25 novembro 2013

andre breton / o grande socorro mortífero


A estátua de Lautréamont
No pedestal de comprimidos de quinino
Em campo raso
O autor das Poesias está deitado de bruços
E perto dele vigia o helodermo suspeito
A orelha esquerda contra a terra é uma redoma
Ocupada por um relâmpago o artista não se esqueceu de
         lhe pintar por cima
o globo azul celeste em forma de cabeça de turco
O cisne de Montevideu de asas abertas sempre pronto a
         batê-las
Quando se trata de atrair do horizonte os outros cisnes
Desceram sobre o falso universo dois olhos de cores
         diferentes
Um de sulfato de ferro sobre o parreiral das pestanas o
         outro de barro diamantífero
Contempla o grande hexágono em funil onde depressa
         se crisparão as máquinas
Que o homem se obstina em cobrir de ligaduras
Reaviva com a vela de rádio as profundezas do crisol
         humano
O sexo de plumas o cérebro de papel vegetal
Preside às cerimónias duas vezes nocturnas celebradas
       para desviar o fogo e inverter os corações do homem
       e do pássaro
A qualidade de convulsionário dá-me acesso a ele
As mulheres deslumbrantes que me introduzem na
       carruagem estofada a rosas
Onde uma cama de rede entrançada com os seus cabelos
       me está reservada
Para sempre
Recomendam antes de partir que não apanhe frio a ler
       o jornal
Parece que a estátua junto da qual a grama das minhas
       terminações nervosas
Chega ao seu destino é afinada todas as noites como
       um piano


  
andre breton
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994


24 novembro 2013

herberto helder / as musas cegas


V

Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira
e a eternidade das mãos.
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas
lâmpadas, todas as coisas.
As coisas que são uma só no plural dos nomes.
─  E nós estamos dentro, subtis, e tensos
na música.


Esta linguagem era o disposto verão das musas,
o meu único verão.
A profundidade das águas onde uma mulher
mergulha os dedos, e morre.
Onde ela ressuscita indefinidamente.
─  Porque uma mulher toma-me
em suas mãos livres e faz de mim
um dardo que atira. - Sou amado,
multiplicado, difundido. Estou secreto, secreto -
e doado às coisas mínimas.


Na treva de uma carne batida como um búzio
pelas cítaras, sou uma onda.
Escorre minha vida imemorial pelos meandros
cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio
dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre.
E de repente eu sou uma torre queimada
pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra.
E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra.
─  Porque me amam até se despedaçarem todas as portas,
e por detrás de tudo, num lugar muito puro,
todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio.


Essa mulher cercou-me com duas mãos.
Vou entrando no seu tempo com essa cor de sangue,
acendo-lhe as falangetas,
faço um ruído tombado na harmonia das vísceras.
Seu rosto indica que vou brilhar perpetuamente.
Sou eterno, amado, análogo.
Destruo as coisas.


Toda a água descendo é fria, fria.
Os veios que escorrem são a imensa lembrança.  Os velozes
sóis que se quebram entre os dedos,
as pedras caídas sobre as partes mais trémulas
da carne,
tudo o que é húmido, e quente, e fecundo,
e terrivelmente belo
─  não é nada que se diga com um nome.
Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo.


E eu, que levo uma cegueira completa e perfeita, acendo
lírio a lírio todo o sangue interior,
e a vida que se toca de uma escoada
recordação.


Toda a juventude é vingativa.
Deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura.
Um dia acorda com toda a ciência, e canta
ou o mês antigo dos mitos, ou a cor que sobe
pelos frutos,
ou a lenta iluminação da morte como espírito
nas paisagens de uma inspiração.
A mulher pega nessa pedra tão jovem,
e atira-a para o espaço.
Sou amado. - E é uma pedra celeste.


Há gente assim, tão pura. Recolhe-se com a candeia
de uma pessoa. Pensa, esgota-se, nutre-se
desse quente silêncio.
Há gente que se apossa da loucura, e morre, e vive.
Depois levanta-se com os olhos imensos
e incendeia as casas, grita abertamente as giestas,
aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado.
Amam-me, multiplicam-me.
Só assim eu sou eterno.




herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



23 novembro 2013

joão rui de sousa / cliché




Incluo-me entre as vontades dolorosas
aquelas que decidem sobre o lume
aquelas que deslizam hesitantes
na vaga sensação de tanto estrume.

Em volta do seu pulso mole e débil
por dentro do seu óleo morno e roxo
para além deste limite rombo e ferido
debaixo de um telhado falso ou frouxo.

