07 dezembro 2017

sylvia plath / balões




Desde o Natal que eles têm vivido connosco,
Simples
E transparentes,
Ovais animais com alma,
Movendo-se e roçando-se nas sedosas

E etéreas correntes de ar
A guinarem e a rebentarem
Quando atacados, depois fugindo a toda a pressa para uma calma
   ainda tremente.
Serviola amarela, chúmbea azul –
Tais são as estranhas luas com que vivemos,

Não com mobília fúnebre!
Tapetes de corda, paredes brancas
E estes viajantes
Globos de ar fino, vermelhos, verdes,
A encantar

O coração como desejos ou os livres
Pavões que abençoam
O chão antigo com uma das suas penas
Embutida no fundo de eças de metal luzente.
O teu irmão

Mais pequeno faz
O balão dele guinchar como um gato.
Parece estar a ver
Através dele um divertido mundo cor-de-rosa que talvez possa
  comer,
Morde,

Depois senta-se
De novo, pote gordo
A admirar um mundo transparente como a água.
Um resto de vermelho
Esfarrapado na sua mão pequena.



sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




06 dezembro 2017

wislawa szymborska / a curta vida dos nossos ascendentes




Poucos chegaram aos trinta anos.
A velhice era privilégio das pedras e das árvores.
A infância durava a das crias dos lobos.
Havia que ser rápido, acompanhar a vida,
antes que se ponha o sol,
antes que a primeira neve caia.

Geradoras de filhos aos treze anos,
aos quatro assaltantes de ninhos nos juncais,
aos vinte dirigindo a montaria,
ainda há pouco mal estavam, agora já não estão.
As pontas do infinito depressa se alongavam.
As bruxas ruminavam os anátemas
ainda com toda a primeira dentição da mocidade.
À vista de seu pai o filho amadurava,
ao baço olhar do avô brotava o neto.

E por fim nem sequer os anos eles contavam.
Contavam tachos, redes, barracas e machados.
Tão benévolo o tempo para qualquer estrela
e estendia-lhes uma mão quase vazia
para logo a retirar como se achasse pena.
Um passo mais, mais dois ainda,
ao longo de um rio tremeluzente,
que das trevas escorre e as trevas volta.

Não havia nem um momento a perder,
perguntas a adiar, revelações tardias,
se não fora tudo experimentado previamente.
A sensatez não podia esperar pelos cabelos brancos;
havia que ver claro antes de a claridade vir,
ouvir a grande voz antes que o som se propagasse.

O bem e o mal –
pouco sabiam sobre eles e, porém, tudo:
quando triunfa o mal, o bem esconde-se;
quando o bem aparece, fica o mal de atalaia.
Um e outro impossíveis de vencer
ou de afastar para uma distância sem regresso.
Eis porque, se alegria – com angústia misturada,
se desespero – nunca sem esperança muda.
A vida, embora também longa, é sempre curta.
Curta de mais para dizer mais do que isto.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







05 dezembro 2017

luiza neto jorge / pelo corpo



infinita invenção
de pétala a escaldar
desprende o falo

a palavra sublinhada
que é ele a avançar-me
pelo corpo

a porta giratória
que me troca
pelo homem e, a este,

o fértil trajo
que lhe cria mais seios
pelo corpo


luiza  neto jorge
o amor e o ócio
poesia
assírio & alvim
1993





04 dezembro 2017

vasco graça moura / a escola de frankfurt



IX

e uma tarde tu
falaste-me da sombra,
da solidez do reino
de árvores imponderáveis.

mostrei-te a luz das praças
e das arcadas, viste
que a sombra era um reduto
só de acompanhamentos.

e viste o sol, o seu
benéfico poder, as tuas
narinas estremeceram
como se de um perfume

de archotes aromáticos:
as árvores ardiam.


vasco da graça moura
a escola de frankfurt
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007



03 dezembro 2017

fernando pessoa / a esperança como um fósforo inda aceso,




A esperança como um fósforo inda aceso,
Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso.
A falha social do meu destino
Reconheci, como um mendigo preso.

Cada dia me traz com que esperar
O que dia nenhum poderá dar.
Cada dia me cansa da esperança...
Mas viver é esperar e se cansar.

O prometido nunca será dado
Porque no prometer cumpriu-se o fado.
O que se espera, se a esperança é gosto,
Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.

Quanta acha vingança contra o fado
Nem deu o verso que a dissesse, e o dado
Rolou da mesa abaixo, oculta a carta,
Nem o buscou o jogador cansado.

