22 dezembro 2006

book zapping #007 história da vida privada



As festas anuais


O ano é marcado, por um lado, pela vilegiatura de Verão, e por outro pelas festas da Igreja. A vilegiatura aristocrática generaliza-se na classe burguesa como férias de Verão. Assiste-se ao nascimento da ideologia do repouso e do lazer e a vida escolar vai ter que se adaptar a ela, prolongando as férias.
Seja-se ou não crente, vá-se ou não à igreja, é do calendário cristão que se depende. O ano desenrola-se segundo as festas litúrgicas, do Natal ao Dia de Todos-os-Santos, do nascimento de Cristo ao dos fiéis defuntos. Estas festas litúrgicas, que são passagens obrigatórias do ano, tomam-se mais ou menos ocasião para as festas familiares. A forma mantém-se a mesma, mas ganha outro sentido. O Natal, por exemplo, será dissociado do nascimento de Jesus em Belém, para se tornar cada vez mais a festa das crianças. Assim, a família investe nas festas cristãs para se auto-celebrar.





Pinheiro de Natal

O pinheiro de Natal vem dos países escandinavos. Os suecos trouxeram-no durante a guerra dos Trinta Anos (primeira metade do século XVII) para a Alemanha, onde só se popularizou no início do século XIX. Ainda em 1795, Goethe, que se encontra em Leipzig em casa de um amigo, se espanta por ver na casa uma árvore de Natal (no entanto, o hábito de montar nas casas um pinheiro de Natal é atestado pelos usos da cidade de Estrasburgo em 1605...).
Em 1840 o costume alemão é introduzido simultaneamente em Inglaterra e em França. Em Inglaterra pelo príncipe Alberto, marido da rainha Vitória. Em Paris pela princesa Helena de Mecklemburgo, duquesa de Orleães, e por famílias protestantes da Alsácia e da Alemanha. Sob o Segundo Império, favorecida pela imperatriz Eugénia, a tradição do pinheiro de Natal instala-se. Os alsacianos e lorenos que emigram após a derrota de 1870 contribuem para a difundir. Para Littré e Larousse, a «Árvore de Natal» não passa de um «grande ramo» de pinheiro ou de azevinho, enfeitado e guarnecido com rebuçados e brinquedos destinados às crianças.
No final do século o costume parece ter sido realmente «nacionalizado»: todos os anos se mandam aos missionários da Gronelândia, assim como aos colonos de África, árvores de Natal completamente enfeitadas! Nas famílias são quase iguais às que conhecemos.





O presépio

Em 1863 Littré não fala de presépio, nem nas igrejas nem nas casas. Larousse, alguns anos mais tarde, só nas igrejas os menciona, vivos e falantes, e isto para criticar longamente os presépios provençais. São irreverentes, diz ele, já que misturam sagrado e profano e fazem rir os fiéis. Apesar disso há um progresso: o anjo tenta falar em francês e já não em dialecto. É altura de acabar com as velhas tradições...
No entanto, os presépios instalados nas casas católicas durante o Natal deviam ser numerosos, a acreditar em Monsenhor Chabot, em 1906. Vendem-se efectivamente mais de trinta mil por ano, preços entre 20 e 3.000 francos. O presépio comporta sete ou oito personagens de base.
Os presépios marselheses, com os seus santões de argila de origem italiana, têm direito a um desenvolvimento particular. Isto porquanto, além das personagens sagradas tradicionais, lhes juntam personagens profanas, como o amolador, o tamborileiro, o moleiro, o aprendiz de padeiro, etc.. A modernidade introduz-se neles sob a forma de casas de quatro ou cinco andares, que se iluminam à noite com uma vela, e de locomotivas a vapor...





