22 abril 2014

edgar lee masters / sónia, a russa



Eu, nascida em Weimar
de mãe francesa
e pai alemão, um homem muito culto, professor,
fiquei órfã aos catorze anos,
e tornei-me na dançarina que em todas as avenidas de Paris
era conhecida como Sónia, a Russa.
Fui amante, no início, de vários duques e condes
e, mais tarde, de artistas pobres e poetas.
Aos quarenta, passée, rumei a Nova Iorque
e conheci no navio o velho Patrick Hummer,
forte e de rosto corado, apesar dos seus sessenta anos,
que regressava após ter vendido um carregamento
de gado em Hamburgo, na Alemanha.
Vim com ele para Spoon River e aqui vivemos
durante vinte anos ─  todos pensavam que éramos casados!
Este carvalho junto à minha campa é o retiro favorito
dos gaios azuis que palram e palram, todo o dia.
E por que não, se até as minhas cinzas se riem
quando pensam nessa coisa tão cómica a que chamam vida?



edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003



21 abril 2014

luís filipe parrado / partes de um todo



Esta tarde, sentado num banco do jardim,
tentava ler um livro difícil
enquanto esperava por ti.
O livro tornava mais dura, mais penosa, a espera.
Então levantei os olhos das páginas,
pousei o livro, vi um homem novo
aproximar-se e passar à minha frente
com um saco de plástico
com maçãs vermelhas numa das mãos
e uma caixa de cartão, com ovos, na outra.
O saco de plástico era transparente
e revelava nitidamente o esplendor e a forma
perfeita das maçãs, todas muito juntas
como partes de um todo.
Não consegui deixar de as olhar,
e tu chegaste logo de seguida.
Só agora, depois de jantar
e da loiça lavada, me lembrei do livro
que ficou no banco do jardim.



luís filipe parrado
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012



19 abril 2014

álvaro de campos / cruz na porta



Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,  
Que subitamente, como uma sufocação, me aflige  
O coração que, de repente, 
Entre o que vive, se esquece. 
Não sei qual é o sentimento 
Que me desvia do caminho, 
Que me dá de repente 
Um nojo daquilo que seguia, 
Uma vontade de nunca chegar a casa, 
Um desejo de indefinido. 
Um desejo lúcido de indefinido. 
   
Quatro vezes mudou a 'stação falsa 
No falso ano, no imutável curso 
Do tempo consequente; 
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde, 
E não sabe ninguém qual é o primeiro, 
Nem o último, e acabam.

  

álvaro de campos




18 abril 2014

hans-ulrich treichel / minotauro I



Quando eu ara novo errava
errava pelos longos corredores sem sombra
do meu palácio e uivava como o vento
nas florestas. Agora estou aqui, neste
chão arenoso, à espera: há-de vir alguém,
de machado à cintura, para me rachar a cabeça.
Mas eu só ouço a minha respiração arrastada e
às vezes um restolhar entre as pedras.
Cansado da espera e cego, como hei-de
encontrá-lo, a esse único hóspede?



hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994



17 abril 2014

josé miguel silva / esconde-esconde




A nossa vida, libertada, pode agora
começar, dissemos, com o optimismo
de quem inaugura um abrigo decente
e se pretende a salvo das cargas
do mundo. A salvo? Lá mais para
diante se verá que não é bem assim.
Mas por enquanto não pensemos nisso.
Apreciemos a herança de cada tarde,
quando o oiro do crepúsculo acumula
sentimento sobre muros tão perfeitos
que podiam estar no British Museum
e nenhuma convulsão nos prende a vista.

  

josé miguel silva
serém, 24 de março
averno
2011




16 abril 2014

luis muñoz / esta



Esta é a noite
com seu dorso de iguana.
Não penso ter medo dela
nem pelo que conjura
nem pelo que ilumina.

