27 dezembro 2015

herberto helder / o poema


II

A palavra erguia-se como um candelabro,
a voz ardia como um inesperado campo de giestas.
E nós sustínhamos em nossos dois ombros o fulgor
e a tristeza divina. Quando os arbustos
eram bichos iluminando as regiões do céu e ao rés
da terra as pedras cantavam e os mitos davam
a forma das coisas.
Quando colhíamos o espanto nas mãos dolorosas
e em frente ao povo íamos cantando
a fábula e o próprio rosto do milagre.
Quem se assenta à nossa mesa? — dizíamos. — Quem
sobre a mesa coloca um beijo sem peso e sem mácula?

Nada existe que não seja inocente, e o hálito
perpassa à flor dos lábios,
a força da memória deu a alma ao vinho e o imponderável
ao primeiro sorriso. Toda a casa
acaba a noite, cria a auréola
em torno do objecto, enche cada instante
de um poder obscuro.
A delicada taça partia-se nas mãos — sangue:
um sinal, um símbolo. E cantar
era conceber uma estrela, um testemunho da mais alta
loucura. Cantar era uma razão
de morte e de alegria.

Desfaziam-se as pálpebras na jovem carne, na esfera
da luz, ou na ressonância e volúpia
do tempo. E a mão procurava o punhal,
a boca beijava a laje nua. Do braço divino
sumia-se o fogo e o archote corria sobre as águas
ou no coração da sementeira.

E era então o fogo aquilo a que o beijo,
em sua graça, firmemente aspirava.
Nenhuma vida tanto se gastou
que não seja visitada, nenhum deus
é tão grande que se não perca na substância
da sombra. — Uma flor e um grito,
um copo e um breve minuto, ou a aurora
cortando o peito, ou o primeiro respirar
de um pensamento.

Cantar onde a mão nos tocou,
o ombro se acendeu, onde se abriu o desejo.
Cantar na mesa, na árvore
sorvida pelo êxtase.
Cantar sobre o corpo da morte, pedra
a pedra, chama a chama — erguido,
                                                            amado,
                                                                          aprendido.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996




26 dezembro 2015

alberto caeiro / não me importo com as rimas


XIV

Não me importo com as rimas.  Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me 
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior 
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado, 
E a minha poesia é natural corno o levantar-se vento...


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




24 dezembro 2015

padre antónio vieira / sermão de santo antónio


(…)

Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo Antônio – e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador – bem vos pudera alegar consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus pais e se recolheu a uma religião, onde professasse perpétua clausura. E porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal. Para fugir e se esconder dos homens mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota, com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe sucedeu com seus próprios irmãos no capítulo geral de Assis. De ali se retirou a fazer vida solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus como por força o não manifestara e por fim acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.
(…)


padre antónio vieira
sermão de santo antónio




23 dezembro 2015

mário dionísio / a casa deserta



Ah nada pior que a casa deserta,
sozinha, sozinha.


O fogão apagado e tudo sem interesse.
O mundo lá longe, para lá da floresta.
E o vento soprando
a chuva caindo
a casa deserta...


Ah nada pior que estes dias e dias,
de cachimbo aceso, com as mãos inertes,
com todas as estradas inteiramente barradas,
ouvindo a floresta.
Com tudo lá longe, na casa deserta,
o vento soprando
e a chuva caindo, na noite caindo...


Há uma cancela que range nos gonzos
um velho cão de guarda que ladra sem motivo
- parece que é gente que vem a entrar...


E é só o vento soprando, soprando
e a chuva caindo...


Mudaram muita vez as folhas da floresta.
Os olhos do homem são olhos de doido.
Fogão apagado, aceso o cachimbo, o mundo lá longe.


E o vento soprando
a chuva caindo
a casa deserta...



mário dionísio
poesia incompleta
publicações europa-américa
1982




22 dezembro 2015

stella zagatto paterniani / requiem



que me escreva cartas de amor com toda a frequência
                                                                                                 possível
mas não a frequência exata que as exima de me surpreender.

que me console e carregue e acolha
sob chuva ou arco-íris
que me pinte
(ar de rua, suor, carinho no enlace dos dedos,
penumbra, dança, insustentável força e meneios)
em cores sem nome

e me beije, que me beije como a única mulher a ti jamais
                                                                                                entregue
conhecida em alma

e teu corpo me sonha.

e que, acima de tudo meu amor
saiba quando calar.


stella zagatto paterniani
natália gregorini
deleites e ladrilhos
editora medita
2013




21 dezembro 2015

miguel torga / combate



Manhã do mundo, que não amanheces!
Tantos poetas a cantar na sombra,
E nenhuma alvorada se anuncia!
Somos nós maus profetas no degredo,
Ou és tu, sol da vida, que tens medo
De iluminar a nossa profecia?



miguel torga
diário VIII
1959



20 dezembro 2015

almeida garrett / voz e aroma



A brisa vaga no prado,
Perfume nem voz não tem;
Quem canta é o ramo agitado,
O aroma é da flor que vem.