O exemplo alemão

Antes de o pinheiro de Natal ter sido importado para França, corria um discurso sobre este costume alemão. Fala-se, curiosamente, com um tom de pena, como se o pinheiro tivesse sido uma tradição francesa caída em desuso. La Gazette des ménages lamenta, a 23 de Dezembro de 1830, que em França, e sobretudo em Paris, «a geração actual conserve pouco apego pelos velhos usos», ao contrário da Alemanha, modelo das tradições domésticas.
Em Dezembro de 1849 Le Journal des jeunes filies evoca os costumes alemães com a mesma emoção, lamentando que os franceses não saibam explorar a atmosfera mágica: na Alemanha as consoadas «descem do céu», trazidas pelo Menino Jesus ou pelo «Cristo Filho». A França deveria seguir o modelo alemão e fazer das festas de fim de ano a oportunidade de reunir as gerações à volta do lar especialmente em casa dos avós.
Os discursos de 1830 e 1849 são idênticos. A propósito das festas do final do ano glorificam a vida privada. Logo a seguir a duas revoluções, opõe-se a instabilidade da coisa pública à estabilidade da vida familiar: «As alegrias da família, conclui o jornalista em 1849, são o único lugar e a única felicidade que as revoluções não poderão nunca roubar-nos».





A tranquilidade das festas em família

Em 1866 Gustave Droz consagra um capítulo de Monsieur, Madame et Bébé ao Dia de Ano Novo em família. Nessa manhã são sete horas quando Bébé arranha a porta dos pais para lhes desejar «bom ano». O pai chama-o para o leito conjugal, a criada vem acender
o fogo, e nesta doce atmosfera chega o momento das prendas. E Gustave Droz reivindica, glorifica esta felicidade conjugal como o que há de mais precioso. Todo o dia é marcado por encantadores quadros de família.

O primeiro dia do ano é assim um concentrado de todos os prazeres familiares, onde a família se retempera antes de começar o novo ano. Em 1866 não há já necessidade de utilizar a referência alemã. Droz faz a sua descrição como uma situação de facto. Há que pensar que quanto mais se avança no século XIX mais a certeza de que o lar traz uma felicidade preciosa e insubstituível se encontra ancorada nos espíritos. As crianças tomam-se os actores principais da festa.


Réveillon e consoada

O Réveilion é «uma refeição extraordinária que se faz a meio da noite. Particularmente a que se faz na noite de Natal» (Littré, 1869). O verbo réveillonner não existe. Da noite de São Silvestre não se fala. Não encontrei alusão alguma a festas ou refeições familiares na noite de 31 de Dezembro. Flaubert, na sua Correspondance, lembra--se de ter esperado uma vez a meia-noite a fumar, e uma outra a pensar na China.
Nas famílias católicas vai-se à missa da meia-noite, e no regresso ceia-se. Como é hábito dispensar os criados na noite de Natal, a refeição é reduzida. Comporta dois pratos tradicionais, a sopa-creme com baunilha, comida com filhós, e a morcela grelhada, e pratos trios, como peru trufado ou, para a sobremesa, confeitos e pastéis com açúcar cristalizado.



