28 julho 2014

josé gomes ferreira / ouve, semente



Ouve, semente
que o vento trouxe:
a terra para que em flores rebente
também é movediça e doce?


josé gomes ferreira
província
1945
poesia III
portugália
1971



27 julho 2014

antónio ramos rosa / teu corpo principia

  

Dou-te um nome de água
para que cresças no silêncio.

Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.

Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)

Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.

Silêncio e sol - verdade,
respiração apenas.

Amor, eu sei que vives
num breve país.

Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.

Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.

O maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.

O vida perfumada
cantando devagar.

Enleio-me na clara
dança do teu andar.

Por uma água tão pura
vale a pena viver.

Um teu joelho diz-me
a indizível paz.



antónio ramos rosa
estou vivo e escrevo sol
1966 


26 julho 2014

john updike / açores



Grandes navios verdes
eis que navegam
ancorados, para sempre;
sob as águas

enormes raízes de lava
prendem-nos firmes
a meio do atlântico
ao passado.

Os turistas, pasmando
do convés,
proclamam aos guinchos lindas
as encostas malhadas

de casinhas
(confetti) e
doces losangos
de chocolate (terra).

Maravilham-se com
os campos graciosos
e os socalcos
feitos à mão para conter

os modestos frutos
das vinhas e das árvores
importadas pelos
portugueses:

paisagem rural
vindo à deriva
de há séculos;
a distância

amplia-se.
O navio singra.
Outra vez a constante
música alimenta

um vazio à popa,
os Açores sumidos.
O vácuo atrás e o vácuo
à frente são o mesmo.


john updike
trad. jorge de sena



25 julho 2014

alexandre m. jardim pimenta / porta


Era uma porta imensa
Imensa e terrível
Maior do que se pensa
Maior do que se sonha
Pétrea-impreterível
Sua visão era medonha.
Do Céu do Inferno ou da Lei
Não saberia lhes dizer
Tudo o que sei
É que seu ranger
Era interminável...
Sei que ante ela eu estava
Era insuportável
Mas ali eu permanecia
Ante ela eu esperava
Quem ou o que não sabia
Enquanto enlouquecia
Enquanto ela cantava
Cada vez mais estranho
Eu à mim me via
Tomado de espanto
Por aquele ebúrneo canto.
Não havia qualqueroutro ruído
Naquela noite de abandono
O vento mesmo havia recolhido
Suas mãos em seu profundo ventre
E diante a minha cara morta e sem sono
A imensa porta se abria
E algo me dizia: Entre!
... Sôfrega... violenta...
... Lenta... como uma condenação eterna
Imensa imensamente ela ia se abrindo
E cada rangido
Era cruel como um mugido
Dum animal perdido
Na noite erma, na noite sem forma,
Minha alma estava enferma
A porta vociferava
Tal qual relinchava
Como um animal esfaqueado
Inabilmente esquartejado
Sua chave era meu medo?
Algo dizia: Entre! Mas eu não entrava
E quanto mais eu ali esperava
Tão mais estranho ia ficando ali parado
Com minhas raízes mergulhando
Naquele sítio ao qual sabe-se lá
Como fui transportado
Até diante aquele ser realíssimo
 
Eu cada vez mais estranhíssimo
À beira da absoluta irrealidade
Por trás da porta não se podia apreender
Qualquer sinal de movimento ou claridade
Era só e só aquele ranger adstringente e seco
Até que um grito santo irrompeu do meu ser
Mas foi engolido pela imensidão e não houve sequer eco.
  

alexandre m. jardim pimenta




24 julho 2014

maria amélia neto / o medo


Surgiu
Por detrás
Da nuvem escura
Que tapou a lua.
Escorregou
Sobre a planície,
Negro,
Envolto
Em longas chamas.
Era meu.
Pertencia-me.
Era o medo


maria amélia neto
o vento e a sombra
1960


23 julho 2014

luís miguel nava / por trás do espelho



Há sítios, como aquele pedaço de parede a que se encoste um espelho, que, embora existam, estão mesmo à beira da absoluta irrealidade, a qual de tal maneira neles mergulha às vezes as raízes que quase os diríamos definitivamente transportados para o lado de que só deus pode apreender a luz.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002



