12 janeiro 2013

albano martins / acontecimento




Tu choravas e eu ia apagando
com os meus beijos os rastos das tuas lágrimas
─  riscos na areia mole e quente do teu rosto.
Choravas como quem se procura.
E eu descobria mundos, inventava nomes,
enquanto ia espremendo com as mãos
o meu sangue todo no teu sangue.

Não sei se o mundo existia e nós existíamos realmente.
Sei que tudo estava suspenso,
esperando não sei que grave acontecimento,
e que milhares de insectos paravam e zumbiam nos
meus sentidos.
Só a minha boca era uma abelha inquieta
percorrendo e picando o teu corpo de beijos.

Depois só dei pela manhã,
a manhã atrevida
entrando devagar, muito devagar e acordando-me.
Desviei os meus olhos para ti :
ao longo do teu corpo morriam as estrelas.
A noite partira. E, lentamente,
o sol rompeu no céu da tua boca.




albano martins
assim são as algas
campo das letras
2000



11 janeiro 2013

al berto / acordar tarde




tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia.




al berto
horto de incêndio
assírio & alvim
1997



10 janeiro 2013

sylvia plath / lorelei




Não existe nenhuma noite para nos afogarmos:
lua cheia, um rio correndo
negro sob um suave reflexo de espelho,

névoas azuis da água gotejando
de malha para malha como redes de pesca
embora os pescadores durmam,

torres sólidas do castelo
multiplicando-se num espelho
todo ele silêncio. Mas estas formas flutuam

em minha direcção, perturbando o rosto
da quietude. Do nadir
erguem os seus membros plenos

de opulência, cabelos mais pesados
que o mármore esculpido. Cantam
um mundo mais cheio e límpido

do que aquele que existe. Irmãs, a vossa canção
traz uma carga demasiado pesada
para ser escutada pelas espirais do ouvido,

aqui, num país onde um sensato
senhor governa equilibradamente.
Ao serem perturbadas pela harmonia

que existe além da ordem deste mundo,
as vossas vozes fazem um cerco. Estais alojadas
nos recifes em declive do pesadelo,

prometendo um abrigo certo;
de dia, estendem-se para além dos limites
da inércia, das saliências

que existem também nas altas janelas. Pior
ainda que esta canção de enlouquecer
é o vosso silêncio. Na origem

do apelo do vosso coração gelado
─ a embriaguez das grandes profundezas.
Ó rio, como vejo serem arrastadas

lá no fundo do teu curso de prata,
aquelas grandes deusas da paz.
Pedra, pedra, leva-me lá para baixo.




sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990




09 janeiro 2013

maria gabriela llansol / meu deus, agora o amor está sujo




5 de Março de 1995



__________________________________________________________________________ Sandra,


   Meu Deus, agora o amor está sujo. Numa bacia. Sujo, como é possível? Não penses que é uma pergunta, é antes uma não-pergunta, ou o espanto antes da pergunta, o puro lugar do in-compreender. Uma morte,
que voz a traz,
a aproxima de nós e nos enxovalha o olhar?
    Que o sólido existe, existe,     como a natureza vegetal existe. Basta olhar como se decompõe o madeiro da árvore.
    Que o líquido existe, existe,     como a natureza animal existe. Basta ver como se liquefaz um corpo.
   Mas não será preciso, meu amor, tornar mais inteligível, mais percuciente, mais feroz, em suma, mais irradiante, a natureza evanescente, real e vaporosa, das figuras
que sempre fomos,
esses animais magníficos de uivo vibrante,
em vias de extinção?
    Com os olhos, a rapariga que saiu do texto («Não sintas ciúmes! Não há nada disso entre nós!») diz-me que sim, mas com a boca pronuncia:
    ─ Que coisa incompreensível termos vivido com um nome próprio.




maria gabriela llansol
inquérito às quatro confidências
relógio d´água
1996



08 janeiro 2013

ary dos santos / na mesa do santo ofício




Tu lhes dirás, meu amor, que nós não existimos.
Que nascemos da noite, das árvores, das nuvens.
Que viemos, amámos, pecámos e partimos
Como a água das chuvas.

Tu lhes dirás, meu amor, que ambos nos sorrimos
Do que dizem e pensam
E que a nossa aventura,
É no vento que passa que a ouvimos,
É no nosso silêncio que perdura.

Tu lhes dirás, meu amor, que nós não falaremos
E que enterrámos vivo o fogo que nos queima.
Tu lhes dirás, meu amor, se for preciso,
Que nos espreguiçaremos na fogueira.



ary dos santos
vinte anos de poesia
a liturgia do sangue 1963
círculo de leitores
1983


07 janeiro 2013

josé gomes ferreira / invasão



XVIII

(Legenda escrita com sangue num
Muro de protesto.)


«Fecharam-me na pedra viva deste Pesadelo…
─  mas ergui-me a cantar do tamanho da treva!

Sim, a cantar,

Eu, o homem que não tenho medo do universo vazio
e ando a encher as estrelas e os mundos
 da chama do meu frio.»



josé gomes ferreira
poesia II
invasão 1940-1941
portugália
1962


06 janeiro 2013

antonio orihuela / o fato novo do imperador




Tenho 31 anos e estou cansado.
Todos os sítios me vão parecendo, finalmente,
igualmente maus.
Todas as pessoas, incluindo as que gostam de mim,
insuportáveis.
Não encontro sentido nem para o que faço
nem para as coisas que deixo por fazer.
Olho para os outros
com a absoluta certeza de quem vê
não semelhantes,
serenos, resignados, envilecidos extraterrestres.
Olho para mim
e sinto-me como se não tivesse outros com quem partilhar.
Para onde quer que eu olhe,
a insuportável mentira que faz ninho, germina, destila
este tempo, este país, este modo de viver
a que chamam
progressista, tolerante, solidário, democrático,
avançado, europeu, e melhor e melhor
que todos os existidos,
que todos os possíveis.
Este modo de viver
onde falta tudo o que foi nomeado.
Que desfez a classe trabalhadora sem uma única bala,
que encarcerou as consciências sem uma única grade,
que me afasta sem um único cassetete,
que me exclui sem um ferro candente,
sem sequer uma estrela amarela na lapela.