Para o Natal fabricavam-se bolos de todos os géneros, conforme as províncias, filhós, bolachas, tortas, mas não há vestígios do tronco de Natal que conhecemos. No século XIX, o tronco de Natal não passa de um grande pedaço de lenha que se põe no fogo na noite de 24 de Dezembro, para que se mantenha aceso toda a noite, vestígio de uma velha tradição do campo, onde se ficava acordado toda a noite de Natal para se assistir à missa da aurora.
De origem católica, o réveilion generaliza-se como festa profana na segunda metade do século, de tal forma que em 1908 os Usages du siécle podem afirmar: «Toda a gente festeja o réveilion». Os crentes festejam após a missa da meia-noite, os profanos, esses habituaram-se a ir ao teatro e a festejar em seguida. Já não há necessidade de um pretexto religioso para celebrar o Natal. A reunião familiar ou de amigos toma-se a única razão de ser da festa. Manteve-se na ementa da ceia de réveilion o peru e a morcela grelhada, mas a sopa-creme foi substituída por um caldo quente. Uma moda nos chega de Inglaterra: o pudding, símbolo do Christmas. Certas revistas dão a receita, caso da Fémina, a 1 de Janeiro de 1903 (outro uso inglês que tenta passar para os nossos costumes: o do abraço sob o visco; Fémina ilustra-o com uma fotografia, a 15 de Dezembro de 1903).
As consoadas, em princípio, são prendas que se dão no primeiro dia de Janeiro, segundo uma antiga tradição. Tomam a forma de gratificações obrigatórias aos criados, ao porteiro, ao carteiro... que transformam o primeiro dia do ano num dia de corveia ruinosa. Os jornais divertem-se com isso. Em Janeiro de 1830 La Mode publica um provérbio (peça em um acto) intitulado: «O dia de Ano Bom, ou as prendinhas mantêm a amizade». Põe em cena um homem perseguido por todos aqueles — do criado de quarto à esposa — que esperam as suas consoadas.
Mas, e de forma mais lata, as consoadas designam as prendas que se oferecem durante todo o período das festas de fim de ano. Alguns, como Madame de Grandmaison em 1892, tentam definir uma repartição: no Natal, prendas para as crianças; no primeiro dia do ano, consoadas para os adultos. Na realidade a distinção é difícil, porque por vezes se dão também prendas aos adultos por ocasião do Natal e às crianças igualmente no Ano Novo. Todas acabam por se chamar, indistintamente, «consoadas».


Sapatinho de Natal e prendas

Na noite de Natal as crianças colocam os seus sapatos diante da chaminé, esperando encontrá-los cheios na manhã do dia seguinte. Pelo Menino Jesus? Pelo Pai Natal? Parece que as duas personagens coexistiram, dando depois o segundo, a pouco e pouco, lugar ao primeiro.
O dicionário Robert de nomes próprios diz que o Pai Natal apareceu na Europa na segunda metade do século XIX. Teria vindo da América e seria uma criação de origem comercial. Que o comércio contribuiu para o sucesso da personagem não há a mínima dúvida, mas não a inventou. Seria necessário pensar antes em São Nicolau (santa Claus), que se festeja a 6 de Dezembro e que, nos países nórdicos, traz prendas às crianças bem comportadas — enquanto o seu associado, o padre Fouettard, deixa vergastas para os desobedientes. É provável que esta personagem tenha sido importada por imigrantes escandinavos e alemães para os Estados Unidos, aí se «comercializando».
Assim sendo, mesmo se no início do século não tinha a estatura que mais tarde adquiriu, o Pai Natal, tal como o conhecemos, estava já bem implantado em Paris: na Histoire de ma vie George Sand conta os natais da sua primeira infância (tinha seis anos em 1810): «O que não esqueci foi a crença absoluta que eu tinha na descida pelo tubo da chaminé do pequeno Pai Natal, bom velhinho de barba branca, que, à meia-noite, vinha pôr no meu sapatinho uma prenda que eu aí encontraria ao acordar. Meia-noite! Essa hora fantástica que as crianças não conhecem, e que lhes é mostrada como o termo impossível da sua vigília! Que esforços incríveis eu fazia para não adormecer antes da chegada do velhinho! Tinha ao mesmo tempo uma grande vontade e um grande medo de o ver: mas nunca conseguia manter--me acordada até lá, e no dia seguinte o meu primeiro olhar era para o meu sapato, junto à lareira. Que emoção me causava o embrulho de papel branco, porque o Pai Natal era extremamente limpo e nunca deixava de empacotar cuidadosamente a sua oferta. Eu corria, descalça, para me apoderar do meu tesouro. Nunca era uma dádiva verdadeiramente magnífica, porque não éramos ricos. Era um bolinho, uma laranja, ou, muito simplesmente, uma bela maçã vermelha. Mas parecia-me tão precioso que mal ousava comê-lo [...]».

