22 outubro 2013

amadeu baptista / ronda dos traidores



Povos traídos já o foram muitos.
De gregos a romanos a mais de muitos centos
todos foram incorporados no grande índice
dos bichos que sentiram a lâmina na goela,
ou a entrar nos flancos para que não pudessem
ser o quanto queriam nos seus sonhos débeis.
O mal é esse mesmo, que possa a traição
grudar-se aos ossos e os mentecaptos
se sirvam dela nos banquetes férteis
em que de lampreia e faisão se embrutecem,
enquanto nos baldios a pobreza cresce.
Contudo, os brutos serão sempre os outros,
que ao longo da história se omitiram
por um gesto em falso ou um maligno passo,
ou até mesmo um decreto do senado.
Ou dormiram demais, ou no seu sono leve
trabalharam muito para que a indulgência
lhes custasse a família, os filhos, o sustento
e fossem retalhados como cordeiros mansos
que das regiões claras só podem conhecer
a escuridão infrene que os aniquila.
Traídos os traidores da ousadia
de permanecerem traídos para sempre
melhor seria que sangrassem dos ouvidos
ou que a boca de raiva lhes espumasse
pelas lídimas trafulhices de que são vítimas.
Ainda assim, não se passa nada. À vida
vão uns tantos para sofrê-la, a ranger
os poucos dentes ralos e a pôr as unhas
a salvo de qualquer lima, que está caro
o aço e nada é mais diverso
do que querer-se algo e nada se fazer
para que alguma coisa mude para que tudo
fique tal como estava antes do que se quis
mudar no âmbito das pirâmides
ou dos jardins suspensos. Traidores, portanto,
é o que mais há nas longas multidões
que os povos significam, ajoelhadas
bestas que aqui ovacionam e mais além
irão querer linchar sem que para isso
tenham paixão bastante. Dúvidas há
de que sejam homens, ou que da sua
espécie a humanidade seja em seu ardor
e escala de ansiar o pão, a paz, a liberdade,
sem que, no entanto, alastrem pelo mundo
a reclamar a luz que deveria pertencer-lhes.
E ainda falam do tempo irrepetível,
dos becos sem saída, das vozes inaudíveis,
da coroação do espanto, dos mares repletos
de fúrias e desmandos. A uns e outros todos
se vão traindo, cheios de culpa mas nunca
com remorsos de enquistarem assim os corações
nefastos, demasiado puros da pulhice alheia
que só deles mana. Não se lhes cansa o olhar
das grades  que em volta  assestam
as prisões que para si criaram,
danados de requebros não mais do que servis
à espera das migalhas que irão cair
do espavento dos bolsos que alguns benévolos
premeditadamente planeiam denegar
à fome secular e à calamidade.
Melífluo é o combate marcado por recuos,
surtos de aleivosias, suplicações, errâncias,
e a boa-fé fenece entre os traídos, prostrados
sobre a lama que os seus pés abriram
sem que de nada mais se arroguem que a traição
que lhes corre no sangue e lhes domina o espírito.
A uns e outros se abatem pelas costas.
Os de cima os de baixo e os de baixo
os de baixo, que é sempre a cair
que há-de ficar-se em coisas de ignomínia,
ou nas sujeições ignóbeis da desgraça,
ou no destemor que alguns da covardia
sacam, havendo sequazes e facas disponíveis,
usadas com perícia  a perorar
as circunstâncias graves em que se vive
num território de recursos parcos.
Traidor é sempre quem trair se deixa,
atento ou desatento à luz dos anos,
pasmado ou exaltado no seu entusiasmo
de ser sem terra, ou ter sido dela
há muito expulso, ou ser seu pasto
em vida como o será quando for morto,
a privar com os vermes que, afoitos,
em cada aresta sopesam o momento
para abocanhar a carne das ovelhas
que, cegas e ordeiras, transitam
no foco de infecção  para que alastre
a irredimível doença de que todos
sofrem. Ah, os rostos giram
nas quadraturas dos séculos, vãos uns
ceder e outros descompor-se, outros
empenham a palavra e voltarão com ela
atrás,  pelo caminho ínvio, ainda outros
murmurarão a surdina entorpecente
de um rumor, de uma conjura, de um juro
que se cobra, de uma mácula caída
sobre a melhor nódoa , de uma arma aperrada
contra o dilecto amigo, de um rei que abjurou,
de um crente que se fiou, do alento
de um homem que a si mesmo se traiu,
assim como traiu os seus mortos antecedentes
e consequentes, em velhas e novas gerações
de traidores no comum descampado
dos tempos indizíveis, coberto de fósseis e sangue
ressequido. Ah, todos traímos a infância, o menino
selvagem, o castanheiro espesso, o regaço
de quem nos olhou  pela primeira e pela última
vez como um filho querido e nos deixou partir
para a imobilização, a providência, o sossego,
a contagem incólume dos cabelos,
o beijo na face e a mão sobre o ombro,
a candura aos portões da Babilónia, os catorze
mil cegos que Samuel viu arrastar-se
nas montanhas da Macedónia a caminho de Ohrid,
vítimas estes da traição que a fereza é.
É desse lixo que os monturos se ampliam,
traição sobre traição sem mais remédio
do que ver o mundo a dissipar-se nos resquícios
da compaixão, do nojo, da bondade.
E no horizonte crespo o deserto amplia-se,
passam os comboios mas tudo está perdido,
o mar adensa-se e as traições
progridem, obsessiva e suja
a noite cobre tudo a ocultar quanto se fez
de criminoso e baixo e se sepulta nos bustos
de estuque que as galerias mostram,
um rol de heróis que a própria mãe venderam,
sem mais consolo do que viverem disso,
por um domínio, um lugar, uma quantia,
uma vara de porcos, castrados e cevados.








