16 julho 2012

eduardo garcía / quando a pele


  


Sou frágil nas tuas mãos, sou papel,
e quando o mar se lança e se retira
sinto o furor calado das constelações,
a fuga das feras no jardim em chamas,
o clamor das aves se amanhece.
Então somos mais que duas figuras
que o combate conduz ao esquecimento.
Somos o mar, a terra que perdura,
o seu pulsar animal, um estertor
ditoso que nos traz a estas paredes.
Os humildes objectos sorriem-nos.




eduardo garcía
poesia espanhola, anos 90
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



15 julho 2012

gil t. sousa / as nossas mãos


  

4

eram tão simples
as nossas mãos

ainda tão simples
e prontas

quando
nos procurávamos

como se tudo
nos faltasse



gil t. sousa
água forte
2005



14 julho 2012

alejandra pizarnik / a jaula




Lá fora há sol.
É apenas o sol
mas os homens olham-no
e depois cantam.

Eu não sei do sol,
eu sei da melodia do anjo
e o sermão quente
do último vento.
Sei gritar até de madrugada
quando a morte se põe nua
na minha sombra.

Choro debaixo do meu nome.
Abano lenços na noite
e barcos sedentos de realidade
bailam comigo.
Escondo cravos
Para escarnecer dos meus sonhos enfermos.

Lá fora há sol.
Visto-me de cinzas.



alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002



13 julho 2012

samuel beckett / pra lá






     pra lá
     muito longe
     para alguém
     tão pequeno
     belos narcisos
     partir então

     aí sem mais
     aí sem mais

     depois daí
     narcisos
     de novo
     partir então
     de novo
     muito longe
     de novo
     para alguém
     tão pequeno

     1976


   

samuel beckett
relâmpago” nr.13
trad. manuel portela
10/2003



12 julho 2012

katerina angheláki-rooke / regresso ao tempo sem amor





     O cão foi o primeiro sinal
     de que brilham vazios os espelhos cá dentro
     e de que havia um espaço infinito para ele
     no interior da minha história;
     podia entregar-me inteira a ele
     aos seus pulinhos à luz
     e outras actividades caninas.
     Antigamente era assim, como casinha de recém-casados,
     e a alma,
     no ar meio roído em que se abrigava,
     onde ainda não havia cheiros e choros,
     leve como escama a arrastava o futuro.

     Ontem à noite tornei a perder o barco
     e enquanto os filhinhos dos amigos quietos
     mergulhavam no seu sono azulado,
     enroupava-me uma serenidade semelhante à origem,
     talvez porque só o silêncio
     pode unir a mirra da vida
     com o furúnculo da morte;
     mudo o humano
     vê primeiro uma depois o outro
     a alastrarem na carne.
     E ninguém sabe se é progresso ou imobilidade
     este vazio que como lava espessa
     recobre as culturas do espírito,
     se as obras que se apresentam à memória
     vão a subir ou a descer,
     se é perda ou lucro a dedicação
     e se se roeram os dentes da máquina
     no momento em que íamos para novo voo.

     É tão certa hoje a terra
     com os ramos secos, o pouco verde,
     os torrões de terra que bondosos
     se descansam na terra repartindo a emoção
     equitativamente entre o fim e a origem...
     Mas é fim esta beleza
     que sempre inacessível
     aflora os humanos torturados?
     É fim aquilo que desarticulado se prepara
     nas câmaras escuras do tempo
     e não deflagra em desesperos e pragas,
     mas bate em retirada diante das explosões que se aproximam?
     É fim ou outra origem
     na qual hoje à noite farão círculo
     as caudas dos bichos adormecidos
     em redor do meu sono,
     para que eu passe ligeira
     para a sombra inconsciente
     como se nunca tivesse gritado:
     "Meu amor, perco-me se me deixares agora!"
     como se nunca tivesse tido o corpo sem fim.




     katerina angheláki-rooke
     (grécia, n. 1939)
      (de "belo deserto o corpo")
      tradução de manuel resende




11 julho 2012

raymond carver / felicidade




     De manhã muito cedo está ainda escuro lá fora
     Estou à janela a beber café
     E com aquele ar matinal
     Que passa por pensativo

     Um rapaz e um amigo
     Caminham pela rua fora
     Para entregarem os jornais da manhã

     Usam bonés e camisolas
     E um deles traz uma mochila aos ombros
     Parecem tão felizes
     Embora não digam nada

     Penso que se pudessem teriam dado
     As mãos
     É de manhã cedo
     E caminham juntos

     Vêm aí lentamente
     O céu está a clarear
     Embora uma lua pálida esteja ainda suspensa sobre a água

     Que beleza. Por um minuto
     A morte e ambição, até o amor
     Estão arredados disto

