26 março 2013

nuno vidal / um fio



É de quanto precisas o amor
e de um espelho. As perguntas
do teu lado do telefone conduzem
a isto, uns olhos no tecto julgadores.

Completar uma interrupção é infeliz
e são desapontamentos antigos.
Deixa-me todavia ouvir-te que
há saudades e se fosse e pudesse.
Transtorno-me momentaneamente
por um inesperado de imaginação.
É a tua voz ou as tuas narinas
uma afoiteza familiar.


Não não. Fui eu que me lembrei.
Dois putos que se viram com uma
casa, dois ou três limites, coisa pouca.
E eu ia para o frio um autocarro
à uma da madrugada tu de barriga
para baixo no mesmo incómodo.
Ao menos temos isso.



nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




25 março 2013

antónio osório / o canário assistente




Ao lado dos dois pianos
assiste à lição da menina.

É generoso com o velho
professor. E cantando
também ele ensina tudo o que sabe.



antónio osório
de planetário e zoo dos homens
a escadas não têm degraus nr. 3
livros cotovia
março de 1990



24 março 2013

albano martins / uma folha, o seu galope




O que persegues é apenas
uma folha, o seu galope, a crina
verde de um retrato
saído da moldura.
                             Quantas
palavras te são
ainda necessárias
para dizer a calcinada
lâmina do sangue, a exígua
metáfora
do corpo abandonado
à sua cremação?



albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999



23 março 2013

gil t. sousa / maré




14

quando a maré se afasta
é possível escrever tudo

outra vez




gil t. sousa
água forte
2005


22 março 2013

felipe benitez reyes / aviso por palavras


  
Não confundas desejo com paixão:
O desejo vale mais – nunca morre,
e busca sob luas tormentosas,
com olhar de lobo que não dorme,
o frágil fulgor fugaz dos relâmpagos.




felipe benitez reyes
espanha
tradução de manuel rodrigues 



21 março 2013

herberto helder / do mundo IV




Sou eu, assimétrico, artesão, anterior
- na infância, no inferno.
Desarrumado num retrato em ouro todo aberto.
A luz apoia-se nos planos de ar e água sobrepostos,
e entre eles desenvolvem-se
as matérias.
Trabalho um nome, o meu nome, a dor do sangue,
defronte
da massa inóspita ou da massa
mansa de outros nomes.
Vinhos enxameados, copos, facas, frutos opacos, leves
nomes,
escrevem-nos os dedos ferozes no papel
pouco, próximo. Tudo se purifica: o mundo
e o seu vocabulário. No retrato e no rosto, nas idades em que,
gramatical, carnalmente, me reparto.

Desequilibro-me para o lado onde trabalha a morte.
O lado em que tudo isto se cala.




herberto helder
poesia toda
do mundo, iv
assírio & alvim
1996


20 março 2013

alejandra pizarnik / o despertar




“Senhor
a gaiola transformou-se em pássaro
e voou
e o meu coração está louco
porque uiva à morte
e sorri por detrás do vento
aos meus delírios

Que hei-de fazer com o medo
Que hei-de fazer com o medo

A luz já não dança no meu sorriso
nem as estações queimam pombas nas minhas
ideias
As minhas mãos despiram-se
e foram até onde a morte
ensina os mortos a viver

Senhor
o ar castiga-me o ser
Por detrás do ar há monstros
que bebem do meu sangue

É  o desastre
é a hora do vazio no vazio
é o instante de aferrolhar os lábios
Ouvir gritar os condenados
contemplar cada um dos meus nomes
enforcados no nada

Senhor
eu tenho vinte anos
e também os meus olhos têm vinte anos
e no entanto não dizem nada

Senhor
eu consumei a minha vida num instante
Estalou a última inocência
Agora é nunca ou jamais
ou simplesmente foi

Porque é que não me mato defronte a um espelho
e desapareço para ressurgir no mar
onde me havia de esperar um grande navio
com as luzes acesas?

Porque é que não arranco as veias
e faço com elas uma escada
para subir ao outro lado da noite?

O princípio deu à luz o final
tudo permanecerá igual
os sorrisos gastos
o interesse interessado
as perguntas de pedra em pedra
os gestos que arremessam o amor
tudo continuará igual

E no entanto os meus braços insistem em abraçar o mundo
porque ainda não lhes ensinaram
que já é demasiado tarde

Senhor
Atira os cadáveres do meu sangue

Recordo a minha meninice
quando eu era uma anciã
as flores morriam nas minhas mãos
porque a dança selvagem da alegria
lhes destruía o coração

Recordo as negras manhãs de sol
quando era menina
quer dizer ontem
quer dizer há séculos

Senhor
a gaiola transformou-se em pássaro
e devorou-me a esperança

Senhor
a gaiola transformou-se em pássaro
Que hei-de fazer com o medo?”




alejandra pizarnik
tradução livre


19 março 2013

àlex susanna / recordação de lisboa




Como me agradam estas vozes cansadas,
escuras, pesadas, calmas como bois,
grávidas de luto e de saudade
e ao mesmo tempo de uma fúria contida,
centrada na aspereza da glote,
vozes que parecem vir de muito fundo,
de se terem arrastado por muitas ruas
repartidas entre o desejo e o esquecimento,
vozes que vão aquecendo pouco a pouco,
engrossando, empastando e cozendo
até coalhar de todo consigo mesmas:              
são como um grande poço quase seco
de onde é difícil tirar água no início,
mas quando nos chega a sua fragância,
que jorro de vida não supura
e como ficámos impregnados e húmidos!
 