22-11-1928



fernando pessoa
poesias inéditas (1919-1930)
ática
1956




02 dezembro 2017

fernando echevarría / o horizonte aproxima



O horizonte aproxima
um lugar de pensamento
que a neve traz. Se resigna
à espessura de silêncio
que assenta. Anula a energia
com que desertou o vento.
A luz reconhece-se íntima.
Não abate o candeeiro,
é a neve que a liga
àquele conhecimento
que se recolhe em mobília
adormecendo por dentro.
Agora, a noite confirma
o sono a descer. O vento
tem a neve toda em cima.
Só os lobos estão abertos.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998




01 dezembro 2017

ana hatherly / 463 tisanas



395

Há uma sensação de infidelidade na comunicação. Essa verificação faz com que o criador esteja sempre insatisfeito, dominado pelo desejo de fazer cada vez melhor, porque há um fracasso imanente em toda a criação. Essa verificação pode levar a uma tentativa interminável ou ao isolamento pelo silêncio. Mas para o criador o isolamento é a sua oficina.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006








30 novembro 2017

toni montesinos gilbert / room 1623




Os meus mortos e eu pensamos,
nesta insónia chuvosa de Nova Iorque,
na vida efémera, no azar que é respirar
aqui ou em qualquer outro sítio.

Os meus mortos e eu
vemos de um décimo sexto andar
a madrugada acesa
por algumas luzes no edifício em frente,
e ouvimos as sirenes dos automóveis ao longe:
polícias ou ambulâncias que levam a vivos ou a mortos
de um lado para outro, enquanto a cidade dorme.

Os meus mortos e eu não temos saudades uns dos outros
neste silêncio inventado da memória,
gaveta para as cartas nunca enviadas
e que se reescrevem pelo amor de sentir a ausência
cada dia de forma diferente, para que não acabe por apodrecer.

Os meus  mortos e eu pensamos recluir-nos no passado
apenas para não ficarmos sozinhos.



toni montesinos gilbert
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000






29 novembro 2017

ángél gonzález / dia de anos




Noto isto: estou a ficar
menos certo, confuso,
dissolvendo-me no ar
quotidiano, tosco
girão de mim, desfiado
e roto pelos punhos.

Compreendo: vivi
um ano mais, e isso é bem duro.
Mover o coração todos os dias
quase cem vezes por minuto!

Para viver um ano é necessário
muitas vezes morrer muito.



ángél gonzález
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985






28 novembro 2017

jorge luís borges / beppo






O gato branco e solitário vê-se
nessa lúcida lua de algum espelho
e não pode saber que tal brancura
e esses nunca vistos olhos de ouro
são, afinal, a sua própria imagem.
Quem lhe dirá que o outro que o observa
é apenas um sonho desse espelho?
Eu penso que esses gatos harmoniosos,
o do mais quente sangue e o de vidro,
são simulacros que concede ao tempo
um arquétipo eterno. Assim afirma,
sombra também, Plotino nas Enéadas.
De que Adão anterior ao paraíso
E de que divindade indecifrável
somos nós, homens, um quebrado espelho?


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998









27 novembro 2017

manuel antónio pina / teoria das cordas




Não era isso que eu queria dizer,
queria dizer que na alma
(tu é que falaste da alma),
no fundo da alma e no fundo
da ideia de alma, há talvez
alguma vibrante música física
que só a Matemática ouve,
a mesma música simétrica que dançam
o quarto, o silêncio
a memória, a minha voz acordada,
a tua mão que deixou tombar o livro
sobre a cama, o teu sonho, a coisa sonhada;
e que o sentido que tudo isto possa ter
é ser assim e não diferentemente,
um vazio no vazio, vagamente ciente
de si, não haver resposta
nem segredo.




manuel antónio pina
atropelamento e fuga (2001)
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012





26 novembro 2017

alberto caeiro / da mais alta janela da minha casa


XLVIII

Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide, de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos





25 novembro 2017

luís veiga leitão / ao visitante



Entrego-te as chaves da cidade
A chave da torre que do alto nos abre
O voo das aves e os pórticos do mar
A chave das muralhas do burgo antigo
Que nos abre aos mistérios do rio
A chave viva dos arcos da ribeira
Na livre explosão das falas do povo
E a chave de cais, senhora zelando
Os tesouros do sol no ouro do vinho




luís veiga leitão
a bicicleta e outros poemas
associação dos jornalistas e
homens de letras do porto
2012