22 julho 2014

eduardo guerra carneiro / algumas palavras



Algumas palavras são mais que o som.
Soltam-se delas lâmpadas, por vezes gritos.
Palavras que demoram na boca
com o sabor da manhã de Outubro, o claro gosto
da terra húmida, castanha até doer.

E há noites em que se ouve, além das horas,
um chamar por nós, um apelo
comovido. Podemos afirmar: são irmãos,
são mães, são companheiras. Mas é outra a face
revelada. Todo um ruído quente
quase desanimado. Um ténue vento
queimando-se nos vidros. Posso dizer:
em noites assim algumas morrem, muito antes
de saberem o nome e a voz. De quem
esse clamor? Saber que na antiga casa
as portas se abriram, um ou outro quarto
vai iluminar-se e começa o dia!

Há palavras lança-chamas.
Conheço algumas que nos fazem viver,
por não serem simples som
mas estradas incendiadas por dentro,
duplos corações batendo com o calor
da certeza do dia que se segue.
Assim me apoio às palavras,
procuro a tudo dar um nome,
e em noites destas ─ salientes, defumadas,
com vozes que nos chamam ─ sou um corpo
novo. Quebrando o meu silêncio,
povoo alguns espaços de alegria.
Rasgo o papel. Irado, desejoso
de saber até onde, quando, como,
o corpo vai. Nas palavras me encontro.
Cansado, quase morto, à espera,
sempre à espera. Nas palavras vivo,
denuncio ou ataco. Há um grande sol
à nossa espera. Quantos somos?



eduardo guerra carneiro
algumas palavras
1969





21 julho 2014

gil t. sousa / água-forte



Há uma passagem nas “Memórias de Adriano” em que ele diz que a palavra escrita o ensinou a escutar a voz humana, tanto como a atitude imóvel das estátuas o ensinou a apreciar os gestos; e que só posteriormente, a vida o fez compreender os livros. Mas, diz ele, ainda os mais sinceros, os livros mentem.

E aponta as razões dessa mentira conforme se trate da escrita dum filósofo, dum historiador, dum narrador ou dum poeta. Diz Adriano que os livros dos poetas mentem porque nos transportam a um mundo mais vasto ou mais belo, mais ardente ou mais doce que este que nos é dado, por isso mesmo um mundo diferente e praticamente inabitável.

Trago aqui esta nota porque partilho dessa visão de que só a vida nos faz compreender os livros.

Penso que é neste “mundo praticamente inabitável” que está a origem de toda a criação poética. Defendo que a poesia vive dessa esperança mínima de trazer a diferença para a realidade e de ir ganhando ar fresco ao irrespirável espaço da utopia, habitando-o.

Aos poetas, visionários ancestrais, cabe a missão de reescrever o mundo, usando a palavra como um buril. É um ofício antigo e sem fim que a alguns castiga com a eternidade, a outros com a loucura. Eles são como o pássaro do mineiro, vão à frente, muito à frente e morrem quando o mundo se fecha à beleza.  

Os livros mentem, sim, mas apenas porque serão sempre lugar de horizontes. Os livros são o lugar solene onde a nossa palavra, ou a nossa alma, pode ficar à espera de ser olhada e eu não tenho dúvidas de que quem partilha a alma exerce o mais alto grau da sabedoria.

O que vos dou neste livro são horizontes, cumprindo uma aspiração de juventude: que a vida faça de mim um velho lúcido, tranquilo e com um pouco de sabedoria.

