08 maio 2013

henri michaux / conselhos


  
Casanova, no seu exílio, dizia a quem quisesse
ouvi-lo: «Eu sou Casanova,
o falso Casanova.»
Tal como eu, Senhores… como decerto se ouve
por aí.
Mastiguem bem os vossos alimentos
antes de morrer,
Mastiguem-nos bem: um, dois, três!
Triste figura é a do diabo,
Triste figura a de quem vos ouve.
Para o canil! Para o canil! e para sempre,
Apoie-se no meu ombro, meu filho,
Apoie-se na minha idade e na minha experiência
Apoie-se na minha religião e na minha dependência,
Apoie-se bem antes de se encontrar bem,
Apoie-se em sonhos e sem o mostrar a ninguém,
Com a mão nas costas, e as costas na mão,
Apoie-se cão no canil,
Caroço no fruto, homem no seu nada.



henri michaux
as minhas propriedades
trad. josé carlos gonzález
fenda
1998


07 maio 2013

antónio ramos rosa / poema de um funcionário cansado


  
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.



antonio ramos rosa



06 maio 2013

gil t. sousa / kopenhagen script


  
16

-1-
as árvores furiosamente nuas
largam os seus pássaros negros
num outro mês qualquer
e as estradas separam as folhas
rolam as pedras cansadas de sol
para que o sul seja um lugar
onde a água espera
e o destino se esconde
em forma de ilha

que mão amputar
se assim nos pedem o frio?

-2-
são tão largas as horas
que se consegue ver
a solidão dum comboio vermelho
a raspar a noite
como homens à procura de uma porta
definhando gloriosamente

nas suas estações de
desespero

-3-
pelas gárgulas das catedrais
escoam-se noites antigas
que homens pacientemente sábios
recolhem letra a letra

a neve, tão mansa,
guarda-lhes a sombra e os passos
que numa janela alta e distante
um outro homem há-de ler

-4-
às vezes os navios doem
como ópio num pulmão derrotado

ou como quando tu ficas
no impossível meridiano da ausência
e eu te aceno de um silêncio
que é quase a loucura dos pássaros



gil t. sousa
água forte
2005



05 maio 2013

herberto helder / as musas cegas




III

Eu teria amado esse destino imóvel, esse frio
poço dos sons. Ela não dormia, estava
a meu lado, era uma gruta onde a música
um instante se torna imensa.
Durante um mês viveu em mim, e não dormia. Foi o mês
das musas, a penumbra da sua vida
estava coberta de ervas puras.
Não dormia. Durante
o espantoso mês das musas, eu despertava como um espelho
onde as brasas da cabeça principiam a girar.


Estava iluminada por dentro, e a noite ia e vinha
sobre os arcos e os tanques e as frestas.
Eu cantava junto a esse sonâmbulo instrumento,
eu era profundo e fecundo. O sangue
passava pelos arbustos do corpo e os pensamentos
ardiam em mim, nessa monstruosa
noite da criação.


Sinto que tocaria esse intenso violino, e a vida
mudaria, as grandes estações do ano passariam devagar
na minha confusão. Eu era um homem
e tinha na boca o ofício de sorrir
o fluxo encantado
das imagens. E tinha as palavras que um homem
tem para acender, como fogueiras,
nas margens cantantes e frias das águas
do mundo.


Vejo a minha vida agitada, as pequenas faúlhas
do rosto, a minha dor e idade
de homem,
debruçadas sobre esse objecto misterioso e triste,
e poderoso e vazio
como uma guitarra, uma coluna de obscuridade
que dormia, que não podia jamais dormir
entre uma onda que vem do céu e da terra e uma noite
que iria e viria sobre a paisagem
de arcos e pontes e torres e poços tenebrosos
e ocos.


Às vezes eu levantava um braço que deixava arder
ou pensava como era forte
a torrente do meu silêncio. Pensava
como poderia desfazer-se a carne sem que eu
gritasse. A minha voz era esplêndida.
Os mortos poderiam erguer os corpos
submersos na grande ideia
universal, poderiam ouvir a minha voz
tão límpida de terrível
alegria.