Sem nada. Sem firmeza, sem sentido,
sem gravata, sem vestido,
sem um ponto qualquer de referência.

Incapaz de ser outro mais fremente
como um cavalo opresso ou mastro fino
passeando ao escuro a indigência.




joão rui de sousa
a habitação dos dias
1962





22 novembro 2013

alberto caeiro / falas de civilização...




Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as coisas humanas postas desta maneira,
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seriam melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as coisas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!


 alberto caeiro



21 novembro 2013

natália correia / a defesa do poeta



Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
 de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.



natália correia
as maçãs de orestes
1970



20 novembro 2013

antónio josé forte / um poema


          Ceux qui lancent les revolutìons sont tonjours les
          cocus de l’Histoire.

          daniel cohn-bendit


Deves ter razão
e certamente a História não demorará a pôr-te os cornos
um corno vermelho e outro corno negro
grande e delirante cornudo
meninotauro bufando
e investindo à altura do sexo
Sou pela razão ardente dos teus cornos!
Pisaste bem o rabo de deus
mordeste bem o pescoço do diálogo
enfiaste admiravelmente bem
primeiro um corno depois o outro
no Cu Pró Ar da politica
que era o que ela estava a pedir
Corno detonador e mais nada já sabes
«porque ninguém representa ninguém»
e «a Poesia deve ser feita por todos»
Dadá cá o teu corno vermelho
Dadá cá o teu corno negro
quero acariciá-los quero vê-los deitar fumo
fumo negro e vermelho
antes do incêndio
onde eles os teus cornos arderão definitivamente
Saúda-te  sussurreaIìsticamente
um homem quase sem esperança de cornos portugueses
não sei se compreendes
Outros antes de ti
mas da mesma família colérica já o tinham dito:
o sono do materialismo dialéctico engendra monstros
donde essa monstruação sagrada
que se farta de sujar lençóis
fizeste bem em pegá-los pelos cornos
e ires estendê-los na torre Eiffel
Ceux qui tricolorent (Pré vert) vão agora vomitar (Misère)
Viva Dany!
Corno-Satã
Marrada na porta do Amanhã!
Cancan cantáridas
nos testículos operários!
Pan Panfleto metido nos ovários!
Puseste de fora as tripas da sociedade capitalista
tiraste a tampa do caldeirão da democracia
mas com o cuidado de uma mão no nariz
e a outra eriçada de flores
tudo isto com a naturalidade da cólera
tu que inventaste
fazendo o pino sobre a pele esticada do tambor de Paris
o Livro das Grandes Excitações
Pseudónimo dos desejos recalcados
analfabeto abecedário revolucionário
que assinaste de corno
o abaixo-assinado pela Revolução
Viva!
Lobisomem (Pravda) que trincaste
pela primeira vez neste século
o clítoris de Paris
e provaste
que a linha do horizonte do futuro
passa pelo umbigo
e a Freud Karl Marx Fourier e Bakunine
chamaste um FIGO!
Viva!
Quando todos julgavam que desta vez era verdade
o bandulho de Breton principiava a apodrecer
e os martelos da arte da democracia e o mais
começavam a pregar sorrateiramente
os pregos da última cena da Viúva Alegre
eis que o bandu1ho como um tremor de terra
arreganha os dentes
Tu Dany que sempre usaste o barrete frígio como preservativo
tu sorriste à dentuça arreganhada
e com teu dedo de bronze escreveste nas paredes
frases inventadas
por exemplo: o poeta devorará o seu poema ou não
— o poeta devorará o poema para haver Revolução
o poema devorará o poeta para não
Fique entendido que te exalto apenas para que ardas
para ao menos sentir nas narinas
o doce novo cheiro do enxofre
que anuncia a Aurora Boreal
e a pólvora no Fígado
Cornúpeto Ímpeto Sinal
Neste momento és apenas um pretexto
para a navalha de barba fechada envergonhada que sou
se abrir razoavelmente agressiva
e talvez nunca mais se fechar vamos Iá ver
porque eu debaixo da gabardine
esta película literária própria para cumprimentar
e receber cumprimentos
eu estou de facto na pele e no osso
relativamente no tutano da esperança
apenas a carne mínima para as noites na cama
esse cordão umbilical que me prende à Revolta
e me exalta no Amor
Porque sei também
há quem espere a visita da liberdade
há quem não espere a visita da liberdade
há quem ponha a liberdade fora de casa
três espécies de gente que há-de ser julgada pela própria
         liberdade
todos pavões das artes e das letras arganazes do jornalismo
tartarugas da política
todos de escadote às costas
para falar de cima pelo funil do diálogo
ir de automóvel urinar ao litoral para ver o pôr-do-sol
todos os que usam o sexo como gravata
e amam de gravata no sexo todos definitivamente avestruzes
Não entro neste tango à meia-luz para não ver o sangue
sou pela patada no sobrado
pela cornada no tecto
sou pelo salto da pantera
e o ódio e o amor raiados de vermelho
Sou pela, mão no martelo
e o martelo contra o espelho.
Sou por ti pelo teu Olho Selvagem
pelo teu esquerdismo de Berro e de Chavelho!
Já o disse uma vez:
pelo meu relógio são horas de matar
de chamar o amor para a mesa dos sanguinários
Estou-me nas tintas
para a pesca à linha das ideias
para a fila dos chapéus alentejanos
em coro desafinando a esperança
Sou talvez um violento
um homem com labaredas à roda da cintura
 e a língua de fora apesar de ranger os dentes
Dany Anti-Suicidado
sei muito bem que também te chamas Rudi e Vietname e Che
         Guevara
e outros nomes mais
e um só nome: Proletariado
Estou farto de fazer tricot com as próprias tripas
de beber e de escrever nos intervalos
de ter por destino fumar cigarros para divertir os pulmões
até que deles saiam serpentinas e pronto
e não é isto que quero
Dany Possesso
Anel Vermelho e Negro
Fogo no Abcesso

