09 fevereiro 2016

irene lisboa / chuva



Chuva nos vidros.
Nada, chuva nos vidros!
Espaçadas, casuais, agudas, oblíquas, agulhadas.
Chuva que se anuncia, que apenas se anuncia.
Pingas que vão secando. Se vão arredondando,
tornando imateriais e invisíveis.
Vagas coisas. Como quê?
Como as coisas da minha vida.
Nem já chuva nos vidros…
Já não de vêem os sinais.



irene lisboa
um dia e outro dia…
outono havias de vir
obras de irene lisboa
volume I poesia I
editorial presença
1991



08 fevereiro 2016

kálas / xadrez



Um mundo – um mundo rectangular este meu mundo.
Nas suas simplificadas dimensões se emboscam os
      horizontes do dia, a superfície contrastante do equinócio.
Todos os crimes da vida – astúcias homicídios – revivem
      na madrepérola e no ónix onde penosamente se
      deslocam os símbolos de marfim, os ídolos de coral da
      mente impiedosa.
O itinerário deles, suas paradas perigosas, seus
      desapontamentos e pilhagens – alegrias do que foi outrora
      coração.
Agora com algum raro movimento de mão ela busca
      complicar o jogo árido.
As violações, o sangue derramado, o que na alma existe
      de secreto, nada disso se mostra nas austeras variações.
Aqueles porém que conhecem as regras vêem ao espelho
      as terríveis imagens que os dois jogadores encerraram
      no quadrado de ébano e que tentam dissimular com
      bonecos simplórios.



kálas
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé paulo paes 
assírio & alvim
2001 



07 fevereiro 2016

adolfo casais monteiro / vem vento, varre!



Vem vento varre
Sonhos e mortos.
Vem vento, varre
Medos e culpas.
Quer seja dia
Quer faça treva,
Varre sem pena,
Leva adiante
Paz e sossego,
Leva contigo
Nocturnas preces,
Presságios fúnebres,
Pávidos rostos
Só cobardia.



Que fique apenas
Erecto e duro
O tronco estreme
Da raiz funda.
Leva a doçura,
Se for preciso:
Ao canto fundo
Basta o que basta.


Vem vento, varre!


adolfo casais monteiro
noite aberta aos quatro ventos
inquérito
1959




06 fevereiro 2016

william carlos williams / paisagem com queda de ícaro




De acordo com Brueghel
quando Ícaro caiu
era primavera

um lavrador arava
os seus campos
todo o esplendor

do ano
formigava ali
à

beira do mar
consigo mesmo
preocupado

suando ao sol
que derretia
a cera das asas

perto
da costa
houve

uma pancada quase imperceptível
era Ícaro
que se afogava



william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993





05 fevereiro 2016

sebastião alba / génese



Foi assim
Todo o mar que eu via
se precipitou logo no meu coração
Que é de sal

E os peixes cristalizaram
com os olhos mortos
para as suas manhãs refractadas

Escutando bem
ouve-se como ao pé duma estátua
música parada



sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981




04 fevereiro 2016

al berto / lisboa



lisboa
por tràs dos muros da cidade
no seu coração profundo de alicerces
de argilas e de sísmicos arroios - cresce uma voz
que sobe e fende a brandura das casas

da escrita dos enumeráveis povos quase
nada resta - deitas-te exausto na lâmina da lua
sem saberes que o tejo te corrói e te suprime
de todas as idades da europa


mais além - para os lados do corpo - permanece
a tosse dos cacilheiros os olhos revirados
dos mendigos - o tecto onde um navio
nos separa de um vácuo alimentado a soro


plátanos brancos recortam-se luminescentes no olhar
de quem nos olha contra um céu desesperado - jardim
de iris açucenas palmeiras cobertas de rocio e
a ponte que nos leva aos campos do sul - lisboa



lugar derradeiro do riso
que já não te pode salvar do cemitério dos prazeres



e morres
carregado de tristezas e de mistérios - morres
algures
sentado numa praceta de bairro - o olhar fixo
no inferno marítimo das aves

  
al berto







03 fevereiro 2016

herberto helder / (a colher na boca) prefácio



Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.
Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo com ironia e doçura no fundo
de um alto segredo que os restitui à lama.
De doces mãos irreprimíveis.
— Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.


Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta
do gosto, o entusiasmo do mundo.
Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio
admirável das fontes —
pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste
como fogo exemplar.
Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas
um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores
tenebrosas, e temos memória
e absorvente melancolia
e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.


Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,
espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos
que não viram as torrentes infindáveis
das rosas, ou as águas permanentes,
ou um sinal de eternidade espalhado nos corações
rápidos.
— Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam
pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,
para que se faça uma ordem, uma duração,
uma beleza contra a força divina?


Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha.
Alguém viera do mar.
Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó.
Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos,
Inspirações.
                     — Estas casas serão destruídas.
Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente
no seu casamento solar, assim
se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo,
vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos
da terra
onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos
múltiplas, as caras ardendo nas velozes
iluminações,


Falemos de casas. É verão, outono,
nome profuso entre as paisagens inclinadas.
Traziam o sal, os construtores
da alma, comportavam em si
restituidores deslumbramentos em presença da suspensão
de animais e estrelas,
imaginavam bem a pureza com homens e mulheres
ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente,
tocando uns nos outros —
comovidos, difíceis, dadivosos,
                                                 ardendo devagar.


Só um instante em cada primavera se encontravam
 com o junquilho original,
arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres
da inspiração.
                        — E as casas levantavam-se
sobre as águas ao comprido do céu.
Mas casas, arquitectos, encantadas trocas de carne
doce e obsessiva — tudo isso
está longe da canção que era preciso escrever.


— E de tudo os espelhos são a invenção mais impura.


Falemos de casas, da morte. Casas são rosas
para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança
nos abandona para sempre.
Casas são rios diuturnos, nocturnos rios
celestes que fulguram lentamente
até uma baía fria — que talvez não exista,
como uma secreta eternidade.


Falemos de casas como quem fala da sua alma,
entre um incêndio,
junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
                                                         de beleza.


herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996





02 fevereiro 2016

andreia c. faria / frieiras



Difícil amar
os eventos do corpo, as pequenas traições, as frieiras
quando a magnólia sagra a Primavera

Todo o Inverno resistiu, mas agora
a tua mão abre-se vívida e inteira
como um coelho acabado de esfolar

Parapeito das rebentações, os gestos
aparecem-te ínvios como nomes
num minucioso mapa de guerra

Até ao fim d estação será assim:
a tua mão calcada e com o sangue
a obstinar-se-lhe dentro, a bater
nos nós dos dedos sem que alguém compareça
do lado de cá

Ninguém te desembrulha o estilhaço, a pele sensível

Trazes os bolsos desmaiados de sentidos

Tens os dedos fechados
do frio que não faz
e isso é difícil de amar

  
andreia c. faria
voo rasante
mariposa azual
2015



01 fevereiro 2016

narciso pinto / horóscopo



Dias mais difíceis virão, querida!

Seja isto que te escrevo –
A roldana de estendal que te traga a mim…

Tenho evitado toda e qualquer vichyssoise
A não ser por debaixo da mesa…
E sei agora que as ideias ou se lavam à mão
Ou encolhem…

Sei a textura exacta do teu suspiro –
Frágil miado de porcelana!
Sei o quanto anseias sonhar sem quilha,
Roçares-te pornograficamente nas nuvens…

Na esquina mais humana de ti,
Sou abordado por todo o tipo de gente…
Não te dá sossego, essa corja?
Não te será permitido um laivo de solidão?

Hei-de cavar funda a cova no peito
E enterrar-te viva dentro de mim…

Dias mais difíceis virão, querida!


narciso pinto



31 janeiro 2016

dylan thomas / não entres docilmente nessa noite serena



Não entres docilmente nessa noite serena,
porque a velhice deveria arder e delirar no termo do dia;
odeia, odeia a luz que começa a morrer.

No fim, ainda que os sábios aceitem as trevas,
porque se esgotou o raio nas suas palavras, eles
não entram docilmente nessa noite serena.

Homens bons que clamaram, ao passar a última onda, como podia
o brilho das suas frágeis acções ter dançado na baía verde,
odiai, odiai a luz que começa a morrer.

E os loucos que colheram e cantaram o voo do sol
e aprenderam, muito tarde, como o feriram no seu caminho,
não entram docilmente nessa noite serena.

Junto da morte, homens graves que vedes com um olhar que cega
quanto os olhos cegos fulgiriam como meteoros e seriam alegres,
odiai, odiai a luz que começa a morrer.

