02 abril 2013

jorge de sousa braga / morte em veneza




De muitas coisas se pode morrer
em Veneza
De velhice de susto
de peste

ou de beleza



jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991


01 abril 2013

daniel faria / do inesgotável



6

Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões.
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo
Se se recorda dos movimentos migratórios
E das estações.
Mas não me importo de adoecer no teu colo
De dormir ao relento nas tuas mãos.




daniel faria
poesia
do inesgotável
quasi
2003


31 março 2013

paul éluard / como duas gotas de água


(fragmento)


De tudo o que disse de mim que resta
Conservei falsos tesouros em armários vazios
Um navio inútil liga a minha infância ao meu fastio
Os meus jogos ao cansaço
A tempestade ao arco das noites em que estou só
Uma ilha sem animais aos animais que amo
Uma mulher abandonada à mulher sempre nova
Em veia de beleza
A única mulher real
Aqui e em qualquer parte
A oferecer sonhos aos ausentes
Sua mão estendida para mim
Reflecte-se na minha
Digo bom-dia sorrindo
Não se pensa na ignorância
E a ignorância reina
Sim eu tudo esperei
E desesperei de tudo
Da vida do amor do esquecimento do sono
Das forças das fraquezas
Já não me conhecem
Lobos são meu nome e minha sombra.



paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977



30 março 2013

federico garcia lorca / ãnsia de estátua




Rumor.
Ainda que não fique nada mais que o rumor.
Aroma.
Ainda que não fique mais que aroma.
Mas arranca de mim a recordação
e a cor das velhas horas.

Dor.
Ante a mágica e viva dor.
Batalha.
Na autêntica e suja batalha.
Mas tira a gente invisível
que rodeia perene a minha casa!




federico garcia lorca


29 março 2013

josé gomes ferreira / é tudo tão pequeno esta manhã




É tudo tão pequeno esta manhã.

As aves acordaram surpreendidas,
a voarem nos meus olhos
curvas fatigadas
de Primavera morta…

As mãos caem-me secas
ao longo do corpo
em folhas recortadas
de árvore de solidão…

As raízes sugam-me nas veias
o sangue da terra
das manhãs de sussurro…

Sim. Hoje só eu existo…

Eu com este remorso de gota de água
que se recusa a cair no mar
─  para se sentir maior
longe da cólera comum da Tempestade.




josé gomes ferreira
poesia II
pessoais 1939-1940
portugália
1962



28 março 2013

jean genet / a solidão, já disse…





A solidão, já disse,
só a presença do púbico pode concedê-la,
e vais ter de actuar de maneira diferente e
recorrer a métodos diferentes.


Através de um artifício —  por efeito da tua vontade
deves fazer entrar em ti uma sensibilidade destas
em relação ao mundo.
À medida que sobem as suas ondas —
como sobe o frio dos pés e chega às pernas,
às coxas, ao ventre de Sócrates —
toma o seu frio conta do teu coração e transforma-o em gelo.


— Não, não, três vezes não:
não vens divertir o público, mas fasciná-lo.
Confessa
que não deixava de ser curiosa a sensação que ele teria —
refiro-me ao maior espanto, ao pânico —
se acaso chegasse a distinguir muito claramente
que naquela noite, pelo fio, andava um cadáver!


«Toma o seu frio conta do teu coração e transforma-o em gelo»..,
mas — é este o maior mistério — precisará ao mesmo tempo
que uma espécie de vapor saia de ti muito leve,
sem ser capaz de te esfumar os ângulos,
e nos desvende o foco que no teu centro
não deixa alimentar esta morte gélida
que iria puxar-te pelos pés.

E o teu fato?
Ao mesmo tempo casto e provocante.
A malha justa do Circo,
um vermelho e sangrento jersey.
Indica com precisão os teus músculos,
cinge-te, enluva-te, mas do pescoço — aberto em redondo,
cortado cerce como se o carrasco nessa noite fosse decapitar-te
— do pescoço à anca um lenço vermelho ainda,
e de panos a flutuar — franjado a ouro.