21 outubro 2013

manuel de freitas / weinen, kla gen, sor gen, za gen (bwv 12)


                        [ para o Barnabé, felino]


A carne é triste, mas eu leio pouco,
menos ainda do que o meu gato,
que talvez desculpe um dia
o indemonstrável possessivo
que escrevi sem muita convicção.

Pode-se fazer tanta coisa, à noite.
Ouvir por exemplo Bach
— o pai —, tendo por único
cuidado uma atenção distraída
ao gelo que estala no copo
de vidro indonésio. Sim,
não me parece que eu seja,
para já, «politicamente correcto».

— Ou experimentar o amor,
de novo e sempre o amor,
com frias e esgotadas lágrimas
de lume. E, se o amor não
vem (acontece), posso ir dizê-lo
a ninguém, à porta de bares sombrios,
sem esperar sequer um poema.

Porque nem tudo se escreve,
percebe acordando o gato.
Possa ele também não saber,
neste Inverno, que a carne
é mesmo uma coisa muito triste.



manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002



20 outubro 2013

vinícius de moraes / poética (I)



DE MANHÃ escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
A oeste é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
─  Meu tempo é quando.



vinicius de moraes
o poeta apresenta o poeta
cadernos de poesia
publicações dom quixote
1969




19 outubro 2013

fernando pessoa / náusea



Náusea. Vontade de nada.
Existir por não morrer.
Como as casas têm fachada,
Tenho este modo de ser.

Náusea. Vontade de nada.
Sento-me à beira da estrada.
Cansado já do caminho
Passo pra o lugar vizinho.

Mais náusea. Nada me pesa.
Senão a vontade presa
Do que deixei de pensar
Como quem fica a olhar...

  

fernando pessoa



18 outubro 2013

joão paulo esteves da silva / abraçar



Vento imaginário. Vento de livros. Vento leste.
Eu olhava a colina da graça.
Olhava a parede de livros que me impede a graça.
Quando as árvores caíram. Ninguém apagou as luzes.
O vento leste quis as raízes de fora. Eram letras, afinal.
Tudo se inclinou perante o vento, perante o tempo de papel que fazia
Entre a parede e a colina.
Árvores deitadas eram vida sem nome.
As mulheres pareciam chamas a dormir.


joão paulo esteves da silva
diversos 15
edições sempre-em-pé
2009



17 outubro 2013

hélène monette / saudações da princesa


para kim


Senhora, aplainais-me o coração
e não poderei esquecê-lo
eu, uma diabinha, a inocente
santa lutadora
arrastada na lama
eu, arrastada em pé viva
ao fresco, à sombra, grande demais ao ser espancada
tão orgulhosa de ninguém ao ser esbofeteada
ao frio
no rumor das cigarras
alegre
no mundo e seus irreais
eu, olhos ternos e roupas ordinárias
mãos frias, olhos quentes
impaciente em desordem
amorosa no caos
sorriso franco
aterradora amável
sim, senhora
até tenho olhos que se arrastam
como sempre acabam por se arrastar
aos vossos pés
no chão de todos
porque como sabeis
estamos no chão de todos
esquecemo-lo vezes demais
esquecemos até as nossas chaves, as nossas cabeças, os nossos números
nas estantes do coro, entre os trapos, entre dois ombros
em cadernos, livros, sobre a terra de todos
e as nossas almas, senhora
elas acabam também por se arrastar
as nossas almas são vagas
sequiosas de margens
 
num tal deserto
elas preocupam-se até demais                

 
hélène monette
poemas                                      
tradução de rosa alice branco
(encontros de talábriga)