O Pai Natal nada tem a ver com o nascimento de Cristo, e a Igreja Católica opôs-se durante muito tempo a esta personagem. Entre os crentes era o Menino Jesus quem trazia as prendas às crianças na noite de Natal. Segundo Francisque Sarcey (Annales de 22 de Dezembro de 1889), as crianças «vêem-no atravessar o ar, comprimindo no peito mãos cheias de bolos e de brinquedos: sentem-no acima deles, muito bom e muito justo; e dizem que com Ele é preciso portar-se bem, senão... os sapatos ficarão vazios». Mas esta imagem não se impôs realmente, e a Igreja, que não conseguia impedir a progressão do Pai Natal de manto vermelho, barba branca e grande saco, recuperou-o, fazendo dele o fiel mensageiro do Menino Jesus e o fundador de uma moral simples da retribuição.
No mês de Dezembro, os jornais abrem tradicionalmente uma rubrica para as consoadas. Sugerem aos leitores ideias para prendas, muitas das quais são especificamente femininas: canapés, «ouvragères» (pequenos móveis contendo o necessário para a costura), «esses pequenos nadas de toucador», papéis de carta de cor, perfumados e encerados, cartões de visita com ornamentos de fantasia. Fala-se, a propósito de tal ou tal objecto, de «bonita prenda para oferecer a uma mulher»; nunca tal se dirá de um objecto destinado a um homem. A categoria das prendas tipicamente masculinas não existe no século XIX. Quando muito, são citados, aqui e ali, objectos necessários «para Homens e para Senhoras». O que não significa que os homens não recebessem prendas, mas não se falava nisso.
Para as crianças, em 1836, a prenda mais requintada é um teatrinho: «Um espectáculo asiático que representa uma dança de corda simulada por pequenas personagens de papel que se fazem mover sem ajuda aparente». Outros brinquedos são propostos porque procuram reproduzir a realidade: o moinho com água verdadeira, os pássaros que cantam, as bonecas «casadoiras» dotadas de enxovais completos. Durante muito tempo as bonecas mantêm-se um valor certo. Os ursos de peluche aparecem no início do século XX. Teddy, o urso americano, data de 1903; Martin, o urso francês, de 1906.
Segundo o Larousse du XIX’ siêcle, se as prendas destinadas às crianças seguem os caprichos da moda, a tendência recente é cultural: «Os livros belos e bons tendem progressivamente a substituir as caras inutilidades, nesta solenidade do primeiro de Janeiro». Há que ter em conta o entusiasmo do dicionário pela pedagogia e pelo progresso, mas é verdade que, de uma ponta do século à outra, os jornais aconselham a oferta de livros e fornecem bibliografias (ver, por exemplo, La Mêre de familie, em Dezembro de 1834, e, em Dezembro de 1880, La Femnie et la Farnille, journal des jeunes personnes).
As meninas que mantêm um diário anotam as prendas que receberam ou recebem dos seus próximos. As prendas que os pais dão às crianças por ocasião das festas de fim do ano não são apenas uma fonte de prazer imediato, são também um investimento no futuro: as crianças lembrar-se-ão, terão capitalizado prazeres e guardá-los-ão na sua memória. Assim se fabrica a nostalgia dos adultos, que, por sua vez, a transmitirão aos seus filhos.


Votos e visitas de Ano Novo

Como troca das consoadas que recebem os filhos por ocasião do Ano Novo apresentam votos aos pais. Escreve Ehsabeth Arnghi a 29 de Dezembro de 1877: «Também nós fazemos consoadas para o papá, Pierre, Amélie e eu aprendemos juntos Le Petit Savoyard, e escrevemo-lo numa bela folha; depois aprendi um fragmento a duas mãos, e um outro a quatro mãos, que vou tocar com a mamã; Amélie aprendeu um fragmento a quatro mãos que vai tocar comigo».
No primeiro dia do ano devem apresentar-se os votos aos parentes próximos: pai, mãe, tios e tias, irmãos e irmãs. A véspera é reservada aos avós e aos superiores. Os oito dias seguintes são para os primos e outras pessoas aparentadas, a quinzena para os íntimos, o mês inteiro para os simples conhecimentos. Eis o que representa um número considerável de visitas a fazer e de cartões de votos a escrever.
É por isso, para evitar deslocar-se demasiado, que as pessoas se contentam muitas vezes em mandar, quer por um criado, quer pelos serviços de uma empresa que é paga para tal, entregar um cartão a casa das pessoas a quem se apresentam votos. Le Figaro de 24 de Dezembro de 1854 sublinha o paradoxo deste costume parisiense. As pessoas que recebem estes cartões afectam desprezar «esta atenção a trezentos francos a centena». Mas se alguém se dispensa de o fazer eles mesmos dirão: «Fulano não sabe viver: nem sequer me mandou um cartão no dia de Ano Novo!».











