03 maio 2009

josé miguel silva / os melhores anos da minha vida






Os melhores anos da minha vida
passaram comigo ausente, passaram
numa corrente subterrânea.
Não me apercebi de nada, distraído
com a queda das folhas,
a densa mistura de pão e desordem.

Estava tudo em aberto, mas eu não sabia
senão de pequenas querelas,
e tímidos passos à toa, sempre à espera
de não ter futuro. Sentado, como um pobre,
sobre o poço de petróleo,
eu media com tesouras as semanas,
misturava-me com livros, ansiava
pelo dia em que deixasse de sangrar.

Os melhores anos da minha vida troquei-os
por isto.






josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d'água
2003.






28 abril 2009

ingeborg bachmann / uma espécie de perda









Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma
cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um aponta-
mento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.








ingeborg bachmann
o tempo aprazado
(últimos poemas 1957-1967)
trad. judite berkemeier e joão barrento
assírio & alvim
1992




24 abril 2009

celso emílio ferreiro / o profeta







pouco antes de morrer
disse ele ao povo:
deus te dê ira,
que paciência tens de mais.







celso emilio ferreiro
galiza, 1914-1979






22 abril 2009

gil t. sousa / a tempestade, giorgione




4/


não é o mesmo sem a sombra do teu ombro, nem o vaporetto lá fora me há-de transportar aos mesmos lugares. esperam-me luzes, silêncios e trovões. decifrei-o, enfim. nunca farás parte desse mistério nem da sua revelação.





gil t. sousa
falso lugar
2004


20 abril 2009

samuel beckett / queria que o meu amor morresse







queria que o meu amor morresse
e a chuva chovesse sobre o cemitério
e sobre mim pelas ruas onde eu andar
chorando aquela que julgou amar-me









samuel beckett
trad. miguel esteves cardoso
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990







18 abril 2009

sylvia plath / espelho








Sou prata e exacta. Não tenho ideias preconcebidas.
Tudo o que vejo aceito sem reservas
Tal como é, inturvado por aversão ou amor.
Não sou cruel, apenas verdadeira -
O olho de um pequeno deus, de quatro cantos.
A maior parte do tempo medito sobre a parede oposta.
É cor-de-rosa com manchas. Tenho-a olhado tanto
Que julgo ser parte do meu coração. Mas vacila.
Rostos e trevas separam-nos vezes sem conta.

Agora sou um lago. Uma mulher curva-se sobre mim,
Sondando o meu âmbito em busca do que ela é realmente.
Vira-se depois para as velas ou a lua, esses mentirosos.
Vejo-lhe as costas e reflicto-as fielmente.
Ela recompensa-me com lágrimas e um agitar de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
Todas as manhãs é o seu rosto que substitui as trevas.
Em mim ela afogou uma jovem e em mim uma velha
Ergue-se para ela dia após dia como um terrível peixe.







sylvia plath
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993






14 abril 2009

álvaro de campos / nunca conheci quem tivesse levado porrada






Nunca conheci quem tivesse levado porrada
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irresponsavelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infama da vileza.






álvaro de campos
poemas
“sê plural como o universo…”
fernando pessoa , antologia

ambar
2008







10 abril 2009

robert musil /sistemas de ilusão







(…) Com uma arte grandiosa e diversa, geramos uma ilusão que nos ajuda a viver paredes meias com as coisas mais monstruosas sem perder a tranquilidade, porque reconhecemos nesses esgares petrificados do universo uma mesa ou uma cadeira, um grito ou um braço estendido, uma velocidade ou um frango assado. Entre um abismo celeste aberto sobre as nossas cabeças e um abismo celeste camuflado sob os nossos pés, somos capazes de nos sentir tão tranquilos à superfície da Terra como num quarto fechado. Sabemos que a vida se perde tanto nas desumanas vastidões do espaço como na desumana estreiteza do mundo dos átomos, mas entre as duas coisas tratamos uma série de configurações como coisas do mundo, sem nos deixarmos minimamente perturbar pela evidência de que isso significa tão-somente uma preferência pelas impressões que captamos a partir de uma certa distância média. Tal comportamento está bastante abaixo das possibilidades do nosso entendimento, mas prova precisamente que os sentimentos desempenham aí um papel decisivo. E com efeito, os mais importantes dispositivos intelectuais da humanidade servem a experiência de um estado de espírito estável, e todos os sentimentos, todas as paixões do mundo são nada frente ao esforço enorme, mas totalmente inconsciente, que a humanidade faz para manter essa sua serena tranquilidade! Quase não vale a pena falar disso, de tal modo o seu funcionamento é impecável. Mas, se virmos mais de perto, é extremamente artificial o estado de consciência que confere ao homem o porte íntegro no meio do sistema dos astros e lhe permite, face ao quase infinito desconhecimento do mundo, meter dignamente a mão entre o segundo e o terceiro botão do casaco. E, para conseguir isso, todo o ser humano, o sábio tal como o idiota, não recorre apenas aos seus artifícios; estes sistemas pessoais de artifícios são também engenhosamente inseridos nos dispositivos de equilíbrio morais e intelectuais da sociedade e da totalidade que, a uma escala maior, servem os mesmos fins. (…)