Porto, 19 de Julho de 2014


gil t. sousa





apresentação do livro

água-forte
(poesia reunida)
de gil t. sousa
editora medita
campinas, brasil
www.editoramedita.com.br


com:
wladimir vaz
pedro gil-pedro
e maria tomé

em:
a cadeira de van gogh
rua morgado de mateus, 41
4000-334 porto


18 julho 2014

antónio maria lisboa / que pensar destes poemas



Que pensar destes poemas: mundo sem classificações,
esquemas, meios diversos e opostos de ser e conhecer,
de se comportar e fazer comportar, de amar e ser amado,
pulverizando as escalas, aparências,
arbitrariedades dialécticas do Bem e do Mal,
da sua reversibilidade, da sua interconexão?

- Porque funde num só corpo:
porque contém a Lei e contém o que destrói a Lei,
é o Paradoxo a forma do Saber Oculto.



antónio maria lisboa
a verticalidade e a chave
contraponto
19..


17 julho 2014

sophia de mello breyner andresen / noite



Noite de folha em folha murmurada,
Branca de mil silêncios, negra de astros,
Com desertos de sombra e luar, dança
Imperceptivel em gestos quietos.



sophia de mello breyner andresen
obra poética I
dia do mar 1947
caminho
1999



16 julho 2014

herberto helder / as musas cegas



IV

Mulher, casa e gato.
Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça
da casa, uma luz violenta.
Anda um peixe comprido pela cabeça do gato.
A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia
pensa-a, enquanto
o gato imagina a elevada casa.
Eternamente a mulher da mão passa a mão
pelo gato abstracto,
e a casa e o homem que eu vou ser
são minuto a minuto mais concretos.


A pedra cai na cabeça do gato e o peixe
gira e pára no sorriso
da mulher da luz. Dentro da casa,
o movimento obscuro destas coisas que não encontram
palavras.
Eu próprio caio na mulher, o gato
adormece na palavra, e a mulher toma
a palavra do gato no regaço.
Eu olho, e a mulher é a palavra.


Palavra abstracta que arrefeceu no gato
e agora aquece na carne
concreta da mulher.
A luz ilumina a pedra que está
na cabeça da casa, e o peixe corre cheio
de originalidade por dentro da palavra.
Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante.
Se toco (e é apaixonante)
a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra.
Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra.
Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher
com seu gato, pedra, peixe, luz e casa.
A mulher da palavra. A Palavra.


Deito-me e amo a mulher. E amo
o amor na mulher. E na palavra, o amor.
Amo, com o amor do amor,
não só a palavra mas
cada coisa que invade cada coisa
que invade a palavra.
E penso que sou total no minuto
em que a mulher eternamente
passa a mão da mulher no gato
dentro da casa.
  

No mundo tão concreto.

  

herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



15 julho 2014

heiner müller / as imagens



As imagens significam tudo a princípio. São sólidas. Espaçosas.
Mas os sonhos coagulam, fazem-se forma e desencanto.
Já o céu não há imagem que o fixe. A nuvem vista do
Avião: um vapor que nos tira a vista, O grou, um pássaro, mais
    nada
Até o comunismo, a imagem final, sempre refrescada
Porque lavada com sangue tantas vezes, o dia-a-dia
Paga-lhe um salário modesto, sem brilho, cego de suor,
Escombros os grandes poemas, como corpos muito tempo
    amados e
Postos de lado agora, no caminho da espécie exigente e finita
Nas entrelinhas lamentos

                                      sobre ossos feliz o carregador de pedra

Porque o belo significa o fim provável dos terrores.



heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997




14 julho 2014

gil t. sousa / onde mora o coração



ainda que um último navio
viesse pousar-me nas mãos
toda a solidão
das ilhas

e na brevíssima noite
dos mortos
rompesse límpida
a última nuvem
da saudade

ainda assim

só contigo subiria
toda a neve dos dias
até se esgotar
o vermelho

essa casa
onde mora o coração