30 julho 2008
sophia de mello breyner andresen / no tempo dividido
Pelas tuas mãos medi o mundo
E na balança pura dos teus ombros
Pesei o ouro do Sol
E a palidez da Lua.
sophia de mello b. andresen
no tempo dividido
caminho
2003
29 julho 2008
rené char / partilha formal
XL
Atravessar com o poema a pastoral dos desertos, o sacrifício às fúrias, o fogo bolorento das lágrimas. Correr atrás dele, implorar-lhe, injuriá-lo. Identificá-lo como sendo a expressão do nosso génio ou ainda o ovário esmagado da nossa penúria. Por uma noite irromper atrás dele, finalmente, nas núpcias da romã cósmica.
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000
28 julho 2008
jean cocteau / o anjo heurtebise
VIII
Com pés de animal azul celeste,
Chegou o anjo Heurtebise. Estou só
Todo nu sem Eva, sem bigode
Sem mapa.
As abelhas de Salomão
Debandam, porque me é difícil comer o mel
De tomilho amargo, o meu mel dos Andes.
Em baixo, esta manhã o mar copia
Cem vezes o verbo amar. Anjos de algodão
Sujos, indecentes
Mungem na erva os úberes das grandes
Vacas geográficas.
jean cocteau
o anjo heurtebise
ouolof
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997
27 julho 2008
douglas dunn / à janela da noite
A noite chocalha de pesadelos.
Crianças choram nas casas amontoadas,
Um homem apodrece a ressonar.
De pés silenciosos, guardas experimentam portas.
Passadas tornam-se pessoas à luz de candeeiros.
Bêbedos regressam de paródias,
Soando a garrafas vazias e velhas cantigas.
As raparigas voltam para casa,
O prazer nelas ensurdece-me.
Trotam como póneis
E desaparecem por entre camas brancas
À beira da noite.
Todas as janelas se abrem na noite escaldante,
E os que não têm sono, fumando no escuro,
Fazendo pequenas luzes rubras junto à boca,
Contam os anos dos casamentos.
douglas dunn
leituras poemas do inglêstrad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993
24 julho 2008
citações - virgínia woolf
(1920)
Segunda, 25 de Outubro (primeiro dia da hora de Inverno)
Porque será a vida tão trágica?, tão semelhante a uma pequena faixa de passeio sobre um abismo. Olho para baixo; sinto vertigens; não sei se vou conseguir caminhar até ao fim. Mas porque sentirei eu isto? Agora que o digo já não o sinto. Tenho a lareira acesa, vamos à Beggar’s Opera. Só que isto paira em mim; não posso fechar os olhos a isto. É uma sensação de impotência: a sensação de não estar a realizar nada. Aqui estou eu, em Richmond, e, como uma lanterna no meio de um campo, a minha luz esfuma-se na escuridão. A melancolia diminui à medida que vou escrevendo. Então porque não escrevo eu mais vezes sobre isto? Bom, a vaidade proíbe-mo. Quero ser um êxito até aos meus próprios olhos. Contudo, este não é o fulcro da questão. É que não tenho filhos, vivo afastada dos amigos, não consigo escrever bem, gasto muito dinheiro em comida, envelheço – dou demasiada importância aos quês e porquês; dou demasiada importância a mim mesma. Não gosto que o tempo esmoreça. Se assim é, então trabalha. Pois é, mas o trabalho cansa-me logo – só posso ler um bocadinho, uma hora a escrever e já não posso mais. Ninguém vem para aqui entreter-se um bocado. Se isso acontece, zango-me. Ir a Londres é um esforço enorme. Os filhos da Nessa crescem e não posso tê-los cá para o lanche, nem levá-los ao Jardim Zoológico. O dinheiro para os meus alfinetes não dá para muito. Contudo, tenho a certeza de que estas coisas são triviais: é a própria vida, penso eu por vezes, que é assim tão trágica para esta nossa geração – não há um cabeçalho de jornal que não tenha um grito de agonia de alguém. Esta tarde foi o MeSwiney, e a violência na Irlanda; ou então é uma greve. Há infelicidade em todo o lado; está mesmo atrás da porta; ou há estupidez, o que é pior. Mesmo assim, não consigo arrancar este espinho. Sinto que voltar a escrever o Jacob’s Room me vai fazer recuperar a fibra. Acabei o Evelyn: mas não gosto do que escrevo agora. E apesar de tudo isto como sou feliz – se não fosse esta sensação de haver uma faixa de passeio sobre um abismo.
virgínia woolf
diário primeiro volume 1915-1926
trad. maria josé jorge
bertrand editora
1985
22 julho 2008
salsugem
há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu....como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas esperando o mar
e a longitude do amor embarcado.....
....por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite...
....os dias lentíssimos....sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta.... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci.... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão....
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me
uma pérola no coração. mas estou só, muito só,
não tenho a quem a deixar.)
.... um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala á minha porta....
.... inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite
a felicidade.
al berto
salsugem
contexto
1984
luto
atravessava a morte
com a lentidão rigorosa dos amantes
e voltava
voltava sempre
trazia em pedaços de papel
coisas cada vez maiores
que já só podia arrumar no coração
20 julho 2008
eu queria descrever
Eu queria descrever a mais simples das emoções
alegria ou tristeza
mas não como outros o fazem
invocando raios de sol ou chuva
Eu queria descrever a luz
que cresce dentro de mim
mas que não se assemelha
a nenhuma estrela
porque não é tão brilhante
nem tão pura
e é incerta.