“Os ritos da vida privada burguesa”
por Anne Martin-Fugier
História da vida privada
Sob a direcção de Philippe Ariès e George Duby
Vol. 4 “Da Revolução à Grande Guerra”
Edições Afrontamento
1990






18 dezembro 2006

post it / w.d. sevahc




Carta simples


Hoje quis escrever-te e não consegui.
Pesam-me os verbos como pedras
nestes dedos, mas vês,
é sobre ti que se debruçam as palavras
que não saem
e nestes olhos a gratidão
de saberes sempre quando preciso da tua mão
na face, quase materna, quase amante,
e azuis os rasgos de ternura
de uns olhos castanhos e
meigos
que me libertam das águas revoltas
onde lutam os meus neurónios
em batalhas estéreis e sem sentido.
Tens sido tu o porto de abrigo
que me recolhe nas paisagens desse País
que escondes no teu corpo e no teu nome
e me dá uma paz profunda
e me asseguras na minha infantil insegurança
que o passaporte que assinaste para eu aí viver
é vitalício e sem encargos,
esse País tão infinito onde me quero nacionalizar
e ter asilo.
Se conseguisse, hoje tentaria explicar-te
que as razões da minha insegurança
vêm do facto de que quando me multiplico
nos jardins que escolho com cuidado
a água desaparece sem razão
correndo aos poucos para outros rios,
desidratando-me os afectos.
Sou inseguro e insistente
devido à inevitabilidade de que perpetuarás
esse ciclo, e que tenhas medo e fujas
e ergas muros que ficarei a contemplar
com os meus olhos tristes
que te dizem tanto sem dizerem nada,
excepto não tenhas medo,
não fujas,
não vás,
não sejas um rio
onde estas raízes não bebam.



w.d. sevahc




16 dezembro 2006

carlos edmundo de ory



dá-me




dá-me algo mais que silêncio ou doçura
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra

não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz

dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!





carlos edmundo de ory
“doze nós numa corda"
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997





11 dezembro 2006

ewa lipska




testamento



Após a morte de Deus
abriremos o testamento
para saber
a quem pertence o mundo
e aquela grande armadilha
de homens





ewa lipska (polónia, 1945)
tradução de aleksandar jovanovic
a rosa do mundo
assírio & alvim
porto 2001




08 dezembro 2006

estações

15 )



lisboa 2006, © gil t. sousa



pedro gil-pedro




Desciam
às estâncias do frio

o metal pesado nas mãos

e resplandeciam –

tolhidas pelo silvo vertical das
nascentes.

às vezes
eram badalos de tristeza –

as manadas abertas do cio.

vinhas com elas.







pedro gil-pedro
“animais cheios de movimento no inverno”
quasi
2002



07 dezembro 2006

estações

14 )



instinto



aceitar os dias por instinto
por dentro
um vulcão de papel
a inventar
as horas seguintes

ser tranquilamente uma terra antiga
um lugar de secura
onde adormecidas pérolas
esperam o cavar silencioso
do tempo

e colher no infinito
esse brilho adiado

como se fossem outra vez
os teus olhos






gil t. sousa
poemas
2001




05 dezembro 2006

joão de mancelos



mil novecentos e oitenta e cinco




nesse tempo, deus existia ainda
e tudo quanto era frágil respirava
loucamente


no bar da escola,
as bandas tocavam
para os cleptomaníacos do coração


nas traseiras do ginásio,
treinavam-se beijos à serpente
e cigarros orientais


os rapazes cresciam
com olhos prateados
e duros totens de carne


debaixo das saias das raparigas
havia flores rasgadas
e sonhos de cavalos bravos


forever young, só o vento
— e as revoluções do amor
que beijo a beijo atraiçoávamos






