Às vezes talvez uma simples dor no dedo mínimo de um pé ou o brilho nos
olhos
de uma mulher
que passa e passa decididamente decerto para sempre e sinto ser
possivelmente
essa mão
inconfundível devido a uma determinada pressão no ombro desde sempre
esperada
sim talvez essa dor ou esse brilho ou esse brilho e essa dor
simultaneamente
distraem-me do vento que roda lá fora que roda loucamente lá fora que
roda como se rodar fosse para ele uma verdadeira maneira de ser
que roda envergando todas as suas vestes de inúmeras peças tufadas
compridas e
transparentes
e ascende das areias invariavelmente passivas da praia humilde
feminina sensível às constantes embaixadas envolventes do mar
até às pedras altas do velho forte altas e altivas no cimo da sua
altura e da sua idade
na forma de um vulto esguio redondo e rodopiante de pinheiro ou simples
ampulheta ou clepsidra
O vento a essas horas incertas perdidas da noite quando a obscuridade
desde há tanto que mais parece desde sempre cobriu com o seu manto
todas as coisas designadamente os compridos corpos humanos
e abafou os miúdos inumeráveis ruídos que costumam acompanhar a
luminosidade
cega do dia
entoa então por vezes nas árvores e nas casas e em coisas como os
arames e as mais
variadas
saliências da terra
o seu canto levíssimo levitante vagamente triste cortante mais cortante
mesmo
que a faca cujo gume acaba de sair das múltiplas mãos dos móveis
amoladores
um canto que faz lembrar o uivo de certos animais feridos talvez na
raiz da sua
sensibilidade
ou a súbita irrupção dos primeiros violinos numa sala abafada pelo
veludo das
cadeiras ou as peles das senhoras da alta sociedade
um canto próprio inconfundível decerto inolvidável para quem uma noite
o ouviu
dificilmente dicionarizável porque a essas horas os académicos dormem
sonhando talvez com o discurso de ingresso de um novo membro na
academia
e o vento é de uma sociabilidade altamente duvidosa e canta canta nas
dobras da
noite
Eu estou deitado e então sinto a ponta dos pés nos lençóis
recém-mudados
sinto como mais uma parte do meu corpo os próprios lençóis
e imediatamente faço calar o coro que na rádio canta o messias de
haendel
e abre assim um espaço que não é o do meu quarto mas sim o da catedral
de toledo aconchegada na penumbra de certas tardes dos fins de maio
O vento vem na sua suavíssima voz e toda a gente morre de súbito para
mim
os cuidados deitados talvez comigo desaparecem inspiro profundamente
e sinto-me tão bem que até me parece penoso dizer que me sinto tão bem
não vá eu deixar porventura de me sentir assim tão bem não vá o vento
calar-se
Deve haver algures no meu corpo um lugar expressamente reservado para a
voz
do vento
uma cavidade qualquer assim como as salas dos aeroportos destinadas às
pessoas
muito
importantes
mas esta minha só para o vento a única pessoa muito importante para mim
As ramadas das árvores agora sim agora devem viver
agora devem manifestar vivamente que vivem
haverá talhadas luminosas e brancas na crista das inúmeras ondas do mar
da baía
e eu oiço completamente o vento e ouvir o vento é suficiente para me
sentir vivo
para sentir as amplas asas da paz abertas no peito no leve leque das
suas penas
Desvaneceram-se decididamente na vasta sede da noite
as rápidas mulheres munidas de imensos pés que sem reservas amei
jamais imprimi palavra alguma nas páginas brancas do papel tão brancas
e
sucessivas
como dias
não tenho passado nem coisas quaisquer a fazer acabo até agora mesmo de
nascer
Neste momento sou apenas sou pelo menos desde os pés da cama até à
cabeceira
a voz vasta do vento
e a minha cama range como quando pomos os pés nesses velhos sobrados
onde
se deixa grelando a batata
cresce o ritmo da minha respiração o pulso bate-me cada vez mais
apressadamente
volto-me vagamente vagarosamente mais ou menos lá para donde pressinto
que
o
vento vem
é possível que morra de um momento para o outro quando menos espere
e a cabeça me fique a baloiçar ao vento de um lado para o outro
primeiro
de parede para parede do quarto depois lá fora entre leste e oeste
Há um vento impetuosamente solto na noite da minha vida um vento
mais louco do que mulheres esbeltas e lentas nos seus longos cabelos
e sinto que as pontas dos pés me chegam mais longe cada vez mais longe
e não leio na agenda nenhumas horas marcadas nem sei de locais de
encontro
não necessito tomar o metro pedir um gin tónico que vá bebendo gole
a gole no bar deserto pensando talvez que ali esteve um dia hemingway
esperando
talvez
como eu
