31 dezembro 2016

jean genet / por que dançar esta noite?



Por que dançar esta noite? Saltar,
pular no arame debaixo dos projectores a oito metros do tapete?
Razão, terás tu que encontrá-la. Ao mesmo tempo caça e cata dor,
esta noite saíste do covil, foges de ti próprio
e andas à tua procura.
Onde estavas antes de apareceres na pista?
Tristemente disperso nos teus gestos quotidianos,
não existias. À luz experimentas a necessidade de te reconstituíres.
Todas as noites vais correr só para ti,
ficar contorcido no arame e retorcido numa busca do ser harmonioso,
disperso e extraviado num matagal de gestos familiares:
atar o sapato, assoar, coçar, comprar sabão...
Um só instante vais aproximar-te de ti e deitar a mão a ti próprio.
Na mesma solidão mortal e branca, sempre.

Mas o teu arame — e lá volto eu –
não esqueças nunca que às virtudes dele deves a graça.
Por certo a que tens, mas para descobrir e exibir as dele.
O jogo nem um nem outro favorece: brinca tu com o arame,
irrita-o com o tornozelo, surpreende-o com o calcanhar.
Não temas a crueldade que há entre os dois: cortante,
que vai fazer-te cintilar. E vê lá bem,
não abdiques nunca da mais requintada cortesia.
Faz-te consciente daqueles contra quem triunfarás,
contra nós, sim, mas... através de uma odiosa dança.
Não se é artista sem uma grande infelicidade de permeio.
De ódio contra qual deus? E vencê-lo para quê?
A caça no arame, a perseguição à tua imagem e
essas flechas que lhe espetas sem chegar a tocar-lhe e
a ferem e fazem cintilar, é realmente uma festa.
E será a Festa se acertares na imagem.

          (...)



jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984




30 dezembro 2016

franco loi / eu venho de longe, sou o das ostras e das blasfémias,



Eu venho de longe, sou o das ostras e das blasfémias,
o mercador de maravilhas e dos caroços de pêssego,
o que compra a amargura dos humildes
e doce a espalha limpa como um pássaro voando...
Eu vi dos pobres a cidade dos mortos,
os plátanos ali, especados, com os homens sós
que gritavam com os pés e cuja cabeça à banda
cortava oscilando a corda nos nós do tronco,
vi os campos de erva, onde os braços calcavam
com fúria a terra, como se catarrentos
quisessem soterrar-se, ou desesperados
pôr-se de cu para aquele céu... Oh, escarpas
de fuzilados, exangues, ar de tragédia,
freixos selvagens que já não tendes céu, mendigos de que sopros!
Vi gente gotejando, em fuga em ofegante,
e aquelas sirenes, atrás, com as mãos a gritar:
foge, foge, corre!, vem por aí abaixo
uma porradeira de bombas, que metralham e ceifam,
e os rapazes que escarvam, cães como bandos de rapazes,
e mães que berram - Meninos, quem pode fugir do vento?...
Ah, se eu venho de longe... Péssima raça!
Quando penso que morrer não é nada,
que temos medos de uma sombra, que louca
é esta nossa vida, e que os homens parecem caminhar...
Caminhar? Ou é este empurrão do ar que os colhe
e os arrasta pra onde quer, para onde vão finar-se?


franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993







29 dezembro 2016

henri michaux / palhaço



Um dia.
Um dia, em breve, talvez.
Um dia hei-de arrancar a âncora que separa o meu navio
dos mares.

Com a espécie de coragem necessária para ser nada e nada de nada,
hei-de abandonar o que me parecia ser indissoluvelmente próximo.
Hei-de trinchá-lo,
virá-lo do avesso,
rompê-lo,
correr com ele de escantilhão.

Vomitando de uma só vez o meu pudor miserável,
as minhas miseráveis combinações e encadeamentos
«de fio a pavio».

Esvaziado do abcesso de ser alguém,
hei-de beber de novo o espaço nutritivo.

A toque de ridículos,
de destituições (o que é a destituição?),
por explosão,
por vazio,
por uma total dissipação-dirrisão-purgação,
hei-de expulsar de mim
a forma que se julgava tão bem encaixada,
composta,
coordenada,
adequada ao meu ambiente e aos meus semelhantes,
tão dignos,
tão dignos,
os meus semelhantes.

Reduzido a uma humildade de catástrofe,
a um nivelamento perfeito,
como depois de um enorme cagaço.

