22 março 2018

antonio gamoneda / teu cabelo encanece entre minhas mãos e




Teu cabelo encanece entre minhas mãos e, como
águas silenciosas, as recordações abandonam-nos.
Sinto a frialdade da existência mas teu cheiro espa-
lha-se nos quartos e tua lascívia vive em meu coração
e meu pensamentos penetra em tuas feridas.



antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999











21 março 2018

antónio franco alexandre / ao humano desprezo bem queria




Ao humano desprezo bem queria
responder com um rasgo de heroísmo
ou de bem calculada fantasia;
encaminhar algum pedestre implume
perdido nos meandros do destino,
vencer um monstro em singular combate,
ou descobrir as máquinas da luz.
Dava-me já, porém, por satisfeito
se a minha arte fosse acompanhada
por discreto rumor de élitros e asas,
e eu mesmo, amoris causa, recebido
na academia eterna dos insectos.
Nem eu nasci da sua impura raça,
nem sei de nenhum rito que me faça
ser digno do seu sumo sacerdócio;
menos feliz do que o mosquito e a traça,
não sou, por mera herança, dos eleitos;
e por muito que estude e em livros leia
a história toda dos seus reis e magos,
ao fim do dia volto, magoado, à teia
sem ver o meu labor recompensado.
Assim hei-de ficar até ao fim dos dias,
objecto de temor e fria troça,
sujeito à condição que não alcanço.



antónio franco alexandre
aracne
assírio & alvim
2004









20 março 2018

alejandra pizarnik / quarto somente




Se te atreves a surpreender
a verdade desta velha parede
e as suas fissuras, escaras,
formando rostos, esfinges,
mãos, clepsidras,
seguramente virá
uma presença para a tua sede,
provavelmente partirá
esta ausência que te bebe.




alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002







19 março 2018

antónio ramos rosa / escrevo sobre um muro



J'ecris sur un mur au fond du noir

Guillevic



Escrevo e as portas não se abrem.
Os rios existem, e o mar da rua
existe. Escrevo. E o que espero?
Escrevo em apagados muros, na branca
superfície do muro. Escrevo.


São palavras, palavras. São
palavras.
Não respiram. Não falam.
São desertas.
Não rodam, não batem nos meus pulsos.
E escrevo. Como se esperasse.


Como. Se desertas abrissem.
Para. Para.
Uma vida outra aberta.
Esta e mais nenhuma, a que só temos
sem nunca tê-la, a que seria vida
o que é, e nós sem ela.


Escrevo no muro palavras,
para respirar, quando não posso,
quando o desejo de viver se tornou ténue,
que não sinto senão na ténue página,
na brancura rara que me tenta,
na água sem jardins ao rés da página
ó sede à beira de nascer, ó água!


Escrevo palavras neste muro. Um muro.
Umas palavras. O mar da rua existe.
As portas não se abrem. E não espero.
Escrevo sobre o muro. Umas palavras.
São as palavras que escrevem esse muro.
São as palavras que escrevem esse muro.
O muro existe. Resiste É bem um muro.
As palavras saltam além do muro.



antónio ramos rosa
vagabundagem na poesia de antónio ramos rosa
seguido de uma antologia
casimiro de brito
quasi
2001







18 março 2018

fernando pessoa / nada há de menos latino que um português.




Nada há de menos latino que um português. Somos muito mais helénicos — capazes, como os Gregos, só de obter a proporção fora da lei, na liberdade, na ânsia, livres da pressão do Estado e da Sociedade. Não é uma blague geográfica o ficarem Lisboa e Atenas quase na mesma latitude.

s.d.



fernando pessoa
sobre portugal - introdução ao problema nacional
ática
1979










17 março 2018

joão esteves / pequenas marcas




que fora dos livros
se escreva
o que fora do que se escreve
não se diz
e que fora do que se diz
se diga
o que fora do que se pensa
não se pensa.

e que dentro da alma
exista
o que fora dela não existe
para que por dentro
se realize
tudo aquilo que não se verbalize.

que portanto
estando fora estando dentro
se sobreviva
à tentação de querer estar no centro
e apenas mais um se seja
sabendo-se pequena esta marca que se deixa.



joão esteves









16 março 2018

eduardo moga / que dentro há um sol




Que dentro há um sol. Como germina no ataúde
invisível do corpo. Como arreigadamente
brilha, com que penumbra de assombrado meteoro,
com que óptima quietude. Alamedas suspensas
esperam, junto do músculo, que se esvazie o fogo
que impregna a noite. É a teia, cerrada,
que regressa; é o raio inverso que revela
com a sua voz seminal as possibilidades
do gelo. A cinza dessangra-se. O cereal,
aproximando-se, procura gargantas onde furtar-se
às ardentes chuvas, fundamentos para a ponte
que só os vivos hão-de pisar, os inermes,
os que se curaram. Touros que respiram como arcos
tensos: ainda não. Acérrimos cavalos
que optam pelo sismo: não. Água que se vertebra,
como um súbito pescoço, ou cravos que a ferem:
ainda não. Terra sem sexo que oferece
o seu voo, a sua lentíssima energia, ás árvores
impacientes; penínsulas faltas de sol e omoplatas,
onde vertiginosos peixes, inacabados
ainda, ignoram o fluir dos sudários.
É demasiado cedo para o tempo.

