15 julho 2013

ruy belo / espaço preenchido




Somos todos de aqui. Basta-nos a pátria
que uma tarde de domingo -nos consente
entre folhas de outono e frases de abandono
E abrem-se-nos ruas
para ir a sítios demasiado precisos
quando um só sítio se encontra
ao fim de todas as ruas e de todos os rios
Somos todos da raça dos mortos
ou vivos mais além
Mensagens de outra pátria não as traz
arauto algum que o nosso tempo vestisse

O que é preciso é dar lugar
aos pássaros nas ruas da cidade



ruy belo
relação
todos os poemas I
assírio & alvim
2004



14 julho 2013

herberto helder / gárgula



Gárgula.
Por dentro a chuva que a incha, por fora a pedra misteriosa
que a mantém suspensa.
E a boca demoníaca do prodígio despeja-se
no caos.
Esse animal erguido ao trono de uma estrela,
que se debruça para onde
escureço. Pelos flancos construo
a criatura. Onde corre o arrepio, das espáduas
para o fundo, com força atenta. Construo
aquela massa de tetas
e unhas, pela espinha, rosas abertas das guelras,
umbigo,
mandíbulas. Até ao centro da sua
árdua talha de estrela.
Seu buraco de água na minha boca.
E construindo falo.
Sou lírico, medonho.
Consagro-a no banho baptismal de um poema.
Inauguro.
Fora e dentro inauguro o nome de que morro.



herberto helder
le poème continu
somme anthologique
institut camões / chandeigne
paris, 2002



13 julho 2013

ricardo reis / uns, com os olhos postos no passado



Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto-
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.




ricardo reis



12 julho 2013

sharon olds / a linguagem da bazófia



Desejei ser a primeira a fazer pontaria com a faca,
desejei usar os meus braços extraordinariamente robustos e certeiros
e a minha postura erecta e os músculos ágeis e eléctricos
para alcançar algo no centro da multidão,
o fio da navalha perfurando profundamente o casco,
o punho vibrando lento e pesado como o caralho.

Desejei uma função épica para o meu excelente corpo,
um qualquer heroísmo, uma qualquer proeza americana
para além do ordinário para a minha pessoa extraordinária,
magnética e tênsil, junto ao campo de terra batida
vi os rapazes jogarem.

Desejei bravura, pensei em fogo,
em atravessar cataratas, arrastei por toda a parte

a barriga cheia de cobardia e segurança,
a minha bosta negra com as ampolas de ferro,
as minhas grandes mamas exudando muco,
as minhas pernas inchando, as minhas mãos inchando,
a minha cara inchando enegrecida, o meu cabelo
caindo, o forro do meu sexo
esfaqueado vezes sem conta por uma dor terrível como um punhal.
Jazi estendida.

Jazi estendida e suei e tremi
e expeli sangue e fezes e água e
devagar sozinha no centro de um círculo
expeli a nova pessoa
e eles ergueram a nova pessoa já livre do acto
e limparam a nova pessoa já livre
dessa linguagem de sangue tal louvor sobre todo o corpo.

Fiz aquilo que quisestes fazer, Walt Whitman,
Allen Ginsberg, fiz isto,
eu e as outras mulheres este acto
excepcional com o corpo excepcional e heróico,
este dar à luz, este verbo brilhante,
e deponho aqui a minha jactante bazófia americana
em pé de igualdade com outras.


sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004




11 julho 2013

antónio maria lisboa / varech



Eu estimo sobre tudo os teus olhos incolores
as tuas mãos inúteis, a tua boca verde

Eu falo somente dos relógios caídos, dos autocarros

Eu falo somente dos pés vermelhos

Eu falo... eu falo... eu falo...

No vigésimo século as nuvens são árvores
e os pássaros mais pequenos grandes paquidermes

Sim, é verdade, os cabelos loiros

Então, meia-noite!