Reconduzido abaixo de toda a medida
ao meu verdadeiro escalão,
ao ínfimo escalão
que não sei qual ideia--ambição me fizera abandonar.

Aniquilado em altura,
em estima.

Perdido num sítio longínquo (ou nem tanto),
sem nome,
sem identidade.

PALHAÇO,
arrasando à gargalhada,
pelo grotesco,
por uma barrigada de riso,
o sentido que,
contra todas as evidências,
atribuíra à minha importância.

Hei-de afundar-me.
Sem rede no infinito-espírito sub-jacente aberto a todos,
eu próprio aberto
a um novo orvalho inacreditável
à força de ser nulo
e raso...
e risível...



henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999





28 dezembro 2016

antónio pedro / poema inicial



I
A espuma do mar
Arrenda-me a sombra
Na areia molhada.
Ecoa nos gritos
Dos pássaros soltos
A voz que afogaram.
Quem mede os segredos
Da mata em que dói
Nasceram-me os ramos
No corpo que a é?

Assim porque sou
Princípio do mundo
Na tábua do barco
No seixo da roda
Na pedra do barro
No ovo da angústia
No parto dos peixes
Vivíparos e ainda
Na primeira mamada
Do cabrito ali

A minha sede antiga
É como se fosse
Pela primeira vez.


antónio pedro
antologia poética
obras clássicas da literatura portuguesa séc. xx
edição de fernando matos oliveira
angelus novus, editora
1998



27 dezembro 2016

luís miguel nava / o tímpano e a pupila



Num dos pratos o mar, no outro um rio, agora
que o tempo se desossa,
que as pedras
que piso se me enterram na memória e os caminhos

se me aguçam na alma como lâminas, o pão
molhado nas feridas,
o pão
ele próprio já também uma ferida, agora

que o tempo, que já tanto
compararam a um rio, mais
não é do que uma leve exsudação nos muros,
nas mãos, agora

que o céu se encrespa e que pedaços
de mundo arremessados
com toda a força aos olhos revolteiam
na treva antes de se extinguirem,

mais magro do que a neve
caminho, a alma aberta como uma ferida,
ao longo da memória, onde se fundem
o tímpano e a pupila.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
vulcão
publicações dom quixote
2002




26 dezembro 2016

antónio ramos rosa / não sei se respondo ou se pergunto



Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.


antónio ramos rosa








25 dezembro 2016

rui knopfli / a pedra no caminho



Toma essa pedra em tua mão,
toma esse poliedro imperfeito,
duro e poeirento. Aperta em
tua mão esse objecto frio,
redondo aqui, acolá acerado.

Segura com força esse granito
bruto. Uma pedra, uma arma
em tua mão. Uma coisa inócua,
todavia poderosa, tensa,
em sua coesão molecular,
em suas linhas irregulares.

Ao meio-dia em ponto, na avenida
ensolarada, tu és um homem
um pouco diferente. Ao meio-dia
na avenida tu és um homem
segurando uma pedra. Segurando-a
com amor e raiva.


rui knopfly
reino submarino
1962



24 dezembro 2016

alberto caeiro / quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois


XVI

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhaninha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

Ou então faziam de mim qualquer coisa diferente
E eu não sabia nada do que de mim faziam...
Mas eu não sou um carro, sou diferente
Mas em que sou realmente diferente nunca me diriam.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




23 dezembro 2016

gabriel celaya / aviso



A cidade é de borracha lisa e negra,
mas tem vielas com odor a estábulo,
a armazéns de cereais, a madeira molhada,
a selaria, a chicória, a esparto.

Há chilreios que mordem, ruídos inumanos,
há bruscas buzinadas que desincham
meu absurdo coração hipertrofiado.

Alugo-me por horas; rio e choro com todos;
mas escreveria um poema perfeito
se não fosse indecente fazê-lo nestes tempos.



gabriel celaya
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985



22 dezembro 2016

blas de otero / fidelidade



Creio no homem. Já vi
dorsos despedaçados a chicote,
almas cegas avançando aos saltos
(espanhas a cavalo
de fome e sofrimento). E acreditei.

Creio na paz. Já vi
altas estrelas, recintos chamejantes
a amanhecentes, incendiando rios
fundos, caudal humano
para outra luz: vi e acreditei.