joão de mancelos
“oficina de poesia”
nr. 3 junho 2004
coimbra




04 dezembro 2006

ievgueni ievtuchenko



dorme amor




Brilham na vala as gotas salgadas.
A porta está fechada. E o mar,
fervente, erguendo-se e rompendo contra os diques,
absorveu o sol salgado.
Dorme amor...
Não atormentes a minha alma.
Adormecem já as montanhas e a estepe,
e o nosso cão coxo,
de pêlo emaranhado,
deixa-se cair e lambe a corrente salgada.
E o rumor dos ramos,
e o fragor das ondas,
e o cão acorrentado
com toda a sua experiência,
e eu com voz muito branda
e logo num murmúrio
e depois em silêncio
dizemos-te ambos: dorme, amor...
Dorme, amor...
Esquece que nos zangámos.
Imagina por exemplo:
acordamos.
Tudo está fresco.
Caímos sobre o feno.
Temos sono.
Vem um cheiro a leite azedo
lá de baixo,
da cave
convidando a sonhar.
Oh, como poderei fazer-te
imaginar tudo isto,
a ti, tão desconfiada!
Dorme, amor...
Sorri entre sonhos.
Não chores mais!
Corta flores e vai pensando
onde hás-de pô-las,
e compra muitos vestidos bonitos.

Disseste alguma coisa?
É o cansaço do teu sonho inquieto.
Envolve-te no sonho, agasalha-te bem nele.
Podemos ver em sonhos tudo o que queremos,
tudo o que ansiamos
quando estamos acordados.
É absurdo não dormir,
é mesmo um delito:
o que trazemos oculto
grita-nos nas entranhas.
Que difícil para os teus olhos
trazer tanta coisa!
Debaixo das pálpebras
sentirão o alívio do sonho.
Dorme, amor...
Porque estás acordada?
É o bramido do mar?
A súplica das árvores?
Um mau pressentimento?
A sem-vergonha de alguém?
Ou talvez não de alguém,
mas simplesmente a sem-vergonha minha?
Dorme, amor...
Não é possível fazer nada,
mas sabe desde já que não é culpa minha esta culpa.
Perdoa-me - estás a ouvir?
Ama-me - estás a ouvir? -
mesmo que seja só em sonhos,
só em sonhos!
Dorme, amor...
Estamos num mundo
que voa enlouquecido
e ameaça explodir,
e é preciso abraçarmo-nos
para não cairmos dele,
e se tivermos que cair,
vamos cair abraçados.
Dorme, amor...
Não te deixes encher de raiva.
Que o sonho penetre suavemente nos teus olhos
já que é tão difícil dormir neste mundo.
Mas apesar de tudo
- ouves-me, amor? -
dorme...
E o rumor dos ramos,
e o fragor das ondas,
e o cão na corrente
com toda a sua experiência,
e eu com voz muito branda
e logo num murmúrio
e depois em silêncio
dizemos-te ambos: dorme, amor...






ievgueni ievtuchenko
ievtuchenko em lisboa (1967)
dom quixote
1968






02 dezembro 2006

raul brandão (1867-1930)



21 de Novembro


Não me compreendo nem compreendo os outros. Não sei quem sou e vou morrer. Tudo me parece inútil e agarro-me com desespero a um fio de vida, como um náufrago a um pedaço de tábua.

Nem sei o que é a vida. Chamo vida ao espanto. Chamo vida a esta saudade, a esta dor; chamo vida e morte a este cataclismo. É a imensidade e um nada que me absorve; é uma queda imensa e infinita, onde disponho de um único momento.

Talvez o mundo não exista, talvez tudo no mundo sejam expressões da minha própria alma. Faço parte de uma coisa dolorosa, que totalmente desconheço, e que tem nervos ligados aos meus nervos, dor ligada à minha dor, consciência ligada à minha consciência.