     Felicidade. Ela chega
     Inesperadamente. E passa em frente
     Qualquer dia de manhã muito cedo fala acerca disso




    raymond carver
     (1938-1988)
     tradução de jorge de sousa braga



10 julho 2012

raúl perez / rebelião em diafavlet




     A cidade está numa polvorosa
     Os ratos invadiram-na
     mascarados de Dick Turpin
     Querem degolar o Rei

     A fuga dos sapatos nobres é tal
     que uma longa fila já chega
     a Glendwin
     Por todos os lados se vêem sapatos
     nobres a fugir

     As cinco princesas refugiaram-se
     na torre mais alta do castelo
     acima das nuvens
     levando com elas as máquinas
     de costura e outros pertences

     O Rei já decretou estado-de-sítio
     e ordenou que todos os ratos apanhados
     fossem cosidos uns aos outros

     Transformados em novelos

     e entregues aos tecelões
     para que estes confeccionem
     um novo manto real

     Sua alteza pretende comemorar
     com toda a pompa a derrota
     dos ratos

     Está tão certo da Vitória
     que até já se perfumou e penteou...
     em forma de estrela




     raúl perez
     jardim botânico de lisboa, 1964
      catálogo da exposição “as mãos são a paisagem”



09 julho 2012

abel feu / um lugar na minha alma


  


Agora que não nos vemos
e as nossas vidas correm pelos dias
cada vez mais longínquas,
sinto, às vezes, uma vontade enorme
de te ver uma tarde, tomar café
contigo, saber como vais…

Agora que não nos vemos
e nos perdemos aos dois,
não penses que esqueci as tuas coisas.
Guardo boas lembranças, e poemas
que te escrevi (lembras-te?); guardo
cartas e fotografias…
                                       E um lugar
na minha alma, onde, se quiseres,
sempre, sempre podes estar.






abel feu
poesia espanhola, anos 90
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



08 julho 2012

josé carlos soares / tremendo a boca a tudo





Tremendo a boca a tudo
se prestava. A peste
voava alto

e o secreto
adormecer dos argumentos
deixava já entrar
o verbo olhar.

No canto do jardim
as formigas desmanchavam
o besouro.




josé carlos soares
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012


07 julho 2012

leonardo chioda / azul antigo




consentir azulejos depende de leituras e mais leituras
das entranhas dos mares
das memórias do ar, de alguns
marinheiros

talvez ainda recitar uma canção aos pórticos
beber das fachadas aquáticas.
o magma
o caminho de velas

o encoberto é sempre novo
vida ladrilhada,
mensagem voltada [não ao barco à garrafa]
intocada
é o que chamam de piso estrelado de alma

emula-se a criatura do sal
as algas, aquela certeza de cronologia incerta mas
às vezes jornada

vozes tabuleiros de espuma
vítrea
as medusas
chegando perto do coração netuno

solidifica-se o tom e cimenta
a opera prima no corrimento de uma nação
ao longo das tempestardes.

  


leonardo chioda




06 julho 2012

thom gunn / blackie, o rembrandt eléctrico


  


Espreitamos pela frente da loja enquanto
Blackie desenha estrelas uma igual

concentração nesses rostos,
o seu e o do jovem. A mão

é firme e certa;
mas o rapaz não a vê

pois os seus olhos seguem o ponto
que toca (movimento rápido e escuro!)

um braço ainda puro abaixo
da sua manga arregaçada: sustém a respiração.

… Agora que está terminado, ele
paga com algumas notas a Blackie

e sai com uma ligadura no
braço, sob a qual cintilam dez

estrelas, pendendo de um cacho espesso
e azul. Agora ele é como as estrelas.





thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993


05 julho 2012

diogo vaz pinto / estávamos a esquecer-nos tão depressa…






Estávamos a esquecer-nos tão depressa porque é
que a morte era uma ideia assim
tão triste, quando apagámos um nome
da lista de contactos
no telemóvel e nos tentámos lembrar
de coisas como o som da sua voz, ou de como
gostaria de ser recordado,
aliás, (a palavra certa é outra) esquecido.

Então Abril chega e é só mais um mês,
e a primavera rebenta cada vez mais distante
dos nossos gestos. Não contamos os cabelos,
mas vê-se bem que são cada vez menos
e a juventude, essa foi uma piada que na altura
não entendemos, e agora é já um pouco tarde
para nos começarmos a rir.

A manhã abre um parêntesis enquanto ponho
a cha1eira ao lume, pego num livro
que larguei ali. Aborreço-me
com os temas elevados e o modo inspirado
como trocam impressões as personagens
deste escritor.
Gostava que Deus existisse e nos visse assim,
de pijama na cozinha, remelosos e vazios,
à espera da primeira chávena de café
e de algum twist no enredo dos dias
que vieram até aqui.