Creio em ti, pátria. Digo
o que já vi: relâmpagos
de raiva, amor em frio e uma faca
chiando, fazendo-se em pedaços
de pão: embora hoje só haja sombra, vi
e acreditei.


blas de otero
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985





21 dezembro 2016

rené char / partilha formal


LI

Certas épocas da condição do homem sujeitam-se ao ataque de um mal que se apoia nos pontos mais desonrosos da natureza humana. No centro desse furacão, o poeta completará
Pela auto-renúncia o sentido da sua mensagem, posto o que se aliará ao partido daqueles que, tendo retirado ao sofrimento a sua máscara de legitimidade, garantem o eterno retorno do teimoso estafeta, traficante de justiça.



         
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000





20 dezembro 2016

carlos de oliveira / árvore


VII

é então que vejo
no halo mais antigo
a árvore desolada,
os ramos em que poisam
as aves
doutros livros,
e pressinto
as raízes
através da sílica
onde a família dorme
com os ossos dispostos
nessa arquitectura
duvidosa
de símbolos


carlos de oliveira
micropaisagem
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998



19 dezembro 2016

konstandinos kavafis / da loja




Embrulhou-as com cuidado, ordenadamente
na seda verde excelente.

Lírios de pérolas, rosas de rubis,
violetas de ametista. Tais como ele as quis,

as apreciou, as viu belas; não como na natureza há
as viu e as estudou. Dentro do cofre as deixará

amostra do seu trabalho eficaz e sem temor.
Se na loja entrar um qualquer comprador

tira outras dos estojos e vende – jóias singulares –
pulseiras, anéis, cordões e colares.



konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994



18 dezembro 2016

álvaro de campos / que lindos olhos de azul inocente os do pequenito do agiota!


Que lindos olhos de azul inocente os do pequenito do agiota!
Santo Deus, que entroncamento esta vida!
Tive sempre, feliz ou infelizmente, a sensibilidade humanizada,
E toda a morte me doeu sempre pessoalmente,
Sim, não só pelo mistério de ficar inexpressivo o orgânico,
Mas de maneira directa, cá do coração.
Como o sol doura as casas dos réprobos!
Poderei odiá-los sem desfazer no sol?
Afinal que coisa a pensar com o sentimento distraído
Por causa dos olhos de criança de uma criança...
s.d.


fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1980



17 dezembro 2016

herberto helder / o amor em visita




     Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
     e seu arbusto de sangue. Com ela
     encantarei a noite.
     Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
     Seus ombros beijarei, a pedra pequena
     do sorriso de um momento.
     Mulher quase incriada, mas com a gravidade
     de dois seios, com o peso lúbrico e triste
     da boca. Seus ombros beijarei.

     Cantar? Longamente cantar,
     Uma mulher com quem beber e morrer.
     Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
     o atravessar trespassada por um grito marítimo
     e o pão for invadido pelas ondas,
     seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
     ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
     de alegria e de impudor.

     Seu corpo arderá para mim
     sobre um lençol mordido por flores com água.
     Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
     e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
     os bordões da melodia,
     a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
     desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
     - Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
     as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
     mulher de pés no branco, transportadora
     da morte e da alegria.

     Dai-me uma mulher tão nova como a resina
     e o cheiro da terra.
     Com uma flecha em meu flanco, cantarei.

     E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
     cantarei seu sorriso ardendo,
     suas mamas de pura substância,
     a curva quente dos cabelos.
     Beberei sua boca, para depois cantar a morte
     e a alegria da morte.

     Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
     pescoço de planta,
     onde uma chama comece a florir o espírito.
     À tona da sua face se moverão as águas,
     dentro da sua face estará a pedra da noite.
     - Então cantarei a exaltante alegria da morte.

     Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
     despenhada de sua órbita viva.

     - Porém, tu sempre me incendeias.
     Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
     imagem pungente
     com seu deus esmagado e ascendido.
     - Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.

     Entontece meu hálito com a sombra,
     tua boca penetra a minha voz como a espada
     se perde no arco.
     E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
     estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
     se desfibra - invento para ti a música, a loucura
     e o mar.

     Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
     a inspiração.
     E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
     Vou para ti com a beleza oculta,
     o corpo iluminado pelas luzes longas.
     Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
     transfiguram-se, tuas mãos descobrem
     a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
     áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
     aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
     eu sou a beleza.
     Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
     teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.

     Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
     que me vem o fogo.
     Não há gesto ou verdade onde não dormissem
     tua noite e loucura,
     não há vindima ou água
     em que não estivesses pousando o silêncio criador.
     Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
     originais.
     Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
     a carne transcendente. E em ti
     principiam o mar e o mundo.

