03 junho 2012

heiner müller / coração das trevas segundo joseph conrad




                              Para Gregor Gysi

                 Mundo tenebroso, mundo capitalista
                 ( Gottfried Benn, num diálogo radiofónico
                  com Johannes R. Becher em 1930 )



No Valuta-Bar do Hotel METROPOL
Em Berlim capital da RDA uma puta polaca
Trabalhadora imigrada tenta dar a volta
A um velho às voltas com uma constipação
Entre os capítulos da sua conferência
Sobre a liberdade nos Estados Unidos
Limpa o ranho ao lenço e grita pelo balde do lixo
Ainda abalado com a pena que me faz a sua pesada profissão
Ouço dois homens de negócios em viagem
Pelo sotaque vêm da Baviera
Dividir a Ásia entre si: BOM, A MALÁSIA VINHA MESMO
    A CALHAR
E A TAILÂNDIA TAMBÉM E A COREIA É MAIS UMA
    FATIA DO BOLO
É, E O SISTEMA DE CALHAS EM CRUZ PARA O IÉMEN
AINDA ERA CAPAZ DE O INCLUIR NO PLANO, ASSIM
    A COISA FICAVA COMPOSTA
                                                      E A CHINA TAMBÉM NÃO
    FICA DE FORA
A CHINA FOI O ÚNICO PROJECTO QUE SE VENDEU
Na estação do metro JARDIM ZOOLÓGICO/
    FRIEDRICHSTRASSE
Conheci dois cidadãos da RDA
Um deles conta O meu filho que tem três semanas
Nasceu com um cartaz ao pescoço
ESTIVE NO OCIDENTE NO DIA NOVE DE NOVEMBRO
A minha filha da mesma idade Eu tenho gémeos
Traz no peito EU TAMBÉM
THE HORROR THE HORROR THE HORROR





heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´água
1997



02 junho 2012

manuel antónio pina / aos filhos


  


Já nada nos pertence,
nem a nossa miséria.
O que vos deixaremos
a vós roubaremos.

Toda a vida estivemos
sentados sobre a morte,
sobre a nossa própria morte!
Agora como morreremos?

Estes são tempos de
que não ficará memória,
alguma glória teríamos
fôramos ao menos infames.

Comprámos e não pagámos,
faltámos a encontros:
nem sequer quando errámos
fizemos grande coisa?

1976/1989





manuel antónio pina
um sítio onde pousar a cabeça (1991)
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012

31 maio 2012

jovan hristic / na grande biblioteca





Na grande biblioteca os sábios sentam-se e lêem livros.
Eu sento-me no meio deles, mas não sei porquê.

De tempos a tempos um deles passa pelas brasas
E depois levanta-se para ir beber um café.

Eu deixo-me estar visto que sou o único entre eles que não sabe
Por que lê os livros empilhados à sua frente na secretária.

Lá fora o sol brilha, os esquilos saltitam no relvado
E trepam pelas árvores. Eu sento-me e leio.

Todos temos que fazer alguma coisa. As pessoas passam na rua.
Têm coisas para fazer. Eu leio e leio
visto que não tenho mais nada para fazer, e o tempo passa devagar.



jovan hristic
versão de luís filipe parrado


30 maio 2012

manuel de freitas / pressa de viver

                  


                      [para o Zé, que nunca lerá este poema]



Negro, trinta e dois anos,
dealer. Pensava que a guerra
no Kosovo tinha por motivo único
a resistência à conversão em euros
─ e talvez nisso tivesse, afinal, uma obscura
razão. Noutra noite, vi-me obrigado
a explicar-lhe o melhor que pude
o que era o FMI - que ele decerto
interpretou como um partido de 'tugas
vagamente hermético. De facto, é outra
a sua economia: contos de xamon, pastilhas,
piropos de esquina, os dois ou três filhos
de que apenas bêbedo se lembra.

