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21 maio 2022

joão rui de sousa / eram estas as flores…

  

Eram estas as flores que eu abraçava
e que entrevia em zonas de mais luz
ou em simples requebros onde a voz,
pousada e quase trémula,
seguia na inflexão de ser inúmero
o vulto das ameixas, o voluptuoso
ondeio de fenos e searas,
e o parco mover do sobro
e das palmeiras.
 
Eram também os olhos sempre atentos
ao frémito dos ombros, ao roçagar
de lábios e cabelos,
ao sagaz alvoroço dos teus dedos
e à rajada final (intrépida, desmedida)
de um pássaro febril, indominável.
 
 
 
joão rui de sousa
relâmpago nº. 13 / 10.2003
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2003




23 novembro 2013

joão rui de sousa / cliché




Incluo-me entre as vontades dolorosas
aquelas que decidem sobre o lume
aquelas que deslizam hesitantes
na vaga sensação de tanto estrume.

Em volta do seu pulso mole e débil
por dentro do seu óleo morno e roxo
para além deste limite rombo e ferido
debaixo de um telhado falso ou frouxo.

Sem nada. Sem firmeza, sem sentido,
sem gravata, sem vestido,
sem um ponto qualquer de referência.

Incapaz de ser outro mais fremente
como um cavalo opresso ou mastro fino
passeando ao escuro a indigência.




joão rui de sousa
a habitação dos dias
1962





24 abril 2012

joão rui de sousa / a hipérbole na cidade





… … …
Rossio. Rossio mil e um, mil e dois, mil e três...
Rossio multímoda da Lisboa-viela.
Lisboa aquecida. Lisboa despida.
Lisboa-viagem numa caravela.

Barcos de papel à tona d’água.
Cestos de papel à vista, flor.
Papel nos bolsos, papel nas arcas.
Papéis-meninas a vender amor.

Polícia artefacto (vendedor vem comigo).
Relógio partido (parado ou não).
Rodelas de ginja encantada e um vidro
(Estão todos bebidos, caídos, perdidos,
irmão).

Gravatas sem vida (baratas, presentes).
Marinheiro por detrás (redondo, redondo).
Magalas com sorte, magalas doentes.
Galegos despidos na frente do mundo.

Rossio. Proibido parar, proibido avançar.
Proibido fugir, proibido fumar.
Proibido sorrir proibido olhar.
Proibido cantar,
                       proibido cantar.

          *

Sou pobre. Medito em tudo a meu modo,
Medito em porto (tecido, conteúdo).
Medito em seios (sabor e olfacto).
Medito em tudo.

Há europas desnudas espalhadas por coxas.
Há repúblicas doridas a pernoitar.
Há montanhas já fartas dos prazeres iníquos.
Há rios imaginários do amor do universo.

Geográfica e nossa é a condição de pobres.
Sobretudo em Rossio, Rossio mil e três.
 Com sorrisos nos lábios e letreiros às costas,
cantando alegremente:
                                 Estamos nus e gramamos.

Total a iniquidade de que estamos seguros.
Total a recompensa de mijo e areia.
Total o que somos, total o que fomos.
Total de pensarmos silêncio e candeia.
Total de mistela e de vão sacramento.
Total de miséria que um verme constrói.
Totais Descobertas... Eles lá o sabiam
explicar, se pudessem, como isso foi.

Rossio, meu amigo,
meu doidamente doido pelo chão.
Cais de Sodré vem comigo
Decifrar-me a canção:

Mil e dois, mil e três.
Mil e dois, mil e três.

… … …
A fome é uma mistura de carne
(pedras negras, .pedras brancas).
Desenhos? O tempo os desfaz.
Pombal restaurou. Pombal afinou.
Só não acabou o medo deste século.

Lisboa — a grande nau que não havia
no pensarmos sermos o que somos:
uma onda e outra sobre a outra onda,
feitas, de mil olhos, serpentinas.

Lisboa ou claro Tejo da ilusão.
(Funileiro à porta ou estar sentado.)
Somos o que somos: podres e serenos
na serena paz de fracassados.

Se os sinos da tua aldeia — Largo
de S. Carlos — falassem outra vez,
como diriam hoje agora:
Rossio mil e três?

Serrano e impossível.
Severo e impotente.
Cansado, impassível
grão podre
doente.

          *

Envelope aceso para enviar notícias,
novas muito antigas deste tempo.
Capitão viaja. Comandante à âncora.
Viva a morte, a noite e o desespero.

São estas as cordas de um cartaz turístico.
São estas as luzes dum assassinado.
Estrangeiro acena. E canta e grita:
Pobre noite, camarada.
… … …

Temos de coabitar.
O sonho dilata-se no sonho.
Ficaremos pobres como dantes?
Ficaremos cegos?

Estrangulem-me se quiserem.





joão rui de sousa
a hipérbole na cidade
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002