     Minha memória perde em sua espuma
     o sinal e a vinha.
     Plantas, bichos, águas cresceram como religião
     sobre a vida - e eu nisso demorei
     meu frágil instante. Porém
     teu silêncio de fogo e leite repõe
     a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
     e teu amor. As coisas nascem de ti
     como as luas nascem dos campos fecundos,
     os instantes começam da tua oferenda
     como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

     Mais inocente que as árvores, mais vasta
     que a pedra e a morte,
     a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
     tinge a aurora pobre,
     insiste de violência a imobilidade aquática.
     E os astros quebram-se em luz sobre
     as casas, a cidade arrebata-se,
     os bichos erguem seus olhos dementes,
     arde a madeira - para que tudo cante
     pelo teu poder fechado.
     Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
     eu sei quanto és o íntimo pudor
     e a água inicial de outros sentidos.

     Começa o tempo onde a mulher começa,
     é sua carne que do minuto obscuro e morto
     se devolve à luz.
     Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
     com uma imagem.
     Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
     de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
     uma ideia de pedra e de brancura.
     És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
     que te alimentas de desejos puros.
     E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
     a sombra canta baixo.

     Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
     onde a beleza que transportas como um peso árduo
     se quebra em glória junto ao meu flanco
     martirizado e vivo.
     - Para consagração da noite erguerei um violino,
     beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
     darei minha voz confundida com a tua.

     Oh teoria de instintos, dom de inocência,
     taça para beber junto à perturbada intimidade
     em que me acolhes.

     Começa o tempo na insuportável ternura
     com que te adivinho, o tempo onde
     a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
     o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
     ingénua e cara, o que pressente o coração
     engasta seu contorno de lume ao longe.
     Bom será o tempo, bom será o espírito,
     boa será nossa carne presa e morosa.
     - Começa o tempo onde se une a vida
     à nossa vida breve.

     Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
     salina, imagem fechada em sua força e pungência.
     E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
     em torno das violas, a morte que não beijo,
     a erva incendiada que se derrama na íntima noite
     - o que se perde de ti, minha voz o renova
     num estilo de prata viva.

     Quando o fruto empolga um instante a eternidade
     inteira, eu estou no fruto como sol
     e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
     matriz de sumo e vivo gosto.
     - E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
     das nuvens florescem, a resina tinge
     a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
     E estás em mim como a flor na ideia
     e o livro no espaço triste.

     Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
     na cevada pura, de ti viriam cheias
     minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
     em minha espuma,
     que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
     - No entanto és tu que te moverás na matéria
     da minha boca, e serás uma árvore
     dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

     Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
     Ver no aro de fogo de uma entrega
     tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
     será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
     do meu perpétuo instante.
     - Eu devo rasgar minha face para que a tua face
     se encha de um minuto sobrenatural,
     devo murmurar cada coisa do mundo
     até que sejas o incêndio da minha voz.

     As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
     jovem da carne aspiram longamente
     a nossa vida. As sombras que rodeiam
     o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
     seu bárbaro fulgor, o rosto divino
     impresso no lodo, a casa morta, a montanha
     inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
     - aspiram longamente a nossa vida.

     Por isso é que estamos morrendo na boca
     um do outro. Por isso é que
     nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
     da brisa, no sorriso, no peixe,
     no cubo, no linho, no mosto aberto
     - no amor mais terrível do que a vida.

     Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
     o perfume da tua noite.
     Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
     e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
     e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
     ao círculo de meu ardente pensamento.
     Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
     sobre o teu sorriso imenso.
     Em cada espasmo eu morrerei contigo.

     E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
     das urzes, um silêncio, uma palavra;
     traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
     vermelha.
     Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
     casa de madeira do planalto,
     rios imaginados,
     espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
     maravilhosas da noite. Ó meu amor,
     em cada espasmo eu morrerei contigo.

     De meu recente coração a vida inteira sobe,
     o povo renasce,
     o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
     a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
     de crepúsculos e crateras.

     Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
     encanta pela noite equilibrada, imponderável -
     em cada espasmo eu morrerei contigo.

     E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
     entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
     da tua entrega. Bichos inclinam-se
     para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
     contra o ar. Tua voz canta
     o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
     o lento desejo do teu corpo.
     Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
     eu morrerei contigo.



     herberto helder
     poesia toda
     assírio & alvim
     1996