04 outubro 2014

manuel antónio pina / o caminho de casa



XII

«As palavras fazem
sentido (o tempo que levei a descobrir isto!),
um sentido justo,
feito de mais palavras.
(A impossibilidade de falar
e de ficar calado
não pode parar de falar,
escrevi eu ou outro).

Volto a casa,
ao princípio,
provavelmente um pouco mais velho.
As mesmas árvores,
mais velhas,
a lembrança delas
passando sem tempo nos meus olhos,
como uma ideia feita ou como um sentimento.

Entre o que regressa
e o que partiu um dia
ficaram palavras;
talvez (quem sabe?)
algum sentido.
Agora, como um intruso, subo as
escadas e abro a porta; e entro, vivo,
para fora de alguma coisa morta.

Senta-te aqui, fala comigo,
faz sentido
e totalidade à minha volta!»



manuel antónio pina
monólogos
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012




03 outubro 2014

vladimir maiakóvski / minha universidade




Vocês sabem francês.
Dividem,
multiplicam,
declinam perfeitamente.
Pois declinem!
Me digam: vocês
com os edifícios
sabem cantar?
A língua dos trens vocês compreendem?
Os discípulos
estendem as mãos
somente nos livros
e cadernos da tabuada.
Eu
aprendi o alfabeto nas placas
folheando páginas de ferro e alumínio.
Os mestres
apertam em suas mãos
a terra
arrancando-lhe cascas,
gomos,
mas toda ela não passa
de um globo
em escala.
Eu
de bruços aprendi geografia ─
não por acaso: dormia no chão
deitado nas tábuas
de meu mais regular declínio.
A Ilovaiski tortura uma questão:
─  Seria mesmo ruiva a barba do Barba-Ruiva?
Não me importa essa burrice de holofotes.
Qualquer história das ruas
para mim é mais digna de nota.
Pagam Boaventuras (para odiar
desventurados)
e fazem patíbulo de sobrenomes
do prestigioso pódio.
Eu
aos gordos
desde a infância aprendi a sentir ódio.
Eu era pobre
e me vendia pelo almoço.
Depois retinirão ideiazinhas
como tostões de cobre
para levar também as moças.
Eu somente com os edifícios me entretinha.
Só me respondiam os encanamentos.
À espera do que eu lhes lançasse na orelha
as calhas se esticavam dos telhados.
Depois, uns contra os outros
e todos contra as estrelas,
em línguas que eu lhes tenha alumiado,
estalavam cata-ventos.



vladimir maiakóvski
uma nuvem de calças e liubliú
tradução de andré nogueira
editora medita
2013





02 outubro 2014

ruy belo / toque de campainha



Entre  rosa e a chuva é tudo solidão
Nenhuma mão vence a distância
que separa uma e outra ou no portão
começa e termina na infância

Ia jurar que outrora estive aqui
ou uma que não esta porta ao fim passarei
E tudo coube no olhar com que não vi
aquele rosto ali mas outro que não sei



ruy belo
a cidade
todos os poemas I
assírio & alvim
2004




01 outubro 2014

daniel filipe / 1.ª canção



De ti sabes o nome
a hora exacta o martelo no relógio
a escassa visão do tempo  novo a vida
sempre imatura e entanto desejada

De ti sabes a calma citadina
a distância entre a casa e o emprego o perfil
da amante
o sabor do café matinal
a maresia súbita

De ti sabes a idade a altura o peso e o vigor
dos músculos a suave atracção
da porta do cinema
a misteriosa voz lunar palavras soltas
 gagarine vostok estação espacial

De ti sabes os sinais característicos
quando pode ser escrito medido registado
em fichas passaportes cartões de identidade

Só não sabes da bala da pólvora da arma
só não sabes das mãos como as tuas plebeias
erradas mãos do povo
só não sabes do medo do ódio da terrível impotência

Só não sabes da morte antes do tempo
exilado na pátria numa tarde de Maio



daniel filipe
pátria lugar de exílio




30 setembro 2014

tereza balté / os idílios




Sente-se a força empresta-se-lhe face
converte-se a um nome a sujeição
prolonga-se o instante delicado
em risco no papel em ritmo no teclado

esteriliza-se num cristal a víscera
com etiqueta de onde foi colhida
se era macho ou fêmea e em que data
dispensam a circunstância implícita
da sua história íntima

assim o amor incomparável




tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977






29 setembro 2014

josé alberto oliveira / a gata de beethoven



Entrada a noite,
a gata Electra
esquece vinganças
e senta-se
ao meu lado.
Ouvimos os trios de cordas,
eu bebo whisky
a bem da morte sóbria
ou, pelo menos,
de um sono conforme;
a via parece suave,
a pulsação
quase perfeita
e a gata pensa
que não há direito
que alguém sofra.



josé alberto oliveira
resumo a poesia em 2011
assírio & alvim
2012




28 setembro 2014

charles simic / a cadeira



Em tempos esta cadeira estudou Euclides.

No assento estava o livro dele.
As janelas da escola abertas!
De modo que o vento ia passando as páginas
Sussurrando as gloriosas demonstrações.

O sol pôs-se por trás dos telhados dourados.
Por toda a parte as sombras iam-se alongando.
Mas sobre isso Euclides não disse nada.



charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2




27 setembro 2014

josé de almada negreiros / nós e as palavras



Nós não somos do século de inventar as palavras.
As palavras já foram inventadas .Nós somos do século
de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas.



josé de almada negreiros




26 setembro 2014

ted hughes / um sonho




O teu pior sonho
tornou-se realidade: aquele toque à campainha ─
não um simples acaso num milhão
mas o meteorito, caído pela nossa chaminé abaixo,
com o nosso nome gravado.