Peixe-Dadá na Corrente Quente Surrealista

Até à vista!


antónio josé forte
Grifo
1970



19 novembro 2013

maria teresa horta / inquietação



exijo-me inquieta
de sol
a intransigência
de qualquer cidade
penetrou-me
bastarda de mim mesma

igualdade repleta
de pesadelos
infinitamente brancos
o arrepio das árvores
nos ombros dos profetas

noites incompletas
onde me exijo
urgência


maria teresa horta
poesia 61
1961



18 novembro 2013

antónio dacosta / tornam aqui as aves



Tornam aqui as aves
Sempre outras como eu
Longe de mim buscam
Outro que mim

O teu braço apontado ao céu
Semelhavas - no desabrochar
As flores o tempo que nos cercava

Não havia portas no teu jardim
Era como estar dentro do que vias
Tudo de ti estava em nós e era transparente

Via-te o vulto voltado à luz
Que o braço erguido apontava
E no tempo que nos cercava
Semelhavas
Que o nosso olhar não via
E de longe em ti buscava
O outro que mim

  

antónio dacosta
a cal dos muros
assírio & alvim
1994



17 novembro 2013

endre kukorelly / quem não suspeita




Quem não suspeita do que
existe. Porque apanhei, o que não é costume,
um troleicarro. Um curto sprint. Mas
não desligo logo. Não logo
da satisfação. Contudo
apesar de arquejante ainda
se ouve, façam o favor de sair.
Saiam todos. Disse
o microfone, e os passageiros
do trólei saíram. Eram
nove. Nove ou dez. Então
viram que se partiu,
de facto, o cabo. E viu-se
que de facto sim. Depois todos
ponderavam no que seria
o ideal. O que vão
fazer nesta enrascada.
Também eu fiz o mesmo. A mim
chateia-me mais. Outros serão
mais tolerantes. A mesma
matéria. A mesma e diferente.

  

endre kukorelly
um jardim de plantas medicinais
trad., rev., compl. e apresent. fernando pinto do amaral
poetas em mateus
quetzal
1997



16 novembro 2013

daniel filipe / pátria lugar de exílio



Neste ano de 1962
não como Nazim Hikmet no avião de pedra
mas na minha cidade
livre de ir onde quiser
e no entanto prisioneiro
neste ano de 1962
exactamerite
em Lisboa
Avenida de Roma número noventa e três
às três horas da tarde

Neste ano de 1962
encostado a urna esquina da estação do Rossio
 esperando talvez a carta que não chega
um amor adolescente
meu Paris tão distante
minha África inútil
aqui mesmo

aqui de mãos nos bolsos e o coração cheio de amargura
cumprindo os pequenos ritos quotidianos
cigarro após o almoço
café com pouco açúcar
má-língua e literatura

