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Rossio. Rossio mil e um, mil e dois, mil e três...
Rossio multímoda da Lisboa-viela.
Lisboa aquecida. Lisboa despida.
Lisboa-viagem numa caravela.
Barcos de papel à tona d’água.
Cestos de papel à vista, flor.
Papel nos bolsos, papel nas arcas.
Papéis-meninas a vender amor.
Polícia artefacto (vendedor vem comigo).
Relógio partido (parado ou não).
Rodelas de ginja encantada e um vidro
(Estão todos bebidos, caídos, perdidos,
irmão).
Gravatas sem vida (baratas, presentes).
Marinheiro por detrás (redondo, redondo).
Magalas com sorte, magalas doentes.
Galegos despidos na frente do mundo.
Rossio. Proibido parar, proibido avançar.
Proibido fugir, proibido fumar.
Proibido sorrir proibido olhar.
Proibido cantar,
proibido
cantar.
*
Sou pobre. Medito em tudo a meu modo,
Medito em porto (tecido, conteúdo).
Medito em seios (sabor e olfacto).
Medito em tudo.
Há europas desnudas espalhadas por coxas.
Há repúblicas doridas a pernoitar.
Há montanhas já fartas dos prazeres iníquos.
Há rios imaginários do amor do universo.
Geográfica e nossa é a condição de pobres.
Sobretudo em Rossio, Rossio mil e três.
Com sorrisos nos lábios e
letreiros às costas,
cantando alegremente:
Estamos nus e gramamos.
Total a iniquidade de que estamos seguros.
Total a recompensa de mijo e areia.
Total o que somos, total o que fomos.
Total de pensarmos silêncio e candeia.
Total de mistela e de vão sacramento.
Total de miséria que um verme constrói.
Totais Descobertas... Eles lá o sabiam
explicar, se pudessem, como isso foi.
Rossio, meu amigo,
meu doidamente doido pelo chão.
Cais de Sodré vem comigo
Decifrar-me a canção:
Mil e dois, mil e três.
Mil e dois, mil e três.
… … …
A fome é uma mistura de carne
(pedras negras, .pedras brancas).
Desenhos? O tempo os desfaz.
Pombal restaurou. Pombal afinou.
Só não acabou o medo deste século.
Lisboa — a grande nau que não havia
no pensarmos sermos o que somos:
uma onda e outra sobre a outra onda,
feitas, de mil olhos, serpentinas.
Lisboa ou claro Tejo da ilusão.
(Funileiro à porta ou estar sentado.)
Somos o que somos: podres e serenos
na serena paz de fracassados.
Se os sinos da tua aldeia — Largo
de S. Carlos — falassem outra vez,
como diriam hoje agora:
Rossio mil e três?
Serrano e impossível.
Severo e impotente.
Cansado, impassível
grão podre
doente.
*
Envelope aceso para enviar notícias,
novas muito antigas deste tempo.
Capitão viaja. Comandante à âncora.
Viva a morte, a noite e o desespero.
São estas as cordas de um cartaz turístico.
São estas as luzes dum assassinado.
Estrangeiro acena. E canta e grita:
Pobre noite, camarada.
… … …
Temos de coabitar.
O sonho dilata-se no sonho.
Ficaremos pobres como dantes?
Ficaremos cegos?
Estrangulem-me se quiserem.
joão rui de sousa
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2002