
Infortúnio, oh infortúnio
Tenho infortúnio na mente
Mas o infortúnio do mundo, Senhor
É muito maior do que o meu
Ei, ei, portanto acho que estou a sair-me bem

E nunca tive exércitos nenhuns
A saltar às minhas ordens
Não, não tenho exércitos
A saltar às minhas ordens
Mas não preciso de exércitos nenhuns
Arranjei um bom amigo
Ei, ei, portanto acho que estou a sair-me bem

Têm-me dado pontapés e chicoteado e espezinhado
Têm tentado atingir-me tal como a ti
Têm-me dado pontapés e chicoteado e espezinhado
Têm tentado atingir-me tal como a ti
Mas enquanto o mundo continuar a rodar
Eu simplesmente também continuo a rodar
Ei, ei, portanto acho que estou a sair-me bem

Bem, a minha estrada pode estar cheia de pedras
As pedras podem ferir-me o rosto
A minha estrada ela pode estar cheia de pedras
As pedras podem ferir-me o rosto
Mas como algumas pessoas não têm estrada nenhuma
Têm de ficar no velho sítio do costume
Ei, ei, portanto acho que estou a sair-me bem





bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
the times they are a-changin’
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008








17 julho 2018

paulino lorenzo / bairro apagado




A rua dorme, é lenta e vem de muito longe,
de um ruído de pássaros curiosos que observaram
a pele de um coração, o meu. Que faço aqui?
Nada de novo, fumar, perder o tempo,
escutar o escuro chapinhar dos charcos,
resolver o poema com um último verso
calado frente ao aquário lúgubre de uns olhos.



paulino lorenzo
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000









16 julho 2018

ruy cinatti / veneza




Os palácios alinham-se à beira d´água
e os degraus escondem-se nos fundos palustres.
Altas torres crescem, intervaladas,
e avançam, tetraédricas no céu.
Barcos à vela e algumas gôndolas
navegam silenciosas. De uma janela
um astro é lançado contra um remador…
As pombas esvoaçam em redor
e o tom mais nítido lembra o arco-íris…

6/12/76



ruy cinatti
56 poemas
de paisagens
relógio d´agua
1981