23 março 2014

dinis moura / os naufrágios do amor exigem




Os naufrágios do amor exigem
medidas drásticas e extraordinárias.

Depois de dezenas de requerimentos,
o mesmo número de insistências,
muita perseverança e algumas rezas,
eis que finalmente surgiu uma vaga.
Foi ontem à tarde.
Durante um bom par de horas
estive à conversa com Santo António
– A ver se me arranja uma moçoila,
uma moçoila carinhosa, bonita, fiel.

A agenda a transbordar,
imensos pedidos, permanentes quefazeres.
– Por tais e quejandos motivos, vi-me forçado
a acrescentar mais três dias ao mês de Fevereiro:
até ao dia 31 não terei mãos a medir.
Ainda pensei que esse assunto das redes socais
contribuísse para aliviar-me a carga – mas qual quê?
A faina duplicou, triplicando-me destarte as preocupações.

Depois em gestos medidos,
numa expressividade parenética:
logo que sobeje tempo
prometo tratar disso.
Como estava a dizer-lhe,
há depois aqueles peixes mais ariscos.

Eu bem fui insistindo na rogatória,
falei na cor dos olhos, que os queria
castanhos, como os da minha mãe.
Gostaria dela com cabelo comprido,
pele branca, sorriso de flor de cerejeira,
pernas de Vénus de Botticelli,
mas o canonizado tagarela passou o resto
da tarde a discorrer caudalosamente sobre
peixes, anzóis e canas de pesca
– e eu a ver navios.

  

dinis moura



22 março 2014

diogo henrique cardoso / dedicatória



I

Quem caminha tem o dom de levar o caminho junto, e às
vezes nem percebe.

II

Perceber é colocar as evidências nas algibeiras da alma,
e lembrar-se é continuar nosso caminho, remexendo
nos bolsos as evidências entre os dedos como se fossem
punhados de grãos da realidade.

III

O presente é um livro de leitura diária. O passado é esse
mesmo livro já lido, cujas páginas começam a ficar descoloridas
e comidas pelas traças. Rememorar, neste sentido,
é voltar a uma história já conhecida e tentar relê-la apesar
das desbotadas marcas.

IV

Sonhar é acrescentar, inventar ou refazer páginas no livro
do presente. O sonho é uma mistura aleatória de muitas
páginas do livro da vida numa edição especial.

V

Poesia é, dentre muitas outras coisas, mas neste (con)texto
em particular, uma forma de caminhar, perceber, ser no
presente, lembrar e sonhar dentro do sonho que se quer ter.
Além disso, é uma forma de "abertura", por onde entram e
saem muitas coisas do corpo da gente.

VI

Aquilo a que chamam "matéria poética" são [sic] maneirismos
de perceber o mundo. Alguns colhem os grãos
da realidade como se fossem flores; outros os apanham
como pedregulhos. Há quem os coloque na alma com
calma; e tais que o depositam com desleixo...

VII

Aquilo que entendemos por "matéria DE poesia" é
tudo que encanta ao ponto que se canta.

VIII

Há "matérias DE poesia" que realizam impropriedades
na "matéria poética". Por impropriedades quero chamar
aqueles movimentos bruscos e solavancos que fazem
com que os maneirismos se inventem ou se renovem,
pois o que é novo e acaba de ser inventado tem de passar
por um primeiro momento em que parece impróprio,
até que, depois, pareça bem a propósito.

IX

Tudo o que tem a ver com poesia tem a ver com a vida
e com aquilo que eleva a vida por meio da Beleza, posto
que encanta. E os encantos podem morar nos mais
inóspitos meios. As Flores do Mal, de Baudelaire,
mostram a ambiguidade que reside nas matérias obscuras
da poesia.

X

A poesia é, ela própria, uma manifestação da vida e
é, também por isso, vital. A poesia e a escrita andam
juntas na atividade do poeta. Mas não pode no mundo
viver homem algum que não se encante com algo, isto
é, que não encontre uma "abertura" em si para a beleza.

***

Esses dez pequenos trechos não constituem meus dez
mandamentos, posto que não estipulo condutas por
eles. Ele não são, também, um tratado, posto que não
constituem definições, mas sim indefinições, já que são
só o que eu digo e não sirvam talvez para além disso
que sou eu. Por que os coloco, então, aqui? – Pois queria
falar.



diogo henrique cardoso
euOnça
ano_um_volume_um
editora medita
2013





21 março 2014

nuno travanca / o silêncio desta terra



o silêncio desta terra
é inútil e resiste
nas viagens do meu menino
na pupila brilhante e demorada
atenta à raiz de uma lenta origem
que aguarda pela mudança da estação
o silêncio desta terra
é um obscuro e rigoroso exercício
daquele que sonha ainda a profecia
surge à flor da pele por acreditar
a casa inabitada desse ficcionado futuro
enquanto decora a sala de estar
o silêncio desta terra
é feita de homens que de tanto se conhece
os primitivos instintos e alguns conflitos
que impenetráveis acendem o mundo
na arte do desencontro

o silêncio desta terra
coincide com um tempo desacordado
de esquinas dispostas e encerradas em si
com a proibição das escadas
e a memória da impossibilidade
o silêncio desta terra
é sustentado por um vulgar vazio
de olhos escuros e já pouca saliva
cuida da separação dos ossos
e do sentido compreendido do branco
o silêncio desta terra
é translúcido e existe, cumpre-se
em delongadas conversas inócuas
traz com ele a perda e as faltas
sinistras e frágeis emoções
o silêncio desta terra
será cortado em todos os vértices
que na imensidão das vestes
ligam as vozes de semi-acordados esqueletos
e dessa maravilhosa discórdia do silêncio.