Mas não é bem disso que eu hoje
queria falar. Passámos a noite
lado a lado, no mesmo balcão.
Demorei algum tempo a cumprimentá-Io
─  «tá-se?». Pediu logo grandes, imensas
desculpas por não me ter visto.
Que era «pressa de viver», garantiu-me,
aquilo que nos torna tão cegos é
às evidências, ao rosto desse próximo
que só por bíblico acaso amamos
─  quando o ódio, mais discreto,
dá nome e sentido às ruas.

Fingi acreditar, procurei não
desmentir o seu olhar verde
vindo de outro qualquer planeta.
Seria difícil explicar-lhe àquela hora
a compulsiva demora de morrer
que me faz sair de casa e procurar,
entre ninguém, a pior das companhias: eu.

Acabou por levar para a rua
uma imperial de plástico, lembrado
talvez dos possíveis clientes
a quem ajudará a esquecer um emprego,
o desamor, o calor sinistro deste Verão.
Na verdade, pouco mais haveria
a dizer sobre este corpo brando que
há vários anos se encosta às minhas noites.
Serve-me de escudo para os bárbaros mais novos
─  e protege-se, o melhor que pode,
da rusga sem objecto a que chamamos vida.





manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002


29 maio 2012

luís miguel nava / ao acordar






Ainda mal tinha acordado, veio-lhe à memória
de súbito o rapaz que era costume
pagar na leitaria um copo a todos os amigos.

O dinheiro acendia-se-lhe
nas mãos antes de o pôr sobre o balcão.



  

luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002





28 maio 2012

gil t. sousa / as três comadres




(sobre um quadro da alice loureiro)



2

no fim dum caminho antigo,
por entre as pedras e o céu,
há vozes que anunciam um outro tempo.


um tempo escondido no segredo das mentes,
como as almas se escondem
nas pedras das cidades que pecaram.

é a maldade simples da terra,
a intriga das ervas,
a sentença do que vive.

não há aqui eternidade,
nem morte,
e só os olhos levam o que lá diz;
em molhos de cor a lembrar cereais maduros,

mel guardado como um tesouro
para um amanhã esperado.
tudo acaba ali,

no precipício que divide o real
e anuncia o infinito com uma força nua de sinais.
e é nesse acabar

que uma outra realidade ganha forma,
tranquila como as coisas eternas,
enigmática como as coisas que, não sendo vivas,

obedecem a um outro sangue,
a um pulsar de que nunca saberemos o nome....




gil t. sousa
água forte
2005

27 maio 2012

amélia pinto pais (1943-2012)




Morreu um dos nossos, verdadeiramente alguém do mundo da poesia.

Adeus Amélia

giacomo leopardi / o infinito






Sempre cara me foi esta erma altura
Com esta sebe que por tanta parte
Do último horizonte a visão exclui.
Sentado aqui, e olhando, intermináveis
Espaços para além, e sobre-humanos
Silêncios, e profunda quietude,
Eu no pensar evoco; onde por pouco
O coração não treme. E como o vento
Ouço gemer nas ervas, eu àquele
Infinito silêncio esta voz
Vou comparando: e sobrevem-me o eterno,
E as idades já mortas, e a presente
E viva, e seu ruído... Assim, por esta
Imensidade a minha ideia desce:
E o naufragar me é doce neste mar.




giacomo leopardi
poesia de 26 séculos
2º volume / de bashô a nietzsche
trad. jorge de sena
editorial inova
1972


26 maio 2012

camilo pessanha / água morrente


  


Meus olhos apagados,
Vede a água cair.
Das beiras dos telhados,
Cair, sempre cair.

Das beiras dos telhados,
Cair, quase morrer...
Meus olhos apagados,
E cansados de ver.