16 outubro 2013

katerina angheláki-rooke / a outra penélope



Por entre as oliveiras vem a Penélope
com os cabelos apanhados à trouxe mouxe
e uma saia comprada no mercado
azul marinho com florinhas brancas.
Explica-nos que não foi por dedicação
à ideia "Ulisses"
que deixou os pretendentes durante anos
a esperar na antecâmara
dos misteriosos hábitos do seu corpo.
Ali no palácio da ilha
com os horizontes fictícios
de um doce amor
e o pássaro à janela
a captar apenas isto, o infinito,
ela pintou com as cores da natureza
o retrato de eros.
Sentado, de perna traçada,
segurando uma chávena de café
matinal, um pouco macambúzio, um pouco sorridente,
a sair quente dos edredões do sono.
A sombra dele na parede
marca deixada por um móvel há pouco retirado
sangue de antigo assassínio
aparição solitária do Karanguiózi
na tela, e por trás dele sempre a dor.
Inseparáveis o amor e a dor
como o balde e o menino na praia
o ah! e um cristal que se escapa das mãos
a mosca verde e o animal morto
a terra e a pá
o corpo nu e o lençol de Julho.

E a Penélope, que ouve agora
a música sugestiva do medo
a bateria da renúncia
o doce canto de um dia sereno
sem bruscas mudanças de tempo e tom
os complexos acordes
de uma infinda gratidão
por tudo o que não aconteceu, não se disse, não se diz,
acena que não, não, não a outro amor
não mais palavras e sussuros
abraços e dentadinhas
vozinhas na escuridão
cheiros de corpo que arde à luz.
A dor era o pretendente mais excelente
e fechou-lhe a porta.



katerina angheláki-rooke
belo deserto o corpo
tradução de manuel resende



15 outubro 2013

eugénio de andrade / ostinato



Ao desejo, à
sombra aguda
do desejo, eu me
abandono.

Meu ramo de coral,
meu areal, meu
barco de oiro, eu
me abandono.

Minha pedra de orvalho,
meu amor, meu punhal,
eu me abandono.

Minha lua queimada.
violada, colhe-me,
recolhe-me: eu me
abandono.

  

eugénio de andrade



14 outubro 2013

edgar allan poe / o lago-para...


Tive eu na mocidade ocasião
De achar do mundo vasto um lugar
O qual eu não podia mais amar...
Porquanto me encantou a solidão
De um agreste lago por penedos
Circundado, e por altos arvoredos.

Mas quando a noite o seu sudário
Deitava em tal lugar, e em tudo à volta,
E o vento misterioso andava à solta...
E o vento um canto murmurava...
Ah... era então que eu despertava
Para o terror do lago solitário.

Contudo tal terror não me assustava,
Mas com tremores me deleitava...
Um sentimento tal cujo mistério
Excede mil jazigos de minério...
E mesmo o teu Amor... que eu cobiçava.

No veneno da onda havia dolo,
E em seu vórtice um esquife apropriado
A quem aí buscava o consolo
De um espírito inventivo desterrado,
Erguendo, em seu delírio transviado,
Um Éden no sombrio e torvo lago.


edgar allan poe
the raven and other poems, 1845
tradução de margarida vale de gato



13 outubro 2013

fernando alves dos santos / dia de descanso



Hoje reservo o dia inteiro para chorar
É o domingo decadente       em que muitos
esperam pela morte de pé
É o dia do sarro que vem à boca da mediocridade
circular dos gestos que andam disfarçados de gestos
dos amores que deram em estribilhos
das correrias pederásticas para o futebol em calções
mais o melhor fato e a mesquinhez nacional dos 10%
de desconto em todo o vestuário

E choro     choro    porque a coragem
não me falta para tudo isto e assisto
na nega de me ceder ao braço dado

Precisarei de um cansaço mas
lá estavam espertas
as mil e não sei quantas lojas abertas
para mo vender!

Mas hoje é domingo
Lá está o chão reluzente de martírio
e nem já o sonho me dá de graça o ter por não ter
já nem o amor que suponho me dá o sonho de ser

E choro de coragem     isto é
as lágrimas hão-de cair secas nas minhas mãos
Falo cristalinamente sozinho
procurando entre as paredes e as varandas que vão cair
algum acaso     isto é
o eco de qualquer drama vazio

Espero como quem espera
o momento de posse entre dois ponteiros
de torneira em torneira nas súplicas febris
em que me trago aquecendo as mãos nas orelhas
para as não cortar em gritos
Espero e entretanto o mundo não se cansa
de me dar drogas para dormir e criar
novelos de lã à volta do coração
Não me lastimo     grito
Quero que estas correntes da boca se tornem úteis
e não ficar pr'aqui moldado estátua
em verdete de ser chorado
A tropeçar onde não há perigo
com calçado duro a pisar as nuvens
neste tão estreitado mundo