Senhora, se me dá licença, este dia acabou
por este dia
simplesmente

A criança é porca, é inútil

Muito obrigado.



antónio maria lisboa
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985


10 julho 2013

ievgueni ievtuchenko / imagem de infância



  Rompendo caminho com os cotovelos,
                                                  íamos correndo.
  Espancavam alguém no mercado.
  Seria possível ver aquilo?
  Para chegar ao barulho apressámos o passo,
  Ensopámos as botas de feltro
  E esquecemo-nos de limpar o monco.
  De repente parámos...
                                     E apertou-se-nos o coração
  Ao vermos como se fechava
  O cerco dos sobretudos, dos casacos de peles
                                                             e dos gorros.
  Como o homem estava de pé,
                                    junto ao lugar da hortaliça,
  Defendendo com os ombros a cabeça das pedradas,
  Das chapadas, bofetadas, escarros, pontapés.
.
  Súbito, à direita, dão-lhe um soco em cheio na boca.
  Súbito, à esquerda, esmagam-lhe na testa
                                            uma mão cheia de gelo.
  O sangue aflorou, brotou depois com força.
  E todos se irritaram. Todos à uma começaram
                                                                    a berrar,
  Batendo no homem com rédeas e cacetes,
  Com os eixos de ferro das rodas.
  Em vão ele implorava, rouco: "Que fazeis, irmãos?"
  A multidão queria ajustar contas a sério.
  A multidão ensurdecedora, em fúria.
  A multidão repontava com os que batiam mal.
  E calcava aos pés qualquer coisa
                                          semelhante a um corpo
  No meio da neve primaveril, feita lama.

  Batiam com gosto. Com imaginação. Em cheio.
  Eu vi a pressa e a exactidão com que
  Umas botas lhe davam pontapés e pontapés,
  A ele, deitado, que mal podia respirar
  Arrastando-se na lama e no estrume.

  O dono das botas, rapagão de focinho honesto,
  Terrivelmente orgulhoso da sua honestidade,
  Continuava a bater, dizendo: "Patife!".
  Batia com inocência convicta, pesada,
  E a transpirar, rosto vermelho e satisfeito,
  Gritou-me: "Chega-lhe tu também, miúdo!"

  Não me lembro de quantos gritavam,
  Talvez cem, talvez mais de cem,
  Mas eu, o miúdo, chorei de vergonha.
  E podem ser cem a bater à bruta,
  Podem mesmo bater com razão -
  Não serei nunca o cento e um.




  ievgueni ievtuchenko
  ievtuchenko em lisboa (1967)
   dom quixote
   1968


09 julho 2013

wallace stevens / o domínio do negro



À noite, ao lume,
As cores das sebes
E as folhas caídas
Repetindo-se
Volteavam na sala
Tal como essas folhas
Volteando no vento.
Sim: mas a cor dos graves teixos
Avançava a passos largos
E eu lembrei-me do grito dos pavões.

As cores dos seus leques
Eram como essas folhas
Volteando no vento,
No vento do poente.
Giravam pela sala
Como ao soltar-se dos ramos dos teixos
A caminho do chão.
Ouvia-os gritar: os pavões.
Um grito contra o poente?
Ou contra essas folhas
Volteando no vento,
Volteando como as chamas
Volteavam no lume,
Volteando como os leques dos pavões
Volteavam no lume que se ouvia,
Que se ouvia como os teixos
Cheios dos gritos dos pavões?
Ou um grito contra os teixos?

Pela janela
Vi como os planetas se reuniam
Tal como essas folhas
Volteavam no vento.
Vi como a noite chegava,
Avançando a passos largos como a cor dos graves teixos
E tive medo.
E lembrei-me do grito dos pavões.



wallace stevens
trad. de alberto pimenta e
maria irene ramalho de sousa santos
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



