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22 março 2014

diogo henrique cardoso / dedicatória



I

Quem caminha tem o dom de levar o caminho junto, e às
vezes nem percebe.

II

Perceber é colocar as evidências nas algibeiras da alma,
e lembrar-se é continuar nosso caminho, remexendo
nos bolsos as evidências entre os dedos como se fossem
punhados de grãos da realidade.

III

O presente é um livro de leitura diária. O passado é esse
mesmo livro já lido, cujas páginas começam a ficar descoloridas
e comidas pelas traças. Rememorar, neste sentido,
é voltar a uma história já conhecida e tentar relê-la apesar
das desbotadas marcas.

IV

Sonhar é acrescentar, inventar ou refazer páginas no livro
do presente. O sonho é uma mistura aleatória de muitas
páginas do livro da vida numa edição especial.

V

Poesia é, dentre muitas outras coisas, mas neste (con)texto
em particular, uma forma de caminhar, perceber, ser no
presente, lembrar e sonhar dentro do sonho que se quer ter.
Além disso, é uma forma de "abertura", por onde entram e
saem muitas coisas do corpo da gente.

VI

Aquilo a que chamam "matéria poética" são [sic] maneirismos
de perceber o mundo. Alguns colhem os grãos
da realidade como se fossem flores; outros os apanham
como pedregulhos. Há quem os coloque na alma com
calma; e tais que o depositam com desleixo...

VII

Aquilo que entendemos por "matéria DE poesia" é
tudo que encanta ao ponto que se canta.

VIII

Há "matérias DE poesia" que realizam impropriedades
na "matéria poética". Por impropriedades quero chamar
aqueles movimentos bruscos e solavancos que fazem
com que os maneirismos se inventem ou se renovem,
pois o que é novo e acaba de ser inventado tem de passar
por um primeiro momento em que parece impróprio,
até que, depois, pareça bem a propósito.

IX

Tudo o que tem a ver com poesia tem a ver com a vida
e com aquilo que eleva a vida por meio da Beleza, posto
que encanta. E os encantos podem morar nos mais
inóspitos meios. As Flores do Mal, de Baudelaire,
mostram a ambiguidade que reside nas matérias obscuras
da poesia.

X

A poesia é, ela própria, uma manifestação da vida e
é, também por isso, vital. A poesia e a escrita andam
juntas na atividade do poeta. Mas não pode no mundo
viver homem algum que não se encante com algo, isto
é, que não encontre uma "abertura" em si para a beleza.

***

Esses dez pequenos trechos não constituem meus dez
mandamentos, posto que não estipulo condutas por
eles. Ele não são, também, um tratado, posto que não
constituem definições, mas sim indefinições, já que são
só o que eu digo e não sirvam talvez para além disso
que sou eu. Por que os coloco, então, aqui? – Pois queria
falar.



diogo henrique cardoso
euOnça
ano_um_volume_um
editora medita
2013