De volta ao quarto onde dorme ainda
a cinderela da noite passada,
vou rabiscando umas linhas, uma metáfora
 molengona, a ver se colo duas estrofes
que não se entendem entre elas.
Por motivos óbvios penso na mão
que subiu pela saia da Mona Lisa
e lhe ensinou aquele sorriso.
É necessário ter tacto com coisas destas.

A gata borralheira finalmente acorda.
Falamos durante alguns minutos que
não consigo passar para aqui
e, depois de umas tiradas
dessas que vêm nos manuais, deixei-me des-
contrair, e vindo de uma rápida associação de ideias
fui meter o pé numa piada de mau gosto,
um parque de infância com muitas crianças,
todas tão indesejáveis, e uma recomendação
relativa ao uso de contraceptivos.

Ela demorou algum tempo a organizar-se,
deixou-me um olhar cheio de barcos a afundar
e foi-se, à procura de outra cama e de um príncipe
mais inclinado para finais felizes, ainda que
de curtíssima duração.

Estas coisas acontecem por uma boa razão,
acho eu. Mas o meu timing continua a não ser
dos melhores. Até por aí
me achego mais a versos, nestes cadernos
de exercícios onde marcamos encontros às cegas,
em lugares onde às tantas até é indiferente
se mais a1guém virá ou não.

Em que é que estás a pensar?
Tira uma nota mental, espera, tenta enviar
por telepatia. Ou trauteia uma canção qualquer,
uma fácil e pode ser que me fique no ouvido.
Sabes que dizem que é preciso matar o autor
para que o leitor possa nascer. Anda,
mata-me um pouco mais...
De qualquer modo não tenho já
muito por onde ir. Agora estou para aqui,
com este coração meio-deixa-andar,
lambido por suores frios, entre esperma e cinzas
nestes lençóis, nas gengivas deste fim de manhã,
escrevendo, passeando, como quem assobia
e tem agarrado pela trela algum abismo,
um desses animais que apanham o que atiramos
e vão suportando a nossa companhia.





diogo vaz pinto
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012



04 julho 2012

allen ginsberg / uivo por carl solomon (fragmento)





  I


  Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, esfaimadas
  histéricas despidas,
  arrastando-se através das ruas dos negros ao alvorecer em busca de uma dose
  enfurecida,
  hipsters de cabeça de anjo ardendo pela anciã ligação celestial ao
  dínamo de estrelas na maquinaria da noite,

  que de pobreza esfarrapada e de olhos vazios e mocados se sentaram alto fumando na
  escuridão sobrenatural de apartamentos de água fria flutuando através dos
  topos das cidades contemplando jazz,

  que destaparam os seus cérebros ao Céu debaixo do El e viram anjos Maometanos
  cambaleando nos tectos iluminados das moradas,

  que passaram através das universidades com olhos descontraídos radiantes alucinando
  com a tragédia de Arkansas e a luz de Blake por entre os escolásticos da guerra,

  que foram expulsos das academias por loucura & publicação de odes obscenas na
  janela do crânio,

  que se acobardaram em quartos por barbear em roupa interior, queimando o seu
  dinheiro em cestos de papéis ouvindo o Terror através da parede,

  que foram presos nas suas barbas públicas regressando através de Laredo com
  um saco de marijuana no cinto para Nova Iorque,

  que comeram fogo em hotéis baratos ou beberam terebintina em Paradise Alley,
  morte, ou purgaram os seus torsos noite após noite
  com sonhos, com drogas, com pesadelos ambulantes, álcool e picha e
  tomates sem fim,
  ruas cegas incomparáveis de nuvem estremecendo e relâmpago na mente
  saltando em direcção a postes do Caminho de Ferro de Canada & Paterson, iluminando todo   o mundo imóvel do Tempo entre eles,
  solidificações de paredes de Peiote, árvore verde de quintal traseiro no amanhecer de
  cemitério, embriaguez de vinho sobre os telhados, burgos de montras frontais de passeios ganzados em carros roubados
  no carrossel de néon luz de tráfico cintilante, sol e lua e vibrações de árvore no crepúsculo invernoso rugindo de Brooklyn,
  declarações de cinzeiro e luz da mente de rei generoso,

  que se acorrentaram a carruagens do metropolitano pelo percurso infindo de Battery
  ao Bronx sagrado em benzendrina até que o ruído de rodas e crianças
  os derrubassem estremecendo de bocas escancaradas e aridez desancada de
  cérebro todo drenado de brilho na lúgubre luz do Jardim Zoológico,

  que se afundaram durante toda a noite na luz submarina do restaurante Bickford
  flutuando depois para a saída e sentaram-se fora através da tarde cerveja morta em Fugazzi desolado,
  ouvindo o romper do destino na jukebox de hidrogénio,

  (...)


  

  allen ginsberg