A meu lado aquele ser levitava, e por ele passavam
as aves, os montes atingiam
as corolas celestes, nunca deixavam de correr
as águas que atravessam os povos mais puros do mundo.


Era tenebroso e doce que a loucura me viesse
deste lugar, que fosse uma árvore sustentando
a minha idade.


Chegava um dia em que ela devia ser obscura,
e o meu coração ressoava. Minha dor de homem
de novo se inclinava sobre as formas mudas.
Porque a terra trabalhava para acender
aquela cidade, porque ela mesma cantaria então,
iluminada e humilde
debaixo da noite rolante, da estupenda noite
inspiradora.  Mas somente para mim
o vento circulava com seus archotes
rápidos rápidos.
Minha cabeça estremecia contra a almofada
de fogo, e o sangue despedaçava as portas,
e ao alto os telhados transparentes incendiavam-se
batidos pelos raios.


Sabia-se agora
como havia razão no oculto
movimento da fantasia, como essa força
chegava de nada e era força no próprio e puro enigma
da minha vida. Porque a obra era então -
mais que o mundo e as fontes e os leitos
dos poderes -
eu, um homem disposto sobre si
como a luz se dispõe sobre a luz
e as palavras são em si mesmas dispostas
no renovo das palavras.


Sobre a sombra de um mês confuso e rápido,
eu era um homem -
e um homem beija a sua própria boca.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996


04 maio 2013

toni montesinos gilbert / vida de areia




Quem dera que fosse feito de pó azul
para me diluir em todas as almas.
Se o meu corpo fosse pó a voar
passagens de céu, com um pouco
de frialdade, mereceria as mortes
irrecuperáveis, para sempre já
empoeirados pela sua ausência histórica.

Perderam-se, ficaram sem sangue.
E foi porque ninguém voltou a chamá-las.
E começaram a sonhar com montanhas,
e mais tarde com pedras, depois com areia
do tempo deserto. E por fim, com pó.
O sonho solitário conduziu-as
a cavar o amor numa estrela,
junto do que nunca puderam ter.

Eu quero chegar a todas as almas,
ser azul para distender o tempo,
ser um horizonte entre vida e morte,
esperar os amanheceres lento,
como se voltasse a nascer, azulado.

Quem dera que estivesse fora do século,
sem correspondência com nenhum espaço
concreto, sentir-me livre como pó
diluído em qualquer das ruas
conhecidas por onde caminhei.
Ser a presença total e absoluta.
Possuir o olhar omnipresente…

Mas apenas sou de carne e osso.
Um dia morrerei e não poderei pensar,
nunca mais, como construir um relógio
para sentir a vida mais extensa.




toni montesinos gilbert
poesia espanhola, anos 90
trad. Joaquim Manuel Magalhães
relógio d´água
2000



03 maio 2013

antónio botto / canções


  
1.

Não. Beijemo-nos, apenas,
Nesta agonia da tarde.

Guarda -
Para outro momento.
Teu viril corpo trigueiro.

O meu desejo não arde
E a convivência contigo
Modificou-me - sou outro. . .

A névoa da noite cai.

Já mal distingo a cor fulva
Dos teus cabelos, - És lindo!

A morte
Devia ser
Uma vaga fantasia!

Dá-me o teu braço: - não ponhas
Esse desmaio na voz.

Sim, beijemo-nos, apenas!,
- Que mais precisamos nós?



antónio botto
 as canções de antónio botto


02 maio 2013

antónio josé forte / lisboa revisitada




Frio frio
como a pedra do rio
- as artes as letras
os cafés do rossio

frio frio
- as mãos
presas à noite por um fio
os amantes ao demónio
anjos e arcanjos ao cio

frio
- a morte
ela e a sua corte
de caudas de pavões
no alto do navio



antónio josé forte
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985



01 maio 2013

josé régio / narciso



Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!

Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!

Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:

Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho!



josé régio


30 abril 2013

daniel faria / dos campos que cultivei…




Dos campos que cultivei duas sementes restaram
O centro
Da pedra e as mãos

Dentro da segunda cultivei a hora de afastar-me
(Não havia ninguém a quem dizer
Já vou)

Dentro da solidão os espantalhos (não lhes fora dada
A companhia dos pássaros)

Abri os braços como as vides nos bardos
Hora após hora (e depois delas) te esperei



daniel faria
poesia
das inúmeras águas
quasi
2003


29 abril 2013

constantino cavafy / a origem


  
Consumara-se o prazer ilícito.
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.

Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.

                                                          [1921]



constantino cavafy
90 e mais poemas
trad jorge de sena
edições asa
2003



28 abril 2013

franz kafka / diários




1912, 12 de março

No elétrico que passou rapidamente estava sentado a um canto, a face contra a janela, o braço direito estendido ao longo do encosto do banco, um jovem com o sobretudo desabotoado, muito largo para ele, a olhar para o comprido banco vazio. Tinha ficado noivo hoje e não conseguia pensar noutra coisa. O facto de estar noivo dava-lhe uma sensação de conforto e com esta sensação ele olhava de vez em quando para cima, para o tecto do carro eléctrico. Quando o condutor lhe veio vender o bilhete, encontrou facilmente e no meio do tilintar de moedas a moeda exacta, com um gesto só colocou-a na mão do condutor e pegou no bilhete com dois dedos que ele abria como se fosse uma tesoura. Não havia nenhuma ligação verdadeira entre ele e o carro elétrico e não teria sido uma surpresa se, sem ter usado a plataforma e os degraus, ele tivesse aparecido na rua e tivesse ido no seu caminho a pé e com o mesmo ar.

Só o sobretudo grande de mais existia, tudo o resto foi imaginado.




franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986



27 abril 2013

armando silva carvalho / em sintra, numa cama




Deitado nesta cama, onde dormiste
onde pesaste o corpo
onde sentiste o gravitar
da chuva o vento
a cobra do vento,

deitado nesta, onde caíste
no alçapão directo das saudades
nas podres drogarias do meu siso,
deitado nesta cama, onde um
penico arde com cigarros,
olhado pelos jarros,
pelos bigodes de um velho
e a mansa mão da esfinge
sobre a mesa,

eu leio nas paredes que me estalam
porque secas de som,
bisonhas redacções de juventude,
sinais de vestuário,
peças de roupa interior
que outrora me feriam.
As linhas que compunha
na bruma caligráfica do tempo
onde te ergui, então, pedra por
pedra, puxando por ridículas roldanas
meus pesados blocos
de ternura.

Deitado nesta cama
revejo o que podia ser teu corpo
na frase trémula que me arrasta
as têmporas. Sacudo puxo penso
com os sentidos livres
de combustão latente
em que me ardeu o sono.



armando silva carvalho
o comércio dos nervos 1968
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



26 abril 2013

herberto helder / as musas cegas



I

Bruxelas, um mês. De pé sob as luzes encantadas.
Em noites assim eu extinguiria minha alma
cantando humildemente. Fecharia os olhos
sob os anéis dos astros, e entre os violinos
e os fortes poços da noite descobriria
a ardente ideia da minha vida.
Em noites assim amaria o fogo
da minha idade. Cantaria como um louco este grande
silêncio do mundo, vendo queimarem-se nas trevas
as vísceras tensas e os ossos e as flores dos nervos
e a cândida e ligeira arquitectura
de uma vida.


Bruxelas com as traves da minha cabeça
e uma grinalda de carvões em torno dos testículos
de um homem
bêbado da sua idade. Cantaria com esses testículos
negros, as lágrimas, o coração ao meio do nevoeiro
derramando o seu baixo e aéreo sangue,
a sua dor, o lírico
fervor, o fogo de porta entre os símbolos nocturnos.


Era tão pura a ideia de que o tempo começava
depois do verde e fértil e exaltado
mês da carne. Vergada sobre o livro onde o meu rosto
ardia,
a vida esperava com suas torres
vibrantes, seus grandes lagos
límpidos. E eu adormecia
e sonhava um homem em voz alta, um vidro
incandescente, uma fina flor
vermelha colocada sobre a mesa. Era tão violenta
a ideia de cantar sem fim,
até  que a voz consumisse esta garganta sombreada
de estreitos vasos puros.
- Cantar fixa e fria e intensamente
sobre a minha rasa
luminosa vida, ou sobre os campos transparentes e sombrios
de bruxelas do mundo.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996