E de longe, meu pai, peço-te que nessa altura sombria
venhas beijar ou amaldiçoar-me com as tuas cruéis lágrimas.
Não entres docilmente nessa noite serena.
Odeia, odeia a luz que começa a morrer.



dylan thomas
tradução de fernando guimarães




30 janeiro 2016

pablo garcia casado / amor



uma mulher sempre metida na cozinha
sempre com problemas sempre com a regra
o lixo não te esqueças de ir passear o cão

uma doença que se cura com os anos
um rádio que começa a perder as emissoras
um comboio que faz sempre o mesmo percurso

entre duas cidades cada vez mais afastadas


pablo garcia casado
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




29 janeiro 2016

arsenii tarkovskii / quando sob os pinheiros



Quando sob os pinheiros, e quando escrava,
minha alma vestia um corpo torturado,
ainda a terra voava célere para mim
e as aves se desvairavam ao som rouco dos cavalos.

Agulhas negras, escamas de pinheiro,
                                                                    as cascas,
e rubro sob os pés jorra
                                           o mirtilo,
e meus furiosos dedos rasgam pálpebras,
meu corpo quer viver. Será que este
                                                                  sou eu?

Serei eu de carbonizada boca procurando
os joelhos das raízes secas, e que a terra
engole como outrora o sangue, e as irmãs
de Faetonte se transfiguram, choram âmbar?



arsenii tarkovskii
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. nina guerra e filipe guerra
assírio & alvim
2001




28 janeiro 2016

irene lisboa / pequenos poemas mentais



           Mental: nada, ou quase nada sentimental.

I

Quem não sai de sua casa,
não atravessa montes nem vales,
não vê eiras
nem mulheres de infusa,
nem homens de mangual em riste, suados,
quem vive como a aranha no seu redondel
cria mil olhos para nada.
Mil olhos!
Implacáveis.
E hoje diz: odeio.
Ontem diria: amo.
Mas odeia, odeia com indômitos ódios.
E se se aplaca, como acha o tempo pobre!
E a liberdade inútil,
inútil e vã,
riqueza de miseráveis.

II

Como sempre, há-de-chegar, desde os tempos!
Vozes, cumprimentos, ofegantes entradas.
Mas que vos reunirá, pensamentos?
Chegais a existir, pensamentos?
É provável, mas desconfiados e inválidos,
Rosnando estúpidos, com cães.

Ó inúteis, aquietai-vos!
Voltai como os cães das quintas
ao ponto da partida, decepcionados.
E enrolai-vos tristonhos, rabugentos, desinteressados.

III

Esse gesto...
Esse desânimo e essa vaidade...
A vaidade ferida comove-me,
comove-me o ser ferido!

A vaidade não é generosa, é egoísta,
Mas chega a ser bela, e curiosa!
E então assim acabrunhada...
Com franqueza, enternece-me.

Subtil
A minha mão que, julgo, ridicularizas,
de que desconheces a suavidade,
cerra-te pacificamente os olhos
e aquieta benignamente o ar.
Paira sobre a tua cabeça, móbil, branda,
na prática de um velho rito,
feminil, piedoso, desconhecido e inconfesso.

IV

Ó luxúria brutal, perversa e felina,
dos outros, alheia,
sem pensamentos nem repouso!
retira-me da frente o venenoso cálice,
a tua peçonha adocicada.
Que a morte, o nirvana, a indiferença
dos longuíssimos anos sem sobressaltos, me retome.

Abro os braços e meço: cá, lá... cá, lá...
solidão, infinita solidão!
E neste movimento, neste balouço, adormeço,
Cá, lá... morte, vida... morte, vida...
Todas as ausências, todas as negações.

V

Os poetas cumprimentam-se, delicados.
Cada um como seu metro, o seu espírito, a sua forma;
as suas credenciais...
Mas são simpáticos os poetas!
Sensíveis, femininos, curiosos.
Envolve-os um mistério.
Não! Esta é a linguagem de toda gente: o mistério...
Que mistério?
Os poetas são apenas reservados, são apenas...
perturbados e capciosos.

VI

Cai um pássaro do ar, devagar, muito devagar.
E as árvores soturnas não se mexem.
Estio!
Não se vêem bulir as árvores, em bloco, ou aos arcos,, estampadas...
Elegante Lapa! Sol fosco, paisagem de manhã.
A gente do sítio, pobreza e riqueza, ainda recolhida.
Aqui, uma janela discreta que se abre, preta, cega.
Ali outra fechada.
E esta alternância, bastante irregular, vai-se repetindo, repete-se...

E eu, ai eu! Prisioneira, sempre prisioneira; tão enfadada!


irene lisboa
um dia e outro dia…
1936