Meus olhos, afogai-vos
Na vã tristeza ambiente.
Caí e derramai-vos
Como a água morrente.



camilo pessanha
clepsidra



25 maio 2012

jonathan griffin / o credo agnóstico





Meu timbre a dúvida. Acredito
no credo agnóstico - duvidar até estar morto
e contudo viver para acolher
não fugir ao dar-se do acto da fé,
não fugir a desconfiar dele, até que a morte
aqui está, alisou a fé e a dúvida.




jonathan griffin



24 maio 2012

gabriel celaya / biografia





Não pegues na colher com a mão esquerda.
Não ponhas os cotovelos na mesa.
Dobra bem o guardanapo.
Isso, para começar.

Extraia a raiz quadrada de três mil trezentos e treze.
Onde fica o Tanganica? Em que ano nasceu Cervantes?
Dou-lhe um zero em comportamento se falar com o seu colega.
Isso, para continuar.

Parece-lhe decente que um engenheiro faça versos?
A cultura é um enfeite e o negócio é o negócio.
Se continuas com essa moça fechamos-te a porta.
Isso, para viver.

Não sejas tão louco. Sê educado. Sê correcto.
Não bebas. Não fumes. Não tussas. Não respires.
Aí, sim, não respirar! Dar o não a todos os nãos.
E descansar: morrer.





gabriel celaya
espanha (1911-1991)


23 maio 2012

felipe benitez reyes / a idade de ouro






O que o tempo leve
que seja tanto
quanto o tempo nos deu,
prenda imerecida,
deixando a memória na inocência
da vida gasta, porque nada
fere mais e mais fundo que a lembrança:
enquanto subsista uma noite na memória,
essa noite é a Noite
e essa intensa memória a Memória.

Leve o tempo tudo
o que queira levar,
porque tudo foi seu desde sempre.

Que o tempo desvaneça
o ouro delinquente do amor
e a imagem hermética daquilo
que chamavas passado
- e era apenas
ontem: a fugitiva idade
de não ter idade para o passado.

Idade de Baudelaire e de raparigas
que adquiriam noções da vida
nas últimas filas dos cinemas
e nesses velhos cinemas do pós-guerra
convertidos em lugares para dançar que fechavam
quando o céu queria amanhecer,
amanheceres de domingo,
voltando para casa com
um copo ainda na mão
e tabaco de outros no bolso,
a essa hora em que abriam os cafés
e as senhoras de caridade montavam mesas
com cartazes de meninos moribundos.

E era a morta luz que amanhecia
a metáfora gelada e a ilusão exacta de estar queimando
as naves da eterna juventude.

Mas no seu carro fúnebre
O tempo ia admitindo passageiros.

E as naves queimadas são cinza
e muito pouco de eterno
teve a minha juventude.

Mal arraste tudo, o tempo
que leve na sua vertigem a memória,
deixando
um vazio perfeito no passado.

Porque toda a recordação
acaba corrompendo-se no presente
e este presente já
de pouco vai servir-nos.

De pouco vai servir-nos
saber que houve um tempo em que a vida
valia o seu peso em ouro.

Porque a vida monta
a sua casa no passado.

E esta casa sombria não parece a nossa.





felipe benitez reyes
espanha




22 maio 2012

fernanda de castro / a ilha da grande solidão (excerto)






(Violetas...
Alguém mandou-me violetas,
e as longas horas de Outono,
de roxas, ficaram pretas...)

Assim, de olhos fechados,
ainda vejo, no tanque, os peixes encarnados,
ainda sinto o perfume dos lilases,
ainda ouço os rapazes:
(e tu, Jardim, também os ouves?)
— «P’ra que servem as flores? Plantem couves».
Mas não plantei,
amei
cada pequena flor
e nenhuma secou,
nem o tempo as murchou,
nem a Dor..

Pequena flor…
Petite fleur.
A trompette do Sidney Bechet
dilacera-me ouvidos
e sentidos.
Magoa-me a estridência
da música obcecante.
Enerva-me a violência
dos sons,
dos desejos incontidos.
Dói-me a culpa,
a inocência
de uns braços estendidos.



fernanda de castro
poezz
almedina
2004