Escarpins vermelhos, o lenço, o cinto,
o debrum do decote, as fitas abaixo do joelho,
são bordados a lantejoulas.
Com certeza para cintilares
mas sobretudo perderes na serradura,
ao atravessares a pista, algumas lantejoulas mal cosidas,
delicados emblemas do Circo.

Durante o dia caem do teu cabelo outras,
quando vais ao merceeiro.
O suor colou uma no teu ombro.

Em relevo na malha,
o alforge onde guardas os tomates
terá bordado um dragão
de ouro.

(...)



jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984



27 março 2013

harold pinter / o drama em abril




E assim se tornou Março num museu,
E se abriram as cortinas de Abril.
Percorro a galeria vazia
Até ao último lugar.
Naquele cenário primaveril
Os actores armam tendas,
E num mínimo de luz
Começam a sua representação.

Os gritos deles no escuro pulverulento
Adensam-se com pesar vindos
Dos bastidores do Ambassadors.
Os objectos e os adereços à chuva
São a cinza da casa
E as pedras tumulares sem número
No meio do verde.

Anseio pelo intervalo,
Farto deste reportório.

1952



harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006


26 março 2013

nuno vidal / um fio



É de quanto precisas o amor
e de um espelho. As perguntas
do teu lado do telefone conduzem
a isto, uns olhos no tecto julgadores.

Completar uma interrupção é infeliz
e são desapontamentos antigos.
Deixa-me todavia ouvir-te que
há saudades e se fosse e pudesse.
Transtorno-me momentaneamente
por um inesperado de imaginação.
É a tua voz ou as tuas narinas
uma afoiteza familiar.


Não não. Fui eu que me lembrei.
Dois putos que se viram com uma
casa, dois ou três limites, coisa pouca.
E eu ia para o frio um autocarro
à uma da madrugada tu de barriga
para baixo no mesmo incómodo.
Ao menos temos isso.



nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




25 março 2013

antónio osório / o canário assistente




Ao lado dos dois pianos
assiste à lição da menina.

É generoso com o velho
professor. E cantando
também ele ensina tudo o que sabe.



antónio osório
de planetário e zoo dos homens
a escadas não têm degraus nr. 3
livros cotovia
março de 1990



24 março 2013

albano martins / uma folha, o seu galope




O que persegues é apenas
uma folha, o seu galope, a crina
verde de um retrato
saído da moldura.
                             Quantas
palavras te são
ainda necessárias
para dizer a calcinada
lâmina do sangue, a exígua
metáfora
do corpo abandonado
à sua cremação?



albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999



23 março 2013

gil t. sousa / maré




14

quando a maré se afasta
é possível escrever tudo

outra vez




gil t. sousa
água forte
2005


22 março 2013

felipe benitez reyes / aviso por palavras


  
Não confundas desejo com paixão:
O desejo vale mais – nunca morre,
e busca sob luas tormentosas,
com olhar de lobo que não dorme,
o frágil fulgor fugaz dos relâmpagos.




felipe benitez reyes
espanha
tradução de manuel rodrigues 



21 março 2013

herberto helder / do mundo IV




Sou eu, assimétrico, artesão, anterior
- na infância, no inferno.
Desarrumado num retrato em ouro todo aberto.
A luz apoia-se nos planos de ar e água sobrepostos,
e entre eles desenvolvem-se
as matérias.
Trabalho um nome, o meu nome, a dor do sangue,
defronte
da massa inóspita ou da massa
mansa de outros nomes.
Vinhos enxameados, copos, facas, frutos opacos, leves
nomes,
escrevem-nos os dedos ferozes no papel
pouco, próximo. Tudo se purifica: o mundo
e o seu vocabulário. No retrato e no rosto, nas idades em que,
gramatical, carnalmente, me reparto.

Desequilibro-me para o lado onde trabalha a morte.
O lado em que tudo isto se cala.




herberto helder
poesia toda
do mundo, iv
assírio & alvim
1996