Este tempo
de fatos novos,
de Imperadores.




antonio orihuela
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




05 janeiro 2013

josé tolentino mendonça / a presença mais pura




Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
"a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?"

a altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um "não esquecer" fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome

ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
"a que distância deixaste
o coração?"




josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999



04 janeiro 2013

fernando guimarães / pedra




Fender aqui a pedra; procurar o que se torna
no seu próprio sentido; este peso. Assim se espera
que chegue um equilíbrio novo até podermos conhecer
o modo como diante de nós fica imóvel. O tempo
há de passar depressa. As mãos estão unidas
à sua volta e recebem o que nela estava mais distante
até se consumar em nós o que também há-de ser
a leveza.




fernando guimarães
relâmpago
revista de poesia 29/30
outubro 2011/abril 2012



03 janeiro 2013

edgar allan poe / só




Na infância, não fui como os outros
e nunca vi como outros viam.

As minhas paixões, não me vinham
de fonte igual à deles;

e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que despertava
o coração para a alegria.

Tudo o que amei, amei sozinho.

Assim, na minha infância, no alvor
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.

Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;

e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;

e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,

só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demónio, ante meus olhos.



edgar allan pöe



02 janeiro 2013

luis buñuel / bacanal




Carneiro de 125 pesetas,
caracóis abundantes, manuais como o ventre da mulher de 150 pesetas;
os pães que o pobre come
podem ser amassados desse ventre
e cozidos com fogo de polegares.

Quando cruzamos os polegares para formar uma harpa
renova-se o martírio de S. Bartolomeu,
que, souberam depois, era um diabo
ou um fauno
que se ria da cruz.

Ao morrer comeram-no umas formigas de ouro
que tinham carne de moura
e cu de bailadeira.
S. Bartolomeu e o fauno dançavam
enquanto as pedras saíam disparadas da terra
como beijos atirados com a ponta dos dedos.

Do túmulo de S. Bartolomeu sai uma espiga de bronze
por cada beijo que pôde e não quis roubar.



luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977


01 janeiro 2013

antonio gamoneda / houve um tempo…


  

Houve um tempo em que as minhas únicas paixões
     eram a pobreza e a chuva.


Agora sinto a pureza dos limites e a minha paixão
     não existiria se eu soubesse o seu nome.


  
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999




31 dezembro 2012

herberto helder / elegia múltipla V




Não posso ouvir cantar tão friamente. Cantam
sobre a minha vida.
Trouxeram a taciturna pureza das grandes noites
do mundo.
Do antigo elemento do silêncio subiu essa canção
devastadora. Ó feroz mundo puro,
ó vida incomparável. Cantam, cantam.
Abro os olhos debaixo das águas silenciosas,
e vejo que minha lembrança é mais remota
que tudo. Cantam friamente.
Não posso ouvir cantar.

Se dissessem: a tua vida é uma roseira. Vê
como bebe no anónimo da estação.
O sangue escorrega por ti, quando é a altura das rosas.
Ouve: não te maravilha
a subtileza de espinhos e folhas pequeníssimas?
─  Se dissessem alguma coisa, eu ficaria rico
de um nome extremo.
Não cantem, não floresçam.
Não posso sentir encher-se assim a vida
com uma canção fria e uma roseira
tão espalhada em mim.

Pode ser que fosse ilesa esta época do ano,
e minha existência de repente se tomasse
por todo esse fervor.
Vejo minha ardente agudeza escoar-se à maturidade
confluente
de um minuto de verão. - Estaria eu
completo para a morte?
Não, não cantem essa lembrança de tudo.
Nem roseira na sangrenta delicadeza
da carne, nem o verão com seus
símbolos de feroz plenitude.

Gostaria de pensar cada um dos meus dedos,
esta cítara descida da obra.
Toda a tristeza como uma vida admirável
enchendo a eternidade.
As frias canções despovoam-me, e as roseiras
tornam desavindas as rosas
recuadas. Ouve: na tristeza do estio enorme
alui-se-me o uno sangue.
Eu próprio poderia cantar um nome masculino,
a minha vida inteira
tão forte e impura, tão preenchida pelo quente silêncio
do que se não sabe.

Não se canta e floresce. Ninguém
amadurece no meio da sua vida.
Toca-se lentamente uma parte suspensa do corpo,
e a alta tristeza purifica os dedos.
Porque um homem não é uma canção fria ou
uma roseira. Não
é um fruto como entre folhas inspiradoras.
Um homem vive uma profunda eternidade que se fecha
sobre ele, mas onde o corpo
arde para além de qualquer símbolo, sem alma e puro
como um sacrifício antigo.

─  Por sobre frias canções e roseiras aterradoras,
minha carne ligada nutre o silêncio maravilhoso
de uma grande vida.

Pode ser que tudo esteja bem no plural
de um mundo intenso. Mas
o amor é outro poder, a carne
vive da sua absorta permanência. Esta vida
de que falo
não se escoa, não alimenta os superlativos
diários. É única
e perene sobre a escondida fluência
dos movimentos.

─  Uma roseira, mesmo
incomparável, cobre tudo com a sua distracção vermelha.
Por detrás da noite de pendidas
rosas, a carne é triste e perfeita
como um livro.



herberto helder
elegia múltipla,poema v
poesia toda
assírio & alvim
1996