Teu medo não acaba sem o meu
quando são uma força.



luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



15 abril 2014

paul éluard / ela está de pé nas minhas pálpebras



Ela está de pé nas minhas pálpebras
com os dedos nos meus entrelaçados.
Ela cabe toda em minhas mãos,
ela tem a cor dos meus olhos
e desaparece na minha sombra
como uma pedra sobre o céu.

Tem sempre os olhos abertos
e não me deixa dormir.
Os sonhos dela à luz do dia
fazem os sóis evaporar-se,
fazem-me rir, chorar e rir,
falar sem ter nada a dizer.




paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977




14 abril 2014

konstandinos kavafis / desideri


1
DESEJOS
Como corpos belos dos que morrem sem ter envelhecido
— e são guardados, em lágrimas, num mausoléu magnífico,
com rosas na fronte e com jasmins aos pés —
assim os desejos são, desejos que esfriaram
sem serem consumados, sem que um só fruísse
uma noite de prazer, ou uma aurora que a lua inda ilumina.



constantino cavafy
90 e mais poemas
trad Jorge de Sena
edições asa
2003



13 abril 2014

miguel martins / provavelmente


Provavelmente, a próxima vez que ouvires falar de mim
será quando te disserem que morri
e que morri por minhas próprias mãos
(isso acontece).

Isso acontece do outro lado da ternura,
onde ela é demasiada e coisa rara,
vermelha e branca, ou seja, cor-de-rosa
quase transparente.

São coisas explicáveis e que não carecem de explicação
(já não),
como os incêndios, a fadiga extrema
ou o cheiro agreste da benzina.

São coisas da natureza dos comboios que passam
a alta velocidade
sem se importarem com os ratos e as flores
que nos carris fazem a sua lida.

È a morte,
uma coisa que tudo simplifica.


miguel martins
resumo
a poesia em 2012
documenta
2013







12 abril 2014

maria alberta menéres / queria dizer-te



Queria dizer-te que não sei
que há qualquer coisa
talvez desperdiçada  talvez não
Tu sentiste-a  disseste que era como
qualquer uma outra coisa que
esqueci
A tarde era  talvez já fosse tarde
e a noite não vinha
─  como sempre
Queria dizer-te mas não sei se agora
me saberás ouvir



maria alberta menéres
os mosquitos de suburna
1967




11 abril 2014

maria victoria atencia / ao sul



Ao sul de algum país está a minha casa
com discos de Bob Dylan e Purcell, e facturas,
e pudim de Yorkshire e livros a esperar-me,
e vozes que se cruzam pelos seus aposentos.
Mas o sangue tão frio do jasmim atravessa-me
quando a tarde tomba e escrevo, como agora,
ou pelo meus ausentes me calo no terraço.
Um cão grande acossado ladra no elevador.



maria victoria atencia
antologia poética
paulina o el libro de las aguas
tradução josé bento
assírio & alvim
2000



10 abril 2014

leopoldo maria panero / os imortais


cada consciência procura a morte da outra
hegel


Na luta entre consciências algo caiu ao chão
e o fragor de cristais alegrou a assembleia
Desde então habito entre os imortais
Onde um rei come defronte ao Anjo caído
e semelhantes a flores a morte nos desfolha
e lança no jardim onde crescemos
temendo que nos chegue a recordação dos homens.



leopoldo maria panero
poemas do manicómio de mondragón
trad. de jorge melícias
ed. alma azul
2003




09 abril 2014

maria do rosário pedreira / não partas já



Não partas já. Fica até onde a noite se dobra
para o lado da cama e o silêncio recorta
a margem do tempo. É aí que os livros
começam devagar e as cores nos cegam
e as mãos fazem de norte na viagem. Parte apenas

quando a manhã se ferir nos espelhos do quarto
em estilhaços de luz, e um feixe de poeiras
rasgar as janelas como uma ave desabrida.
Alguém murmurará então o teu nome, vagamente,
Omo a gastar os dedos na derradeira página.

E então, sim, parte, para que outra história se
invente mais tarde, quando os pássaros gritarem
à primeira lua e os gatos se deitarem sobre
o muro, de olhos acesos, fingindo que perguntam.



maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002