08 julho 2013

ângela marques / circulares


I

Vem, que os sinos não tocaram
e ainda fez pouco tempo desde que me vesti de orquídeas,
sinto a folha nítida à flor da pele
e tenho o corpo entorpecido da chuva.
Isto não é medo dos barcos, mas antes um olhar arrefecido
por um momento de silêncio são horas de voltarmos ao cais azulado
e fazermos as despedidas de verdade.
Vem, que te encontrarei em qualquer pedaço de rua,
ou nos poços que povoam a cidade: é de ti que falarei
a vida inteira até quando abrir o jornal e encontrar um velho a sorrir,
hão-de subir-me as lágrimas ao pescoço e correrei à aldeia de terra batida,
no caminho levo águas e umbrais para que as gaivotas se não sintam sós:
então será um desfiar de rosários eternos,
como o choro de minha mãe. Quando chegar
todos estarão em fila com os olhos pregados no horizonte
(será inútil lembrar-lhes os heróis antigos)
à espera dos meus sonhos que ouviram contar.
É por isso que as casas são de granito
e a lenha não chega para tantas ilusões.
Terei que ir devagar e pensar na janela que ficou do lado das sombras,
terei que resolver as entranhas dos mortos para descobrir uma rosa
terei que fechar a porta com cabelos loiros
e então dizer-lhes
que não tenho mãos.
É quando os homens vão gritar pelos espelhos
e as mulheres ajoelhar frente ao sol,
mesmo assim conseguirei rodear-me de tojo,
fingir que tenho o mar ali ao virar das cruzes,
que os amigos não me abandonaram.
Será supremo o trigo quente e o sabor dos frutos
como se tivesse comigo um homem para afagar os olhos, ou então chorar.
Viverei das cores que me arrepiam os sentidos
porque isso bastará para curar cicatrizes, a face esfregá-la-ei com urtigas
para que os lábios não tenham tempo de secar.
Com a maior das solenidades cairei por terra:
— que me atirem ao vento para poder finalmente voar
e amar sem grilhetas nos gestos
Mas a primavera ainda não voltou,
Vem, que tenho muitas viagens por fazer.

Porto, 1980



ângela marques
circulares
nova renascença
abril/junho
primavera de 1985



07 julho 2013

luis muñoz / plano de fuga



Fechar algumas portas de saída.
À rua de seda, ao pátio concentrado em si,
à sombra generosa que fareja nos jasmins,
à facilidade, à dificuldade,
à neve enlameada que dorme no teu desejo.



luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



05 julho 2013

eduarda chiote / o corpo e a primavera



Ouço
o corpo
da primavera.

Na brisa
segura macias flores.
Dir-se-ia o delicioso rubor
dos seios.
Não sei se surgindo
da vergonha
de alguns botões ainda
por abrir.

Terno enredo
o de escutá-lo no sobressalto e despontar
do sexo: sentado
conserva os joelhos apertados
contra o queixo,
furtando-o
a invisíveis e furiosas
abelhas.
Talvez por medo
de que o mel desabe
e o tempo tenha de acolher-se,
abrasado de cio,
na delícia e destreza
de uma ingenuidade em absoluto
efémera.
De que as rosas
breve
percam o engano e o frescor
da voz.

Deixemo-lo, pois, entregue
ao claro som e asseio
do seu respirar.


eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001



04 julho 2013

miguel torga / corografia


(Bofinho, Alvaiázere, 9 de Fevereiro de 1975)


Meu Portugal eterno
De cabras e carrascos!
É no teu chão dorido
Que gasto, em paz, os cascos
De fauno envelhecido...



miguel torga
diário XII



03 julho 2013

rené char / não se entende



ao longo da luta tão negra
e da imobilidade tão negra,
o terror cegando o meu reino,
eu ocupava-me dos leões alados da colheita
até ao grito frio da anémona.

vim ao mundo na deformidade das cadeias de cada criatura.
tornávamo-nos livres os dois.

de uma moral compatível, extraí irrepreensíveis recursos.
apesar da sede de desaparecer,
fui pródigo na espera, a fé constante.

sem renunciar.



rené char
furor e mistério
tradução margarida vale de gato
relógio de água
2000



02 julho 2013

amalia bautista / perguntas e respostas




Eu sempre perguntava coisas tontas,
é certo. Perguntava, por exemplo,
se voltarias a amar-me tanto
como nos dias do amor mais jovem,
ou mesmo mais, ou mesmo mais que nunca,
mesmo mais que a ninguém, e se serias
capaz de confessá-lo ante qualquer.
É certo, perguntava coisas tontas,
não merecia uma resposta séria.
Aquele ser, mais escuro que a noite
mais escura da alma, respondia
sem olhar-me nos olhos: «Nunca mais.»



amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004