21 fevereiro 2016

thom gunn / fragmento nocturno



O nevoeiro desce lentamente a colina
E conforme subo mais se adensa:
Fecha-se à minha volta, apodera-se de mim
Como lençóis caídos sobre o chão.

Aqui ficam as últimas e ascendentes ruas,
Galerias, que correm pelas veias do tempo,
Quase familiares, onde rastejo em direcção ao sono
Como nevoeiro e pelo nevoeiro como sono.



thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



20 fevereiro 2016

vicente aleixandre / tens nome



Teu nome,
pois tens nome. A minha vida inteira foi isso:
um nome. Porque o sei não existo.
Um nome respirado não é um beijo.
Um nome perseguido sobre uns lábios
não é o mundo, mas o seu sonho às cegas.
Assim sob a terra, respirei a terra.
Sobre o teu corpo respirei a luz.
Dentro de ti nasci: morri por isso.


vicente aleixandre
antologia de vicente aleixandre
poemas de la consumación
tradução de josé bento
editorial inova
1977



19 fevereiro 2016

fernando pinto do amaral / antevisão


Talvez a alma seja apenas
uma imperfeita câmara escura
onde o que vemos serão cenas
de uma vida futura

e no contorno das imagens
que pouco a pouco se revela
descortinamos personagens
dessa vida mais bela.

Fotografias no avesso
da consciência fugidia
hão-de exigir-nos o seu preço
para a melancolia,

mas é tão bom ficar a vê-las
dentro de nós, num céu fictício
onde cintilam as estrelas
desse puro artifício

iluminando a nossa treva
com a estranha luz de um sobressalto
e é talvez isso que nos leva
a um lugar mais alto.


fernando pinto do amaral
poesia do mundo/3
afrontamento
2001



18 fevereiro 2016

maruyama kaoru / a dor da separação



Pousada numa âncora, uma gaivota pia.
De súbito, sem uma palavra, a âncora desliza.
Surpreendida, a gaivota levanta voo.
Em breve, a âncora empalidece na água, afundando-se.
E o que a gaivota sente torna-se um grito bravio, triste,
Perdido no vento.



maruyama kaoru
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé Alberto oliveira
assírio & alvim
2001



17 fevereiro 2016

henri michaux / levai-me



Levai-me numa caravela,
Numa antiga e amena caravela,
Na proa, ou se quiserem, na espuma,
E abandonai-me, lá longe, longe.

Na união a um outro tempo.
No veludo ilusório da neve.
No bafo de alguns cães à volta.
Na extenuada turba das folhas mortas.

Levai-me sem me quebrar, nos beijos,
Nos peitos que se solevam e respiram,
Nos tapetes das palmas das mãos, no sorriso,
Nos renques das articulações e dos ossos longos.

Levai-me, ou antes: ocultai-me, ocultai-me.


henri michaux
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997



16 fevereiro 2016

carlos edmundo de ory / poema



Minha arte de magia num mundo sem magia
é a arte da nostalgia original
Perigosa é a canção das sereias
como noutros tempos
Noutros tempos havia mensageiros
reis e loucos
Sonhava-se muito
Eles estavam no incomensurável
e viviam no não ser
O seu nome não se pronunciava
mas o poder deles trazia plenitude às almas
e as pessoas achavam tudo natural


carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997



15 fevereiro 2016

e e cummings / soneto



Não será sempre assim… Quando não for,
Quando teus lábios forem de outro; quando
No rosto de outro o teu suspiro brando
Soprar; quando em silêncio, ou no maior

Delírio de palavras desvairando,
Ao teu peito estreitares com fervor;
Quando, um dia, em frieza e desamor
Tua afeição por mim se for trocando:

Se tal acontecer, fala-me. Irei
Procurá-lo, dizer-lhe num sorriso:
«Goza a ventura que já gozei.»

Depois, desviando os olhos, de improviso,
Longe, ah tão longe, um pássaro ouvirei
Cantar no meu perdido paraíso.



e. e. cummings
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de manuel bandeira 
assírio & alvim
2001



14 fevereiro 2016

wystan hugh auden / canção



Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas:
Umas vivem em mansões, outras em tugúrios;
Não há contudo lugar para nós, meu amor,
não há contudo lugar para nós.

- Outrora tivemos uma pátria e pensávamos que isso era justo.
Olha o mapa, e ali a encontrarás.
Não mais podemos lá voltar, meu amor,
não mais podemos lá voltar.

- O cônsul deu um murro na mesa e disse:
«Se não têm passaporte, estão oficialmente mortos.»
Mas nós ainda estamos vivos, meu amor,
mas nós ainda estamos vivos.

- Aí em baixo, no adro da igreja, ergue-se um velho teixo:
Em cada primavera floresce de novo;
Velhos passaportes não podem fazê-lo, meu amor,
velhos passaportes não podem fazê-lo.

- Fui a uma repartição; ofereceram-me uma cadeira;
Disseram-me polidamente para voltar no próximo ano;
Mas onde iremos hoje, meu amor,
mas onde iremos hoje?

- Fomos a um comício público; o orador levantou-se e disse:
«Se os deixarmos aqui ficar, hão-de roubar-nos o pão de cada dia»:
Estava a falar de ti e de mim, meu amor,
estava a falar de ti e de mim.