Isso podem ser canções de taverna
ou os versos de algum velho queixoso
que ainda tem vontade de escrever.




àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves



18 março 2013

paul éluard / tristeza de ondas de pedra




Tristeza de ondas de pedra.

Lâminas apunhalam lâminas
Vidros quebram vidros
Lâmpadas apagam lâmpadas.

Tantos laços quebrados.

A flecha e a ferida
O olho e a luz
A ascensão e a cabeça.

Invisível no silêncio.



paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977




16 março 2013

laura riding / o vento, o relógio, o nós




O vento penetrou por fim no relógio -
Cada minuto por si próprio.
Já não há sessenta,
Já não há doze,
É tão tarde quanto cedo.

A chuva dissipou os números.
As árvores não cuidam do que se passa.
O tempo tornou-se uma paisagem
De estóicos ramos e folhas suicidas -
Tão depressa pintados quanto despintados.
Ou talvez seja demais dizer isso,
Com o relógio a boiar em si próprio
E os minutos de licença para a morte.

O mar não é de todo imagem.
Para o mar, pois: agora é tempo,
E cada mortal é um marinheiro
Que jurou vingança contra o vento,
Arrojar a vida de novo aos finos dentes
De onde lhe saiu o primeiro silvo,
Um estúpido desafio de não se sabe o quê,
Guinchando em redor do relógio examinante.

Agora não existe sopro ou tiquetaque.
O barco afundou-se com os homens,
O mar, com o barco, o vento, com o mar.
O vento penetrou por fim no relógio,
O relógio penetrou por fim no vento,
O mundo saiu por fim de si próprio.
Por fim fazemos sentido, tu e eu,
Tu, solitário sobrevivente no papel,
O ousar do vento e o cuidar do relógio
Tornados uma língua sem voz,
E eu, a história aí silenciada -

Há de mim algo mais a dizer?
Digo eu mais do que a hesitação estrangulada de si
A repetir-me palavra por palavra,
Sem que uma pausa altere o guião,
Ou talvez querendo dizer outra coisa?


laura riding
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993



15 março 2013

john ashbery / andando por aí




Que nome tenho eu para ti?
Decerto não há nome para ti
No sentido em que as estrelas não têm nomes
Que de algum modo lhes servem. Andando por aí,

Um motivo de curiosidade para alguns,
Mas tu estás demasiado preocupado
Com a nódoa secreta do outro lado da tua alma
Para falar muito, e vagueias por aí,

Sorrindo para ti e para os outros.
Chega a ser um tanto solitário,
Mas ao mesmo tempo desanimador,
Contraproducente, quando percebes uma vez mais

Que o caminho mais longo é o mais eficaz,
Aquele que serpenteava por entre as ilhas, e
Parecia que andavas sempre em círculo.
E agora que o fim está perto

Os gomos da viagem abrem-se como um laranja.
Lá dentro há luz, e mistério e sustento.
Anda ver. Vem, não por mim, mas por isso.
Mas se eu ainda lá estiver, concede que nos possamos encontrar.



john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992



14 março 2013

leopoldo maria panero / o circo




Dois atletas saltam de um lado para o outro da minha alma
aos gritos, a troçar da vida:
e não sei os seus nomes. E na minha alma vazia escuto
continuamente os trapézios a balançar. Dois
atletas saltam de um lado para o outro da minha alma
contentes por ela estar tão vazia.
E ouço
ouço no espaço sem sons
uma vez e outra vez os trapézios que rangem
uma vez e outra vez.
Uma mulher sem rosto canta de pé sobre a minha alma,
uma mulher sem rosto sobre a minha alma no chão,
a minha alma, a minha alma: e repito essa palavra
não sei se como uma criança chamando a sua mãe à luz,
em confusos sons e com prantos, ou muito simplesmente
para fazer ver que não tem sentido.
A minha alma. A minha alma
é como terra dura que calcam sem a ver
cavalos e carroças e pés, e seres
que não existem e de cujos olhos
brota o meu sangue hoje, ontem, amanhã. Seres
sem cabeça cantarão sobre o meu túmulo
uma canção incompreensível. E
dividirão entre si os ossos da minha alma.
A minha alma. O meu
irmão morto fuma um cigarro junto de mim.



leopoldo maria panero
poesia espanhola de agora vol. I
tradução de joaquim manuel Magalhães
relógio d´água
1997


13 março 2013

alexandre o'neill / em todo o caso




Remancha, poeta,
Remancha e desmancha
O teu belo plano
De escrever p'la certa.
Não há "p'la certa", poeta!

Mas em todo o caso acerta
Nem que seja a um verso por ano...



alexandre o'neill
tomai lá do o'neill, uma antologia
círculo de leitores
1986