26 novembro 2014

fernando pinto do amaral / á chegada do inverno



Nem sempre a vida acolhe ou alimenta
os nomes do passado, o seu abismo
repetido num sonho, na mais lenta
assombração, no mais íntimo sismo

Do que chamamos alma. Não existo
sem essa febre mansa que relembro
enquanto as nuvens cobrem tudo isto
com o frio escuro de um dezembro

Longe de mim, de ti, de qualquer lei
ou juízo a que dêmos um sentido:
o que finjo saber é o que não sei
e as palavras colam-se ao ouvido.

  


fernando pinto do amaral
às cegas
relógio d´ água

1997




25 novembro 2014

sylvia plath / eu quero, eu quero



De boca aberta, o deus recém-nascido
imenso, calvo, embora com cabeça de criança,
gritou pela teta da mãe.
Os vulcões secos calaram e cuspiram,

a areia esfolou o lábio sem leite.
Gritou então pelo sangue paterno
que agitou a vespa, o tubarão e o lobo
e veio engendrar o bico do ganso.

De olhos secos, o inveterado patriarca
ergueu seus homens de pele e osso:
farpas sobre a coroa de fio dourado,
espinhos nas hastes sangrentas da rosa.



sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990





23 novembro 2014

alberto caeiro / a neve



A NEVE PÔS uma toalha calada sobre tudo.
Não se sente senão o que se passa dentro de casa.
Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar.
Sinto um gozo de animal e vagamente penso,
E adormeço sem menos utilidade que todas as acções do mundo.



alberto caeiro






22 novembro 2014

josé gomes ferreira / e aqui estou à espera!...



XI

E aqui estou à espera!...
─   com  este destino
de dar sombra aos muros…

Mas à espera de quê?

Que o despenhar no abismo
me crie enfim asas?



josé gomes ferreira
cabaré 1933
poesia I
portugália
1972




21 novembro 2014

charles simic / hotel insónia




Gostava da minha pequena toca,
A janela face a um muro de tijolo
Ao lado havia um piano.
Todos os meses havia umas quantas noites
Em que um velho inválido
Vinha tocar "Meu Paraíso Azul".

Em geral, porém, reinava o silêncio.
Cada quarto com sua aranha de pesado sobretudo
Caçando sua mosca com uma teia
De fumo de cigarro e devaneio
Tão escuro,
Que nem a minha cara via no espelho da barba.

Às cinco da manhã o rumor de pés descalças na escada.
É o "Cigano", que lê a sina
Na loja da esquina, e vai mijar depois de uma noite de amor.
Certa vez, também o soluçar de uma criança.
Tão perto, que por momentos pensei ser eu próprio a soluçar.


  

charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2






20 novembro 2014

alexandre o'neill / amor



O amor é o amor- e depois?
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos- e somos um? somos dois?
espirito e calor!

O amor é o amor e depois?!


 alexandre o'neill 





19 novembro 2014

heiner müller / cárie dentária em paris


algo me devora
fumo demais
bebo demais
morro lentamente demais


Ontem comecei
a matar-te, meu amor,
agora amo o teu cadáver
quando estiver morto
o meu pó gritará por ti.


heiner müller
XI poemas de heiner müller
tradução de luís costa
Werke 1, Die Gedichte,
erste Auflage 1998, Suhrkamp





18 novembro 2014

vittorio sereni / dentro de mim a tua memória é um ruído



Dentro de mim a tua memória é um ruído
de velocípedes que vão
silenciosamente  onde a altura
do meio-dia desce
ao mais incandescente crepúsculo
entre portões e casas
e suspirando encostas
de janelas reabertas ao verão.
Só, apenas para mim, distante
permanece um gemido de comboios,
de almas que se vão embora.

E aí, leve, vais tu sobre o vento
perdes-te na noite.


vittorio sereni
frontiera
edizione di corrente
milano 1941


(versão de stefano cortese e gil t. sousa)




17 novembro 2014

pablo neruda / tu eras também uma pequena folha



Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

  

pablo neruda




16 novembro 2014

laurie anderson / o sonho anterior



          (para walter benjamim)


Hansel e Gretel estão vivos e de boa saúde
E a viver em Berlim
Ela é empregada num bar
Ele teve um papel num filme de Fassbinder
E à noite sentam-se a descansar
Bebendo Schnapps e gin
E ela diz: Hansel, dás mesmo cabo de mim
E ele diz: Gretel, quando queres és mesmo cabra
Ele diz: Desperdicei toda a minha vida com a nossa estúpida lenda
Quando o meu verdadeiro e único amor
Era a bruxa má

Ela disse: O que é a história?
E ele disse: A História é um anjo
Soprado para trás na direcção do futuro
Ele disse: A História é uma pilha de destroços
E o anjo quer voltar para trás e consertá-los
Reparar as coisas que foram quebradas
Mas há uma tempestade que sopra do Paraíso
E que não pára de empurrar o anjo
Para trás na direcção do futuro
E esta tempestade, esta tempestade
Chama-se
Progresso.





laurie anderson
anéis de fumo
poemas
tradução de joão lisboa
assírio & alvim
1997





15 novembro 2014

álvaro de campos / apontamento



A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem porque ficou ali.




álvaro de campos








14 novembro 2014

manoel de barros (1916-2014)



Matéria de poesia



(1)

Todas as coisas cujos valores podem ser
Disputados no cuspe à distância
Servem para a poesia

O homem que possui um pente
E uma árvore
Serve para poesia

Terreno de 10×20, sujo de mato – os que
Nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
Servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
São bons para poesia
As coisas que não levam a nada
Têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
Tem seu lugar
Na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
Caco de vidro, garampos,
Retratos de formatura,
Servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
Por exemplo: pedras que cheiram
Água, homens
Que atravessam períodos de árvore,
Se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
E que você não pode vender no mercado
Como, por exemplo, o coração verde
Dos pássaros,
Serve para poesia

As coisas que os líquenes comem
-sapatos, adjetivos -
têm muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
Civilização rejeita, pisa e mija em cima,
Serve para poesia

Os loucos de água e estandarte
Servem demais
O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso
Tudo que explique
     O alicate cremoso
     E o lodo das estrelas
Serve demais da conta

Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique
     a lagartixa de esteira
     e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia

O que é bom para o lixo é bom para poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
A palavra repositório eu conheço bem:
     Tem muitas repercussões
Como um algibe entupido de silêncio
     Sabe a destroços

As coisas jogadas fora
Têm grande importância
- como um homem jogado fora

Aliás, é também objeto de poesia
Saber qual o período médio
Que um homem jogado fora
Pode permanecer na Terra sem nascerem
Em sua boca as raízes da escória

As coisa sem importância são bens de poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
Ao poema e as andorinhas de Junho.


manoel de barros
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




13 novembro 2014

eugénio de andrade / os amantes sem dinheiro



Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com  a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.



eugénio de andrade