rejubilem ó senhoriais do mundo
que o vosso silêncio terá um fim célere
porque na posse do seu verdadeiro íntimo
o homem há-de acordar e vós
um a um cairão por terra, em estrondo.




nuno travanca




20 março 2014

luis amorim de sousa / bathroom scene



a minha ausência
deu-te a medida inteira
desse gesto
que uma frincha traiu

do outro lado as têmporas
e a boca
ó mítico pecado
alumbramento meu

desapareces breve
num pranto de torneiras
e voltas arqueada para me dar

a surpresa redonda
dum seio que me cega

cumprido o sacrifício
o sol entrou no mar

  

luis amorim de sousa
signo da balança
1968




19 março 2014

e e cummings / em tempo de narcisos(que sabem


[xviii]

em tempo de narcisos(que sabem
o sentido da vida é crescer)
esquecendo porquê,recorda como

em tempo de lilases que proclamam
o desígnio da vigília é sonhar,
recorda assim(esquecendo parece)

em tempo de rosas(que assombram
o nosso agora e aqui com o paraíso)
esquecendo se, recorda sim

em tempo de todas as doçuras para além
do que quer que a mente possa entender,
recorda busca(esquecendo acha)

e num mistério a haver
(quando o tempo do tempo nos livrar)
esquecendo-me, recorda-me



e.e. cummings
livrodepoemas
trad. cecília rego pinheiro
assírio & alvim
1999




18 março 2014

jorge de sena / pouco a pouco



Pouco a pouco me esqueço, e não sei nada.
Assim será a morte, e o que da morte
é sono e dor aguda que me crispa plácido
em sonhos dissolvidos sem anseio ou mágoa.

Este ficar de longe, num cansaço;
o ouvir das vozes como outrora infância;
o estar-se imóvel mais, e devagar
perder, um após outro, o gosto a um gesto

mesmo pensado nesta horizontal
que alastra entre o passado e coisa alguma.
Este não ter senão a solidão
como silêncio e treva finalmente aceites.

A vida tão vivida e desejada,
o ser como o fazer, o sexo em tudo visto,
as coisas e as palavras possuídas,
tudo se não dissolve mas se afasta
alheio e sem saudade. Nem repouso
ou calmo abjurar da fúria amarga.
Apenas não sei nada, não recordo nada,
já nada quero, e aos outros deixo tudo.



jorge de sena
peregrinatio ad loca infecta:
70 poemas... com um epílogo altamente filosófico...
portugália
1969




17 março 2014

luiza neto jorge / o poema ensina a cair



O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair
quando a face atinge o solo
numa curva delfada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.




luiza neto jorge



16 março 2014

antónio ramos rosa / tal como antigamente




Tal como antigamente tal como agora
essa estrela esse muro
esse lento
esse morto
sorrir
nenhum acaso
nenhuma porta
impossível sair



antónio ramos rosa





15 março 2014

álvaro de campos / ao volante do chevrolet pela estrada de sintra,



 Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra, 
 Ao luar e ao sonho, na estrada deserta, 
 Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco 
 Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça, 
 Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo, 
 Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter, 
 Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir? 
 
 Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,  
 Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa. 
 Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência, 
 Sempre, sempre, sempre, 
 Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,  
 Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida... 
 
 Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante, 
 Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram. 
 Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita. 
 Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo 
 Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas! 
 Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou! 
 
 À esquerda o casebre - sim, o casebre - à beira da estrada  
 À direita o campo aberto, com a lua ao longe.   
 O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,  
 É agora uma coisa onde estou fechado 
 Que só posso conduzir se nele estiver fechado,  
 Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim. 
 
 À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto. 
 A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha. 
 Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz. 
 Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima 
 Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.   
 Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha 
 No pavimento térreo, 
 Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga, 
 E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.   
 Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa? 
 
 Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio? 
 
 Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite, 
 Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente, 
 Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço, 
 E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível, 
 Acelero... 
 Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo, 
 
 À porta do casebre, 
 O meu coração vazio, 
 O meu coração insatisfeito, 
 O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida. 
 
 Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao votante, 
 Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação, 
 Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra, 
 Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...




álvaro de campos




14 março 2014

maria teresa horta / à tua espera



Tranquila e serena
a nossa casa
nos quatro cantos
o sol do meio-dia

à tua espera alegre
e descansada
injecto-me de amor às
escondidas

Sobre a garganta passo
os dedos espessos
e a roupa uma a uma
vai caindo

para que então amor
com os teus dedos
quando vieres me vás
depois vestindo



maria teresa horta
candelabro
1964



13 março 2014

antónio gedeão / poema da auto-estrada



Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta
Vai na brasa de lambreta.

Leva calções de pirata,
vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chegou aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.



antónio gedeão




12 março 2014

luís amaro / a teixeira de pascoaes


I
Toda a noite transforma.
A verdade das coisas está perto
E o silêncio fala
Com as sombras da nossa alma, iguais
Às sombras dum jardim lunar
Com árvores e flores
Que reflectem nossa paisagem íntima.

Imagem do silêncio,
Ó fonte do meu sonho, recolhida
E imersa na penumbra…

Longe, uma tristeza irmã abre-me os braços
Onde tudo me diz
O sentido da vida!


luís amaro
árvores
inverno de 1951-52




11 março 2014

luís miguel nava / céu árido



Devemos, ao falar, ter o maior cuidado com as palavras que empregamos, pois, sendo algumas delas particularmente vulneráveis às raízes, arriscamo-nos a ver apoderar-se-nos da fala uma vegetação que talvez chegue mesmo a destruir-nos. A fala quer-se árida, de uma aridez idêntica à roupa que nos cobre o corpo ou à do céu, de que me esforço, sempre que dele falo, por deixar à mostra um dos agrafos mais profundos.

  

luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002