Não são os sonhos, disse eu, mas as estrelas fixas
que governam a nossa vida. A ânsia do ser inteiro,
inexorável, como uma pessoa a dormir absorvendo
ar para dentro dos pulmões. Tiveste de erguer
a tampa do caixão uma polegada.
No teu sonho ou no meu? Estranha caixa de correio.
Retiraste o envelope. Era
uma carta do teu pai. «Cheguei.
Posso ficar contigo?» Eu não disse nada.
Para mim, um pedido era uma ordem.

Depois veio a Catedral.
Chartres. Seja como for tínhamos chegado a Chartres.
Não era a primeira vez que lá ias.
Recordo pouco mais
que um jarro bretão. Encheste-o
com tudo o que tínhamos. Até ao último franco.
Disseste que era para a tua mãe.
Esvaziaste o nosso oxigénio
para dentro daquele jarro. Chartres
(isto consegui salvar)
ficou suspensa no teu rosto, uma mantilha,
escurecida, um rendilhado carbonizado ─
como depois de um incêndio. Como uma enfermeira,
cuidaste do que restava do teu pai.
Vertendo as nossas vidas para fora daquele jarro
no seu pequeno-almoço. Depois partiste-o,
fizeste-o em bocados, estrelas grosseiras,
e deste-os à tua mãe.

«Quanto a ti», disseste-me, «dou-te autorização
para te lembrares deste sonho. E para pensares nele.»



ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000




25 setembro 2014

bénédicte houart / conduzi para vale de canas




conduzi para vale de canas
com uma corda
no lugar do morto
bem sei que parece tolice, mas
enquanto escolhia a árvore
recordei-me da araucária
que há anos ardeu
sentei-me onde as suas cinzas
foram sepultadas e chorei

foi assim, juro, que
por este dia me salvei



bénédicte houart  
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012




24 setembro 2014

telo de morais / free-jazz


"jazz foi sempre tão free
Ornette não tem razão
Armstrong em New Orleans
depois em Chicago
tocava gravava a liberdade do som
improvisava o que muito bem queria e lhe apetecia
improvisar é ser livre"



FREE-JAZZ

O perfume das palavras em brasa:
tições no turíbulo da excitação.

O incenso no diálogo do amor:
o som estridente da trompete
com a voz rouca e quente
de Louis Armstrong.

New Orleans
velhas casas do vieux carré
noites de cálido afago
blues e spirituals
que estremecem o corpo
colados na alma.

Brilham as ruas,
a pele das mulheres,
os cetins de homem de gestos acetinados.

Terra antiga
escrava negreira
onde foi parido o jazz
para ser baptizado nas águas do Mississipi
e cantar a liberdade.



telo de morais
poezz
almedina
2004



23 setembro 2014

fernando guimarães / verona



Olhamos os caminhos da cidade,
os mais secretos, os que não existem,
ladeados por casas, muros, grades
que não passam de imagens, puros símiles
 
daqueles que nós sempre conhecemos.
Eram como um limite, agora imersos
na súbita memória de outro tempo
onde se encontram finalmente os mesmos
 

vultos que a cada instante se perdiam
para serem apenas a suspeita
se alguém que ao despertar já descobrira

quanto maior se torna ou mais intensa
a imagem dos lugares que principiam
nessa cidade que só foi ausência.
   


fernando guimarães



22 setembro 2014

cesare pavese / antepassados




Estupefacto com o mundo, aconteceu-me uma idade
em que desferia murros no ar e chorava sozinho.
Ouvir discorrer os homens e as mulheres
sem saber que responder dá pouca alegria.
Mas também essa idade se foi: já não estou só
e, se não sei responder, passo bem sem isso.
Encontrei companheiros ao encontrar-me a mim mesmo.

Descobri que, antes de nascer, vivi
sempre em homens sólidos, senhores de si,
e nenhum deles sabia as respostas e não perdiam a calma.
Dois cunhados abriram uma loja — a primeira fortuna
da nossa família — e o de fora era sério,
calculista, sem piedade, mesquinho: uma mulher.
O outro, o nosso, na loja lia romances
— para uma aldeia isso era muito — e os clientes que entravam
ouviam declararem-lhes, em frases concisas,
que não havia açúcar e sulfato também não,
que estava tudo esgotado. Aconteceu mais tarde
que este último deu uma mão ao cunhado falido.
Ao pensar nesta gente sinto-me mais forte
do que a olhar para o espelho enchendo o peito de ar
e os lábios forçados num sorriso solene.
Houve um avô meu, em tempos remotos,
que se deixou enganar por um dos seus homens da lavoura
e então sachou ele próprio as vinhas — no Verão —
para ver um trabalho bem feito. Assim
vivi sempre e sempre tive
uma cara honrada e paguei tudo a pronto.


E na família as mulheres não contam.
Quero dizer, as nossas mulheres estão em casa
e dão-nos à luz e não dizem nada
e não contam para nada e não as recordamos.
Cada mulher infunde-nos no sangue uma coisa nova,
mas todas elas se anulam nesse trabalho e nós,
assim renovados, somos os únicos que perduram.
Somos cheios de vícios, de tiques e de horrores
— nós, os homens, os pais — houve um que se matou,
mas uma só vergonha há que nunca nos tocou,
jamais seremos mulheres, jamais sombra de ninguém.

Encontrei uma terra ao encontrar os companheiros,
uma terra má, onde é um privilégio
não fazer nada, a pensar no futuro.
Porque o trabalho só não nos basta, a mim e aos meus;
sabemos rebentar-nos a trabalhar, mas o grande sonho
dos meus pais foi sempre um nada fazer de machos.
Nascemos para vaguear por aqueles cerros,
sem mulheres, e as mãos cruzá-las atrás das costas.



cesare pavese
diVersos n° 1
trad.carlos leite               
edições sempre em pé
1996