robert musil
o homem sem qualidades vol. I
tradução de joão barrento
dom quixote
2008

06 abril 2009

maria gabriela llansol / o começo de um livro é precioso






294

Eu estava habituada a vir para casa com um velho amigo
Que me punha a mão nos ombros. Eu raramente tropeçava
Porque dele irradiava o calor das macieiras e a paz das
Tílias. Era a árvore dos meus passos. E, regressando a casa,
Regressava à Paisagem que humana me fazia.






maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003





01 abril 2009

wystan hugh auden / o cidadão desconhecido




(A JS/07/M/378 o Estado ergueu este Monumento de Mármore)




Segundo apurou o Instituto de Estatística,
Contra ele nunca existiu qualquer queixa oficial,
E todos os relatórios sobre a sua conduta confirmaram:
No moderno sentido de uma palavra velha, ele era um santo,
Pois em tudo o que fez serviu a Grande Comunidade.
Com excepção da Guerra e até ao dia da reforma,
Trabalhou numa fábrica e nunca foi despedido;sempre satisfez os seus patrões, Máquinas Fraude, Ltda.
Mas não era fura-greves nem tinha opiniões estranhas,
Pois o Sindicato informa que sempre pagou as quotas
(E o seu Sindicato tem a nossa confiança),
E o nosso pessoal de Psicologia Social descobriu
Que ele era popular entre os colegas e gostava de um copo.
A Imprensa não duvida de que comprava um jornal por dia
E que as reacções à publicidade eram cem por cento normais.
Apólices tiradas em seu nome provam que tinha todos os seguros,
Eo Boletim de Saúde mostra que esteve uma vez no hospital e saiu curado.
Tanto o Gabinete de Estudos dos Produtores como o da Qualidade de Vida declaram
Que estava plenamente sensibilizado para as vantagens da Compra a Prestações
E tinha tudo o que é preciso ao Homem Moderno:
Um gira-discos, um rádio, um carro e um frigorífico.
Os nossos inquiridores da Opinião Pública alegraram-se
Por ter as opiniões certas para a época do ano;
Quando havia paz, era pela paz, quando havia guerra, ele ia,
Era casado e aumentou com cinco filhos a população,
O que, diz o nosso Eugenista, era o número certo para um pai da sua geração,
E os nossos professores informam que nunca interferiu com a sua educação.
Era livre? Era feliz? A pergunta é absurda:
Se algo estivesse errado, com certeza teríamos sabido.






wystan hugh auden
leituras, poemas do inglês
tradução de joão ferreira duarte
relógio d´água
1993




24 março 2009

luís miguel nava / os olhos






Sempre que sobre mim poisava os olhos, o olhar dele era o de quem os volta para dentro de si próprio, como se nesse espaço me quisesse aprisionar ou dele, sem que eu sequer o suspeitasse, há muito me tivesse feito residente. Raro era, porém, surgirem sob as pálpebras, no rosto, onde seria de esperar vermo-los, esses olhos. Não o faziam senão quando, como depois veio a ser sabido, até aí com ímpeto os alçava o seu mar interior nas suas cristas.






luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




22 março 2009

gil t. sousa / tudo se pode esconder nos olhos...

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3/

tudo se pode esconder nos olhos mais nus. esta descoberta transforma-te e transforma o mundo em que te moves.







gil t. sousa
falso lugar
2004
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20 março 2009

hans-ulrich treichel / esforço







O suor corre
em bica como se eu
cortasse troncos de árvore
e afinal eu só escrevo
um pequeno poema
muito frio







hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994