19 janeiro 2012

josé carlos barros / do que a vida poderia ter sido






Os amigos juntam-se e falam do passado,
da música que já não se ouve na rádio,
do inverno em que choveu semanas a fio
e o rio saiu das margens para desenhar

nos troncos das árvores os círculos imperfeitos
da idade. Eles sabem para si mesmos que falam
do que nunca existiu: das mulheres
que se renderam para sempre às palavras do amor,

das perdizes caindo de asa nas encostas
iluminadas da urze, das corridas memoráveis
do vinte e cinco de Abril, das tardes de domingo
que haveriam de envergonhar a uefa

se a televisão estivesse presente nas finais dos torneios
dos bombeiros voluntários. É disso que os amigos
falam: do que a vida poderia ter sido
se não fosse a filha da puta de vida que foi.




josé carlos barros
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010




18 janeiro 2012

angela figuera aymerich / s. poeta lavrador





Eu  era poeta lavrador.
Meu campo era amarelo e áspero.
Todos os dias eu suava,
para o abrandar, suor e lágrimas.
Atrás dos bois, lentos e firmes,
andava a reiha do meu arado.
Meus sulcos eram largos, fundos.
(Meus versos eram fundos, largos.)
Eu semeava pelo Outono,
ano atrás de ano, sem desânimo.
Por cada mão cheia de grão
ia um punhado de beleza
e um poucochinho  de verdade
(sob a indiferença de meu amo).
Ano atrás de ano eu ceifava
sob o ardente sol do Verão:
de fome e dor era tal ceifa;
de fome, dor e desengano.
No São Poeta Lavrador
aos meados do mês de Maio,
quando no altar da catedral
ardem as velas do milagre
ajoelhei-me sobre a pedra
antes do galo madrugar
e estive assim, reza que reza,
a  fronte humilde, em cruz os braços.
A Deus o Pai, a Deus o Filho
e a Deus — Espírito Santo,
com toda a urgência lhes pedi
que no prestassem um auxílio.
Pedi por mim e pelos bons,
pelos que dizem que são maus,
pelos surdos com bom ouvido
e pelos cegos de olhos vivos.
Pelos soldadinhos de chumbo
e pelo chumbo idos soldados.
Pelos de estômago vazio
e pelos curados do espanto.
Pelos meninos de cu ao léu
e as meninas de olhos pasmados.
Pelas mães  com os peitos secos
e pelos avós que se emborracham.
Pelos caídos sobre a neve,
pelos queimados pelo Verão,
pelos que dormem na cadeia
e os que giram ao desamparo,
pelos que ‘gritam contra o vento,
pelos que se calam assustados,
pelos que têm sede e  esperam
e pelos que estão desesperançados.
Ardentemente, largas horas,
estive assim, pedindo, orando.
Com os joelhos esfolados,
Gosto a incenso nos meus lábios,
eu, S. Poeta Lavrador,
quando já o sol andava alto,
saí em nome de Deus Pai,
do Filho e do Espírito Santo,
com os olhos cheios de esperança,
saí ao encontro do milagre:
(Anjos entregues à tarefa,
na minha terra arando, arando.
Sob a sombra das suas asas,
altas espigas, loiro grão...
Pão de justiça para todos.
Amor e paz desenterrados.)

Olhei! Olhei! Os anjos não estavam.
Os bois imóveis, solitário o campo.

Deixei secar o sangue dos joelhos.
Olhei de frente e empunhei o arado.






angela figuera aymerich
poesia espanhola do após-guerra
selecção e tradução de egito gonçalves
portugália
1962




17 janeiro 2012

luís miguel nava / um prego




Cravava cuidadosamente um prego na parede, quando pressentiu que, como água dum cano que se rompesse, o futuro poderia jorrar de súbito na cal, uma substância na aparência cristalina mas em cujo seio as formas do presente se diluiriam todas, como se, com os seus contornos, igualmente se perdesse o seu sentido, e um sol se deslocasse, por pouco que fosse, do presente para o futuro, se esvaziasse então no céu, deixando atrás de si uma cicatriz imensa.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
vulcão
publicações dom quixote
2002


16 janeiro 2012

albano martins / o nome da ausência




O sótão: era ali
que o mundo começava. Ainda
não sabias, então,
quantas letras te seriam
necessárias para soletrar
o alfabeto dos dias, para encher
a tua caixa
de música, a tua concha
de areia. E ainda
o não sabes hoje. Com cinza
nada se escreve a não ser
as vogais do silêncio. E este
é o nome que se dá à ausência,
quando a noite e a poeira
dos astros pousam
sobre a ranhura dos olhos.





albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999




15 janeiro 2012

alberto pimenta / o desencantador



 (…)

eu
a minha história
começou há milhares de anos
e continua é claro
está agora a passar-se
como a tua
e vai continuar a passar-se
durante não sei quantos anos mais

transformar homens em animais
ou em escravos que é o mesmo
eu conheço isso melhor que ninguém
o tempo é uma burla
inventada pelos deuses
que tanto fazem de Lucius um burro
dizem eles aos poetas
como também depois dizem e mentem
“trabalha para o futuro” quer dizer
trabalha sempre para eles

e como perguntas
se é o silêncio
que nos permite existir
olha que é verdade
nunca houve um acto limpo
na história
eu sofri por isso
e dito isto
pôs  a máscara de burro
vês o que é um escravo
disse ele

Lucius disse eu
tu és Lucius

(…)


  

alberto pimenta
o desencantador
7 nós
2011


14 janeiro 2012

natália correia / queixa das almas jovens censuradas





Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.

Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.

Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.

Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.

Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.

Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.

Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.

Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.

Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.

Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.






natália correia
poesia completa
publicações dom quixote
1999




13 janeiro 2012

cedric elliot morrison / três poemas





1.

E assim chego
- colete, calça e paletó.

E sento-me, feliz da vida
na esplanada quase deserta.

Espero os ventos do sul
os musgos do norte
o sol de um pouco à esquerda do sudeste.

Talvez relinche como uma estrela fogosa
talvez chame o criado e fique mudo.

Talvez, quem sabe, me espante um bom bocado
chapéu de feltro cinzento na cabeça
dócil e omnipresente.

Que pergunta, interrogo-me perplexo
fiz a mim mesmo há pedacinho?



2.

As árvores
Não as que vi em criança
umas de roda do luar espelhado
no pequeno tanque
outras em dia de mortos
aparecendo desaparecendo
como presenças incertas
Não as árvores de repente ternas
como sementes
remotas como pedras

Mas as que gravitam em torno de nós
aflitas

silenciosas como um pensamento.



3.

Nas arribas de Cape Cod
aí pela manhã
um tipo pensativo põe-se a recordar
os tempos dilectos da juventude
quando trabalhava com o velho Miles
o carpinteiro tisnado de camisas de algodão
E ambos galhofavam serenamente
um em frente do outro, de pés em cima da mesa

na sala traseira da vetusta lojeca
atestada de móveis como dantes se faziam
perto do farol do arquipélago de Shoals.

"Quando o vento acalmava, rapariga
a morte e a doença à porta não chegavam
à porta não chegavam, digo-te eu
minha garota, minha garota bela!"

Miles, rei das cadeiras e das mesas
o das camisas baratas de algodão

Colete, calça e paletó
e às vezes uma rosa na mão direita
- mas não como se fosse um troféu.

E tudo sem palavras, sem um gesto
sem sequer uma canção que vem de longe

que vem de muito longe e ressoa.





cedric elliot morrison
(e.u.a., 1961)
tradução de nicolau saião.





12 janeiro 2012

samuel beckett / o calmante




Não sei quando morri. Sempre me pareceu que morri velho, por volta dos noventa anos, e que anos, e que o meu corpo o comprovava, da cabeça aos pés. No entanto, neste final de tarde, sozinho na minha cama gelada, sinto que vou ser mais velho do que o dia, do que a noite em que o céu caiu com todas as suas luzes sobre mim, o mesmo céu que tantas vezes olhei, desde que vagueava pela terra longínqua. Porque hoje tenho medo demais para me ouvir apodrecer, para esperar pelos grandes e violentos baques do coração, pelas contorções do ceco sem saída e para esperar que se cumpram na minha cabeça os longos assassínios, o assalto aos pilares inquebrantáveis, o amor com os cadáveres. Vou portanto contar a mim mesmo uma história, vou portanto tentar contar mais uma vez a mim mesmo uma história, para tentar acalmar-me, e é nessa história que sinto que serei velho, muito velho, ainda mais velho do que no dia em que caí, clamando por socorro, e o socorro chegou. Ou talvez nessa história eu tenha regressado à terra, depois de morrer. Não, não é o meu género, regressar à terra, depois de morrer.
(…)




samuel beckett
novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006

   


11 janeiro 2012

matija beckovic / dois mundos





A todo o momento esse dia está a chegar:
Enviaremos petições a todos os guardas prisionais

Pedindo-lhes que nos salvem de medo liberdade inverno
E nos permitam cumprir a nossa pena.

Quando finalmente nos puserem as algemas
Que o mundo perca o seu equilíbrio vergonhoso.

Entre as duas metades que formam o mundo,
Que a dos condenados possa tornar-se a maior

E os guardas, com vergonha e medo,
Uma noite destas, peçam para ficar connosco.







matija beckovic
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001





10 janeiro 2012

luís filipe castro mendes / memento mori




                                                            Death is not in life
                                                            (Wittgenstein)




Eu vi morrer  três pessoas
a uma acompanhei até ao fim,
no que seria talvez o que lhe restava de vida
ou porventura o que lhe sobrava de morrer;
outra morreu quando eu dormia,
longe do hospital:
e tive que atravessar pela madrugada
uma cidade estrangeira
para chegar à sua morte;
e meu Pai, enquanto eu ia
comprar-lhe uma garrafa de oxigénio,
que nunca soube a quem serviu depois.

Nós nunca vemos ninguém morrer,
porque morrer é por dentro de cada um,
como talvez tudo o que tenha algum sentido,
como talvez amor.

O que verdadeiramente importa
é opaco ao nosso olhar
e cada prova que vivemos
é só e única:
morrer ou ver morrer

e o amor também.





luís filipe castro mendes
relâmpago
revista de poesia
nr. 27 outubro
2010




09 janeiro 2012

gil t. sousa / história de amor




44

é sempre
uma história de amor:

a árvore
que se afeiçoa ao pássaro

o sol
que se liga à água

os olhos
que se prendem ao mar




gil t. sousa
falso lugar
2004





07 janeiro 2012

m. campos / o poeta




Castrava-o antes de o deixar sair.
Uns milímetros por dia, quando acordava a tempo.
A lima das unhas, a faca dos frangos,
a lâmina de se rapar por baixo,
qualquer coisa servia.
Ele não protestava, ainda era apenas uma questão de fé:
com o tempo talvez chegasse a ser pago.




m. campos

06 janeiro 2012

adolfo casais monteiro / a palavra impossível





Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.

Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce -
A Palavra que nunca se profere.





adolfo casais monteiro
noite aberta aos quatro ventos
inquérito
1959.