Choro hoje o dia todo e lembro-me o que disso
podem pensar os homens das ideias revolucionárias e choro
choro de coragem e para os microfones da revolução
As lágrimas e a revolução são como a morte de cada um

Cá do meu alto não se desce por escadas mas por desalento
por amor ao chão da terra que me pisam

e choro neste dia burguês fazendo cá a minha revolução
alheia às tais guerras de papel químico

Espero sem esperança mas certo
do que espero como de saber que um homem
não chora     e choro

Choro hoje porque reservei o dia inteiro para chorar
porque é domingo e o que espero não é a morte de pé
talvez a coragem de que o mundo não esteja certo

Uma vez era ainda pequeno
chorei ao ver um prédio desabitado
Moro nele mesmo aos domingos e rio-me
das revoluções que ameaçam de pôr ou tirar-me as janelas
Sei que nada adianta
Vi o prédio desabitado era eu muito pequeno
Nele me reservo hoje o dia todo à liberdade de me dar
ao choro da coragem de esperar

E espero porque mesmo que o  mundo fique desabitado
um grito afinal terá assim o seu eco

Enquanto durar este domingo     vou chorar gradualmente
até que a noite me venha
cobrir o corpo de abafo quente

Então sairei à procura da prostituta cega
para lhe contar junto ao peito
como as pessoas se comportam aos domingos




fernando alves dos santos
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998



12 outubro 2013

seamus heaney / saindo da maleta



4

O quarto de onde vim e de onde todos lá em casa vieram
Permanece realidade pura onde eu estou de pé, só,
Enfrentando o passar do tempo, e ela dorme

Em lençóis postos na cama para a visita do médico, presentes
De casamento que surgiam uma e outra vez, nupciais
E usuais e úteis em nascimentos e mortes.

Eu à cabeceira, a incubar, de verdade,
Perscrutando, assomando-lhe enquanto ela fecha
E abre os olhos, e depois recai

Num sorriso distante em cujo território de visão
Eu entrava de todas as vezes, para apoiar e escutar
A pergunta, naquele suspiro enrouquecido de triunfo:

"E então que tal parece
O novo bebezinho que o senhor doutor nos trouxe
Enquanto eu estava a dormir?"


seamus heaney
luz eléctrica
tradução de rui carvalho homem
quasi
2003



11 outubro 2013

nicolás guillén / poema seis (fragmento)



Índias Ocidentais! Índias Ocidentais! West Indies!
Este é o povo hirsuto
de cobre, multicéfalo, onde a vida luta
com o lodo seco entranhado na pele.
Este é o presídio
onde cada homem existe de pés atados.
Esta é a grotesca sede das companies and trusts.
Aqui estão o lago de asfalto, as minas de ferro
as plantações de café
os port docks, os ferry boats, os ten cents…

Este é o povo do all right
onde tudo se encontra mal
Este é o povo do very well
onde nada está bem.

Aqui estão os servidores de Mr. Babbit.
Os que educam os filhos em West Point.
Aqui estão os que chilreiam: hello baby
e fumam “Chesterfield” e “Lucky Strike”.
Aqui estão os bailarinos de fox trots
os boys do jazz band
e os veraneantes de Miami e Palm Beach.
Aqui estão os que pedem bread and butter
e coffee and milk.
Aqui estão os absurdos jovens sifilíticos
os fumadores de ópio e marijuana
exibindo as suas espiroquetas
e mandando fazer um fato em cada semana.
Aqui está o melhor de Port-au-Prince
O mais puro de Kingston, o high life de La Habana…
Mas aqui estão também os que remam em lágrimas
galeotes dramáticos, galeotes dramáticos.
Aqui estão eles
os que trabalham com uma picareta
a dura pedra onde pouco a pouco se crispa
o punho de um titã. Os que acendem a chispa
vermelha, sobre o campo ressequido.
Os que gritam: “Cá estamos!” e a quem responde o eco
de outras vozes: ”Cá estamos!”. Os que em rude tumulto
sentem latir o sangue com sílabas de insulto.


nicolás guillén
west indies, ltd
1934
tradução de nicolau saião



10 outubro 2013

thom gunn / peça nocturna



O nevoeiro vagueia lentamente pelo monte abaixo
E à medida que subo torna-se ainda mais denso,
Encerra-me dentro de si, faz-me seu
Como roupa de cama na pedra da calçada.

Aqui se situam as últimas poucas ruas que falta escalar,
Galerias, atravessam veias de tempo,
Quase familiares, onde rastejo
Para o sono como nevoeiro, através do nevoeiro como sono.



thom gunn
tradução de cecília rego pinheiro