Aqui mesmo a não sei quantos graus de latitude
e de enjoo crescente
solitário e agreste
invisível aos olhos dos que amo
ignorado por ti pequeno empregado de escritório preocupado
com um erro de contas
incapaz de dizer toda a minha ternura
operária de fábrica com três filhos famintos

Aqui mesmo envolto na placidez burguesa
higienicamente limpo e com os papéis em ordem
vestido de nylon dralon leacril
com acabamentos sanitized
e lugar marcado junto do aparelho de TV
eu
enjoado de tudo e contemporizando com tudo
eu
peça oleada do mecanismo de trituração
eu
incapaz de suicídio descerrando um sorriso-gelosia
eu
apesar de tudo vivo apesar de tudo inquieto
apesar de tudo farto
eu
neste ano de 1 962
exactamente
não ontem mas precisamente às três horas da tarde
pela hora oficial
exilado na pátria



daniel filipe
pátria lugar de exílio





15 novembro 2013

pedro spigolon barbosa / a muralha



               “Construímos muralhas por todos os lados
               para que o olhar não sofresse de imensidão”
               – Tiago Fabris Rendelli


Ergueram uma muralha no horizonte
de nosso coração enraizado.
Por todos os lados
as pedras tapam
a imensidão furtada
de tuas raízes soníferas.
Onde estará a vastidão do mundo
já que tu és tão pequeno?
Tu és tu mesmo quando repousas
o peso da miséria na piedade de terceiros?
Tu és tu mesmo quando
persegues o crepúsculo de tua hora
numa ânsia nem do dia nem da noite?
Quando rodeias em dança
a cabeça do Batista
festejando o esquartejamento
dos santos no século?
Quando te vingas dos pássaros
que escrevem no céu
teu nome conjugado
com a morte?
Quando vais ao mercado
ofertar teu sexo de máquina por
                     Bananas nanicas?
Quando beijas alguém não por paixão
mas para povoar, num desespero,
teu atiçado desejo miserável?
Tu és tu mesmo quando o sono
quebra teu dente
e numa fome de sonâmbulo
te empanturras das fatias lazarentas
de teu espirito moderno?
Tu és tu mesmo
quando te omites de ti?
Quando te afugentas da febre
que amanhece tua alma trancafiada?

[Fresta]

(Que paixões cantam os pássaros
para além desses muros?
De que brincam as crianças
que correm por essa vastidão?
Quais as novas cores
desse céu de aquarela?
Que desenhos rabiscam
as nuvens de lá?)
Ide! Eu sou a Dinamite
A dilacerar teus estreitos limites
A predar a pedra
que edifica tua ninharia
A lançar veredas
que te lavem os olhos.
Se Crer, há de despertar
e levantar quando ouvir:

“— Lázaro, vem para fora”.




pedro spigolon barbosa
euOnça
ano_um_volume_um
editora medita
2013



14 novembro 2013

antónio ramos rosa / telegrama sem classificação especial


                    Ao Egito Gonçalves



Estamos nus e gramamos.

Na grama secular um passarinho verde
canta para um poema lírico, para um poeta lírico,
que se nasceu
é certo que não cantou.

As paisagens continuam a existir.
As paisagens são suaves.
Continuam também a existir
outras coisas
que dão matéria para poemas.
A vida continua.
Felizmente que há ódios, comichões, vaidades.
A estupidez, esta crassa crença intratável, esta confiança
             indestrutível em si mesmo,
é o que felizmente dá uma densidade, uma plenitude a isto.

Num mundo descoroçoante de puras imagens
é bom este banho de resistências, pressões, vontades, atritos,
é bom navegar.
porque este presente é logo saudoso.

Na grama um passarinho canta.
Evidentemente que o poeta suicidou-se.

A vida continua.
Certas coisas que pareciam mortas
estão agora vivas ou, pelo menos, mexem-se.
Ausentes, dominam-nos.
Não é para nós que utilizam as palavras,
que insistem,
não é para nós!
Estes grandes ornamentos, estes sábios discursos
fluem em visões, em ondas, como se não no presente.
Ter-se-á o presente extinguido?
A vida continua tão improvávelmente.

Na grama um passarinho canta.
Canta por cantar, ou não, canta.

Eu poderia, com rigor, agora
cantar:
                      Os anjos exactos
                      que empunham tesouras
                      de encontro aos factos
                      - ó minhas senhoras!

Ou rigorosamente ainda,
com veemente exactidão,
inutilizar o poema,
todos os poemas
porque

Estamos nus e gramamos.

  
4 de Janeiro de 1952




antónio ramos rosa
«árvore» - 4
1953