saboreando o leve sabor amargo do gin desfazendo o limão vendo as
cortinas
esvoaçar ao vento
O vento vibra na sua voz de vento alarga aos quatro cantos
aos inumeráveis recantos da noite as espirais translúcidas do seu vulto
infunde uma vida irritante saltitante e irrequieta em coisas
como latas amolgadas e enferrujadas enferrujadas precisamente nas
partes amolgadas
como madeiras apodrecidas pelo salitre e pela chuva como portinholas
desengonçadas
o vento sopra na areia enverga as vestes cheias de folhos e dobras
da areia possivelmente para ter um mínimo de corpo e tornar-se visível
e bailar rodopiando no largo à volta do vulto do cruzeiro
e caminhar caminhar cada vez mais caminhar cada vez a passos mais
largos
e proceder à sistemática ocupação dos mais recônditos recantos da terra
Vejo vislumbro através da janela levemente entreaberta
que o vento circula a muitos quilómetros por hora na estreita estrada
que o vento enche preenche o espaço arenoso indeciso e nublado entre
estas poucas
casas sonâmbulas
que passa a mão inquieta de muitos dedos abertos dispersos e diluídos
primeiro aqui pela aldeia depois possivelmente por toda a terra
e não tardará talvez a elevar vales a aplanar muitos dos montes
num trabalho perseverante e esgotante que são joão baptista e cristo
aliás ocupados com outras coisas se devem ter visto impotentes para
levar a cabo
E eu aqui sem nenhuma memória abandonado até por estas paredes ainda há
pouco à minha volta
apenas dispondo deste resto de corpo onde o vento pode à vontade
vibrar quando quiser até quando quiser e assim vibrando
demonstrar que existe que vive e dizer eu sou o vento e nasci em tantos
do tal em tal sítio e a sua afirmação valer como um bilhete de
identidade
Creio que morreria se não pressentisse não sei bem como
mas através de um latejo levemente diferente do coração
que o vento já tão irrequieto esta noite ficaria talvez triste
por ver desaparecer não um dos poucos amigos e admiradores veneradores
atentos e obrigados que talvez sinceramente tenha
não um espectador interessado do longo e variado festival que nestes
momentos
apresenta
mas uma coisa mais um obstáculo mais a demolir e a vencer
Tenho oito cadeiras trabalhosamente entrelaçadas no distante vime da
juventude
quando pelas tardes de calma e calor me banhava na vala junto ao moinho
e os vimes os mais ginasticados emissários da vegetação das margens
cortavam em tiras a sombra que poisava ao de leve na água
tenho essas oito cadeiras disponho-as em fila com a seca solenidade de
um
cerimonial
e rígido e digno da minha estatura liberta enfim das volumosas volutas
dos
barbitúricos
aguardo cheio de calma que o vento se sente multiplicadamente nas oito
cadeiras
que
tenho
Talvez o vento levante a voz aumente ainda mais de volume
convoque ventos de outros espaços e sopre na força irresistível e
tempestade
e venha violentamente até mim e varra da minha casa
e varra da minha vida tudo absolutamente tudo o que não seja o vento
e sejam talvez coisas planas e chatas e domésticas e imensamente
miúdas e não disponham desta voz côncava do vento
Há nuvens negras que se deslocam apressadamente para o sul
há filas de canas que oscilam e fazem ao vento a elegante reverência da
vassalagem
ou pelo menos da boa educação tudo se anima vibra soa na noite
O vento vai vencendo obstáculos dispõe cada vez de maior espaço
anexa pela violência territórios que ainda há pouco lhe opunham certa
resistência
ensaia agora a sua vastíssima valsa na ampla sala da noite
canta uiva produz esse inimitável som impossível de procurar nas
páginas dos
dicionários
afina a voz para as mais agudas notas do seu canto dilacerador e íntimo
Virá o dia muitos corpos afastarão finalmente da fronte os últimos véus
do sono
muitos olhos procurarão a luz sentirei mais minhas as pontas dos pés
o canto quezilento e quebradiço dos pássaros no pátio nas árvores nos
beirais
disputará o lugar à voz do vento nos meus ouvidos
Voltarão primeiro um por um depois em bandos os cuidados
as pontas dos cabelos compridos de mulheres jovens entrar-me-ão para a
boca
mas é provável é mesmo muito provável que algures nalguma parte
profunda e
perdida do
meu corpo
continue vazia arejada e arrumada com o pó limpo uma sala
exclusivamente reservada à única pessoa verdadeiramente importante
até que um dia eu para sempre me veja disperso no vento e não passe
talvez de um secundaríssimo instrumento na complexa e simples orquestra
do vento
ruy belo
toda a terra
todos os poemas III
assírio & alvim
2004
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