Estou até convencido que nenhum destes seres existe. Este fel é o meu fel, este sonho grotesco o meu sonho. Estou convencido que tudo isto são apenas expressões de dor – e mais nada.

Nós não vemos a vida – vemos um instante da vida. Atrás de nós a vida é infinita, adiante de nós a vida é infinita. A primavera está aqui, mas atrás deste ramo em flor houve camadas de primaveras de oiro, imensas primaveras extasiadas, e flores desmedidas por trás desta flor minúscula. O tempo não existe. O que eu chamo a vida é um elo, e o que aí vem um tropel, um sonho, desmedido que há-de realizar-se. E nenhum grito é inútil, para que o sonho vivo ande pelo seu pé. A alma que vai desesperada à procura de Deus, que erra no universo, ensanguentada e dorida, a cada grito se aproxima de Deus. Lá vamos todos a Deus, os vivos e os mortos.

O mundo é um grito. Onde encontrar a harmonia e a calma neste turbilhão infinito e perpétuo, neste movimento atroz? O mundo é um sonho sem um segundo de paz. A dor gera dor num desespero sem limites.

Eu não sou nada. Sou o minuto e a eternidade. Sou os mortos. Não me desligo disto – nem do crime, nem da pedra, nem da voragem. Sou o espanto aos gritos.

O sonho completo é o universo realizado.

Cada vez fujo mais de olhar para dentro de mim mesmo. Sinto-me nas mãos de uma coisa desconforme. Sinto-me nas mãos de uma coisa imensa e cega – de uma tempestade viva.

Não só a sensibilidade é universal – a inteligência é exterior e universal.

O universo é uma vibração. A vida é uma vibração na vibração.

Toda a teoria mecânica do universo é absurda. Daqui a alguns anos todos os sistemas serão ridículos – até o sistema planetário.






raul brandão
húmus
frenesi
2000


29 novembro 2006

post it / l. maltez

sentires...



acordas junto à sombra dos sentires
perdido no movimento azebre,
fulguras da tristura ocasional
de um tempo passado
sem prazer.


suave na sua mudez,
a terra olha-te em silêncio.


escutas a voz do perigo
entre o bem e o mal,
consegue pousar
do lado da luz
no frio que te dá ordens


do coração saltam feridas
devoradas pelo infinito


já nada sentes
embriagado na música inaudível,
expeles do teu corpo uma seiva amarga,
e imploras para renascer
de um ventre sem rosto



aguardas na praia que a maré vaze,
encontro-te...



dou-te a minha mão!






l.maltez


28 novembro 2006

ternura

cruzeiro seixas



Cheguei a casa um pouco mais cedo que de costume. Tirei a ventoinha da cabeça, pus-me à vontade, fui ver se os mamutes estavam a fazer disparates e sentei-me na sala, no velho e confortável sofá que a tia Mizé nos oferecera pelo casamento. Querida tia Mizé! Preparei um gin.
Josela ainda não chegara. Estava atrasada, talvez as compras, quem sabe.
Foi quando ouvi abrir a porta. Fui ver. Josela chegava, empurrando o carrinho antigo que servira para o nosso filho agora com dezoito anos como sabem, e com um bom lugar de Viet qualquer coisa, lá não estou bem certo onde; lugar seguro e de futuro, foi o que me disseram. Bom rapaz, o nosso garoto.
Olhei o carrinho. Trazia um bebé dentro. Josela sorria. Vi o preço. Razoável. Do talho do senhor Esteves. Manias da Josela.
Olhei Josela.
Tinha os olhos brilhantes, havia urna ternura inesperada que a envolvia, uma tristeza distante nas mãos.
— Achas que podemos ficar com ele? — perguntou-me, afirmando.
Concordei. Josela manda.
Arrumei o carrinho.
Era um bebé ainda em muito bom estado. Durou cinco dias até apodrecer, calculem!





mário-henrique leiria
“casos de direito galático / o mundo inquietante de josela (fragmentos)”
ilustrações de cruzeiro seixas
editorial república
1975