A mim, tornem-me essas flores
Que uma a uma vi murchar,
Restituam-me os verdores
Aos ramos que eu vi secar...

E em torrentes de harmonia
Minha alma se exalará,
Esta alma que muda e fria
Nem sabe se existe já.


almeida garrett
folhas caídas




19 dezembro 2015

per aage brandt / há três pontos de vista no mundo


*

há três pontos de vista no mundo:
o de um ser humano o de um narrador e
o de sirius que é o único que sabe tudo
enquanto o narrador sabe um pouco
de tudo e o ser humano o
suficiente sobre como é
amar alguém até ao ponto de o próprio tempo
suspender a respiração ou choramingar e rasgar
o céu e aterra até que eles se confundam
 e tudo isto sendo o que é talvez o
                                                        (fim)

*



per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004




18 dezembro 2015

casimiro de brito / vou perdendo películas do meu corpo


121

incertam funeris horam
Propércio, Elegias, II, 27

  
Vou perdendo películas do meu corpo
em cada dia que passa, um cabelo, um reflexo,
um dente que talvez nem me faca falta
amanha. Mas os dentes nunca partem
sozinhos, levam consigo um certo modo
de olhar para as coisas e então já não sou
quem fui quando antigamente
saltava para as ondas e me divertia
como se fosse um anfíbio louco
nas praias desertas. Deserto
sou agora – deserto e talvez um pouco
mais sábio, um homem que sabe
que o seu corpo foi comido
pela alma. Vou perdendo
nos dentes e nos cabelos

o cerne da madeira bêbeda que parecia
nave de catedral – o que vou ganhando
não sei ainda sabendo agora
que bebo e amo e devoro
os minutos voláteis que preparam
a hora da minha morte.


casimiro de brito
encontros de talábriga
festival internacional de poesia de aveiro
1999/2003




17 dezembro 2015

josé agustin goytisolo / onde não estivesses




Onde não estivesses, como neste recinto,
cercada pela vida,
em qualquer paradeiro, conhecido ou distante,
leria teu nome.

Quando começaste a viver para o mármore, aqui,
quando se abriu para a sombra teu corpo rasgado,
puseram uma data: dezassete de Março. E suspiraram
tranquilos e rezaram por ti. E acabaram-te.

Em redor de ti, do que foste,
em poços semelhantes e em funestas prateleiras,
outros, sal ou cinza, tornam-te imperceptível.

Olho tudo, apalpo tudo:
ferros, urnas, altares,
uma antiga vasilha, retratos carcomidos pela chuva,
nomes, citações sagradas,
anéis de latão, coroas sujas, horríveis
poesias...
Quero ser familiar com tudo isto

Mas teu nome continua aqui,
tua ausência e tua lembrança
continuam aqui.
                 Aqui!
Onde não estarias
se uma bela manhã, com música de flores,
os deuses não te tivessem esquecido.



josé agustin goytisolo
1928
antologia da poesia espanhola contemporânea
tradução de josé bento
in poemário, 17.03.2001
assírio & alvim





16 dezembro 2015

maria do rosário pedreira / quantas pessoas caminham na



Quantas pessoas caminham na
minha direcção? Quantas me
descobrem por entre a multidão
e pousam os seus olhos inteiros
nos meus olhos? Podia acreditar

que entre elas está o homem que
trocaria comigo os dedos sobre a
mesa, uma palavra que fosse gomo
de laranja e poema, o corpo aceso

sob o lençol cansado de mais um
dia. Mas quantos destes rostos de
pedra que me cercam escondem o
seu pelas ruas desta tarde? Quantos
nomes de acaso e de silêncio terei
eu de escutar para descobrir o seu

no meu ouvido? Quantas pessoas
caminham contra mim?
  

maria do rosário pedreira
nenhum nome depois
gótica
2004




15 dezembro 2015

margarida vale de gato / egon schiele



Quero comprar-lhe
as caras as cartas as casas
as províncias
herdar-lhe as relíquias
de nu em desleixo
com desgrenhadas axilas
e as mamas aflitas
às cavalitas das costelas
e o excessivo porte
do escroto de mamífero
na esquálida armadura
o pequenino pénis exposto
e os pés em aquilino
fio de dança em fuga da moldura

que ele tinha desejo
arborescente e murcho
de profeta e de besta
e aquele escroto era útero
de prematuros bebés
que o olho rubro calcina
(insidioso e cru o trato
entre mãe e artista)
têxteis nervos e espessura
ou cercas em cumes
de realistas falésias
e as cruzes de braços
insaciados de entrega

  
margarida vale de gato
relâmpago
revista de poesia nr 34
abril 2014
fundação luís miguel nava
2014




14 dezembro 2015

camilo pessanha / interrogação



Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.

  
camilo pessanha
clepsidra