- Ouvimos um clamor que nem trovão retumbando no céu;
Era Hitler berrando através da Europa: «Eles têm de morrer!»
Oh, nós estávamos no seu pensamento, meu amor,
nós estávamos no seu pensamento.

- Vimos um cachorro, de jaqueta apertada com um alfinete;
Vimos uma porta aberta e um gato a entrar;
Mas não eram judeus alemães, meu amor,
não eram judeus alemães.

- Descemos ao porto e parámos no cais;
Vimos os peixes nadando como se fossem livres;
Apenas a dez pés de distância, meu amor,
apenas a dez pés de distância.

- Passeámos por um bosque, havia pássaros nas árvores;
Não tinham políticos e cantavam despreocupados;
Não eram de raça humana, meu amor,
não eram de raça humana.

- Sonhámos com um edifício de mil andares,
Com mil portas e com mil janelas;
Nenhuma delas era nossa, meu amor,
nenhuma delas era nossa.

- Corremos à estação para apanhar o comboio expresso;
Pedimos dois bilhetes para a Felicidade;
Mas todas as carruagens estavam cheias, meu amor,
mas todas as carruagens estavam cheias.

- Quedámo-nos numa grande planura com a neve a cair;
Dez mil soldados marchavam para cá e para lá,
À tua e à minha procura, meu amor,
à tua e à minha procura.


w. h. auden
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003


13 fevereiro 2016

leopoldo maría panero / como nos cães



     … Como nos cães,
tocados por seu dono,
vagueia todo o amigo da terra,
assim quisera eu minha palavra:
simples,
tímida nas pupilas,
com sílabas errantes de menino.

     Improvisar o mundo,
e todo o diáfano do mundo,
com a data encontrada no orvalho
e com o sopro tépido da mão…

     Pois o que vale é o real
escrito com a exalação do real,
e com o sedimento aéreo
do coração que pulsa chamado por seu dono,
leve,
muito levemente
oh, poema.


leopoldo maria panero
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé bento 
assírio & alvim
2001



12 fevereiro 2016

manuel margarido / golpe



Olha, deixa-me dizer-te isto antes que me esqueça: pego na fotografia, aquela a que nunca chamámos nossa porque éramos só nós sem espólio. Seguro-a como se fosse perigoso.
É um gesto inútil, a distância apenas contraria a memória.

Reparo devagar no inacreditável alongamento dos corpos quase impossíveis, vegetais. Vejo a assimetria de, a textura que, a sombra sobre, o intervalo entre. E como parecem banalidades em moldes.

E é um risco, sabes, porque subitamente lembro-me do corte, de um pequeno golpe já curado, terá sido faca, falha, acidente, procura de dor. Não sei. E é o que não sei que se ateia, é a maldição dos indícios. Um só dedo, por exemplo, um só dedo traçou palavras, alegrou-se, apontou na vertical, pousou sobre a febre, deu começos a solo. E o resto?

Não permito a fala da fotografia, a imprecisão com que descreve a junção, o erro no que diz do clarão que trouxe o escuro que nos abrigou da morte. E da grande luz que deu.


manuel margarido
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015



11 fevereiro 2016

mia couto / escrita



Tenho fome de um nome
e procuro-o para além dos idiomas
como garimpeiro de vozes
esgravatando um chão de silêncios.

Ecoa em mim
um búzio sem mar,
um peixe agoniza
no estremecer da página nua.

Hoje fui beijado por serpente.
E me espelhei
água sobre a lua.

Hoje escrevi mel
sobre a picada da abelha
isso a que outros chamam poesia.



mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013




10 fevereiro 2016

herberto helder / fico indiferente



fico indiferente a vê-los gostar de poemas meus da juventude,
poemas tão inconscientes de si quando se coloca a mão
numa fruta, num livro encadernado,
e estranho, que passem rápido sobre a ferida ainda aberta,
ou não sintam a rispidez com que se fecha o dia
ao voltar a página
sob a noite afogando casas, pessoas, todos os livros do mundo,
e já declina a beleza completamente despida
da jovem ateniense que abriu a porta e traz a luz ao quarto inteiro
                                                                                             de uma só vez,
mas deixa que se suspeite a treva infinda de onde chega,
ávida fêmea de que equívoca temperatura,
de perguntas como: que idade tem a terra?
em que data de que sítio é a primavera?
ou: este arrepio nas unhas anuncia que morre de que coisas?
(alguém algures assobia uma canção em voga)
¿e que terror é este saber que há tanta vida
neste dia em que decerto, entre ruído e silêncio cada vez mais fundo,
alguém sente que a ferida lateja,
e há numa página do livro
 – aguda, obscura, ofuscante –
uma dedada de sangue?


herberto helder
relâmpago
revista de poesia 36/37
fundação luís miguel nava
2015




09 fevereiro 2016

irene lisboa / chuva



Chuva nos vidros.
Nada, chuva nos vidros!
Espaçadas, casuais, agudas, oblíquas, agulhadas.
Chuva que se anuncia, que apenas se anuncia.
Pingas que vão secando. Se vão arredondando,
tornando imateriais e invisíveis.
Vagas coisas. Como quê?
Como as coisas da minha vida.
Nem já chuva nos vidros…
Já não de vêem os sinais.



irene lisboa
um dia e outro dia…
outono havias de vir
obras de irene lisboa
volume I poesia I
editorial presença
1991