                […]




eduardo moga
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







15 março 2018

al berto / salsugem




3
era um barco
onde os homens regressavam como um lamento
tinham saudades de ilhas… embebedavam-se
no receio de nunca chegar
deitados nas tábuas de sarro do porão
com o cio da noite pegando-se aos membros húmidos
esperavam que se avistasse terra
onde pudessem enfim reabastecer-se de alimentos
água fresca… e quem sabe se uma carta não bastava
para saciar as sedes e as fontes do irrequieto coração

assim se quedavam paralisados
os ventos roçando as cordas… as vagas contra o casco
suspirando mansos olhavam depois
a baba acetinada dos peixes voando

era um barco
uma sombra do mar com o sol tatuado à proa… avançava
como avançam as vozes aquáticas pelos sonhos adentro
perturbando a navegação da memória
era um barco
com o velame cansado e as mãos calejadas
pelas tempestades das sete partidas do mundo

chegava ao porto
descarregava palavras dialectos estilhaços de concha
espinhas pedaços de corda que na incerteza dos dias
alinhava pelo cais vislumbrado doutro corpo
e voltava a partir
evitando o silencioso plâncton dos espelhos
acostando somente à memória dalgum distante lugar
onde o amor largou sobre o corpo-amante
uma esteira de conhecidas e sangrentas mercadorias




al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997








14 março 2018

yorgos seferis / entre dois momentos amargos…


   
Entre dois momentos amargos não tens tempo sequer
                para respirar
entre o teu rosto e o teu rosto
uma terna forma de rosto de criança inscreve-se e apaga-se.




yorgos seferis
esboço para um verão
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993








13 março 2018

ana hatherly / 463 tisanas




216

Às vezes penso: os nossos sentimentos são como uma espécie de esparguete em aço, em que cada segmento está totalmente imiscuído no todo mas ao mesmo tempo é distintamente apercebível. Outras vezes penso: não, os nossos sentimentos são como uma floresta de esparguete de aço em que cada segmento emerge só parcialmente distinto. Na ponta de cada uma dessas varas vibra uma formação algo rendilhada, consequência dos constantes tremores de cada segmento, e assim, quando alguém está sob o império de funda emoção, tudo nele treme e na floresta tudo vibra e essas extremidades rendilhadas formam rapidíssimos desenhos, imiscuindo-se uns nos outros, e o total é uma combinação de vibrações que se sobrepõem e explicam a confusão que se encontra no indivíduo sob o império da emoção.



ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006






12 março 2018

carlos de oliveira / descida aos infernos



2
(E procurando
sai para fora da minha alma,
maior que ela,
a grande sombra errante
dos corcéis
                     da amarga loucura
que outrora desceram por estes vales
ateando clarões
nos olhos de Dante).



carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001






11 março 2018

bernardo soares / a maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictícia...




A maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictícia e alheia. A maioria da gente é outra gente, disse Oscar Wilde, e disse bem. Uns gastam a vida na busca de qualquer coisa que não querem; outros empregam-se na busca do que querem e lhes não serve; outros ainda se perdem (...)

Mas a maioria é feliz e goza a vida sem isso valer. Em geral, o homem chora pouco, e, quando se queixa, é a sua literatura. O pessimismo tem pouca viabilidade como fórmula democrática. Os que choram o mal do mundo são isolados — não choram senão o próprio. Um Leopardi, um Antero não têm amado ou amante? O universo é um mal. Um Vigny é mal ou pouco amado? O mundo é um cárcere. Um Chateaubriand sonha mais que o possível? A vida humana é tédio. Um Job é coberto de bolhas? A terra está coberta de bolhas. Pisam os calos do triste? Ai dos pés dos sóis e das estrelas.

Alheia a isto e chorando só o preciso e no menos tempo que pode — quando lhe morre o filho que esquecerá pelos anos fora, salvo nos aniversários — quando pensando [...] e chora enquanto não arranja [?] outro, ou se não adapta ao estado de perda — a humanidade continua digerindo e amando.

A vitalidade recupera e reanima. Os mortos ficam enterrados. As perdas ficam perdidas.

Quando vejo um gato ao sol lembra-me sempre do homem ao sol.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990








10 março 2018

eugénio de andrade / vozes




Às vezes rompe pela casa,
pousa no silêncio,
no pulsar do silêncio.
Que faz ainda
por aqui? Coração de lume
velho – é um dizer.
Por fim corre
para o pátio de outros dias,
junta-se às vozes infantis.
E cantam, cantam,
matutinas.



eugénio de andrade
ofício de paciência
poesia
fundação eugénio de andrade
2000