Eu queria descrever a coragem
sem arrastar um leão de pó atrás de mim
e a ansiedade
sem agitar um copo cheio de água
dito de outro modo
daria todas as metáforas
em troca de uma só palavra
do meu peito arrancaria uma costela
por uma só palavra
sufocada dentro das fronteiras
da minha pele
mas aparentemente isso não é possível
e para dizer apenas – eu amo
ando às voltas como um louco
apanhando pássaros e pássaros com as mãos
e a minha ternura
que afinal não é feita de água
pergunta à água por um rosto
e a raiva
diferente do fogo
pede ao fogo
uma língua eloquente
e nada é nítido
e nada é inteiramente nítido
em mim
cavalheiro de cabelos brancos
separação de uma vez para sempre
e disse
isto está no poema
isto é o objecto
caímos no sono
com uma mão debaixo da cabeça
e a outra numa pilha de planetas
os nossos pés abandonam-nos
e provam a terra
com as suas raízes subtis
que despedaçamos dolorosamente
na manhã seguinte
zbigniew herbert
selected poems
ecco press
1986
tradução de miguel gonçalves
a partir da versão inglesa feita por czeslaw milosz e peter dale scott
17 julho 2008
andre breton e paul éluard / a morte
Um chamalote de campo esconde na sua trama uma fornalha de insectos. De mão em mão, o furão passa com a forma de escorpião na nassa da maldade. Vem florinha intraduzível, por aqui (ela esconde-se). Eh lá! motorista (ele desce do seu lugar e foge). Espere, lembrava-me porém de um nome… Uma pá de diamantes a quem me trouxer de volta ao cão que era!
E nada esqueço. Há ainda uma garrafa de sangue para quem se compromete a viver com as imagens que eu não quis.
Sinto-me terrivelmente melhor. As vãs palavras que me tinham posto na boca começam a fazer o seu efeito. Os meus semelhantes abandonam-me. Com a mão na juba dos leões, vejo o horizonte enganador que pela última vez me vai mentir. Tiro vantagem de tudo e das suas mentiras com forma de lixo e daquele pequeno rodeio que faz ao passar sempre por minha casa.
Nada me serve tão bem como quando ele me encontra.
Mesmo assim que exame estúpido! Ter-me-ia saído bem, com todo o rigor sem aquela pequena pergunta de história. Felizmente não me tinha apresentado.
As viagens sempre me levaram demasiado longe. A certeza de chegar nunca me pareceu mais do que a centésima campainhada a uma porta que não se abre.
O próprio sofrimento era possuído. Quando esta mulher com corpo de gelosia veio abanar-se no meu leito, compreendi que devia ter frio. Tive frio. Mas a juventude velava: na verdade ainda mal tinha sofrido. Devo confessar que fiquei com a sua cabeça sobre o meu peito. Além, aquela claridade, é a sua forma nocturna que não pode desaparecer e sustenta a noite e procura a luz onde já não existo.
De resto, o poço fica todo em superfície. O caracol do Verão nos cabelos da Primavera explicou-me demoradamente o que á a promessa. A chuva bestial trazia nas suas antenas o progresso que coxeia no musgo. E canta sempre o capricho taciturno e ameaçador que tudo deixa perecer. O som da sua voz é uma cicatriz.
Cá está a grande praça gaga. Os carneiros chegam a toda a velocidade, em andas.
andre breton e paul éluarda imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972
13 julho 2008
é o vento que conversa
é o vento que conversa
nos astrais rudes da tua voz.
o perfil é terra sem alma.
acuras as esperanças
inflamam-se em labirintos.
o abismo é ensejo
no sorriso da ironia
um nome estranho demove o grito
saído das costas coagidas.
puro é o espaço úbere
no silencioso vulto
que louco repete
supostas virtudes
o espanto é figura na voz
de rostos sem nomes
coroados de leveza
ermo na noite, o vento irrompe
e é o impulsor do corpo!
l.maltez
11 julho 2008
je vous écris d´un pays lointain
5
Escrevo-lhe do fim do mundo. É preciso que o saiba. Amiúde as árvores tremem. Apanham-se as folhas. Têm uma imensa quantidade de nervuras. Mas de que servem? Não há mais nada entre elas e a árvore, e dispersamo-nos, incomodados.
Será que a vida na terra não poderia prosseguir sem vento? Ou será preciso que tudo trema sempre, sempre?
Há também tumultos subterrâneos, e dentro de casa, como raivas que surgissem à nossa frente, como seres severos que quisessem arrancar confissões.
Não se vê nada, como se importasse muito pouco ver. Nada, e todavia treme-se. Porquê?
henri michaux
(escrevo-lhe de um país distante, 1942)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999
10 julho 2008
giánnis ritsos / testamento
Disse: creio na poesia, no amor, na morte,
e por isso mesmo creio na imortalidade. Escrevo um verso,
escrevo o mundo; existo; existe o mundo.
Da ponta do meu dedo mínimo corre um rio.
O céu é sete vezes azul. Esta pureza
é de novo a primeira verdade, a minha última vontade.
giánnis ritsos
antologia
tradução de custódio magueijo
fora do texto
1993
08 julho 2008
o medo da loucura
O medo da loucura. Ver a loucura em todas as emoções que se esforçam sempre para a frente e que nos fazem esquecer de tudo o resto. Que é, então, a não loucura? A não loucura é ficar parado, de pé, como um mendigo à soleira da porta, ficar ao lado da entrada, apodrecer e cair. Mas P. e O. são de facto loucos repugnantes. Deve haver loucuras maiores do que aquela que os imortaliza. O que é repugnante é, talvez, este inchar de pequenos loucos na grande loucura. Mas Cristo não apareceu aos fariseus precisamente á mesma luz?
(…)
franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986
07 julho 2008
progressos na investigação do caos
Esteja à vontade,
trate-me só por eu
ou omita-me de todo.
Afinal ninguém sabe ao certo
onde começa o próximo.
Poderá dispersar-se,
mas permaneça deitado.
Feche os olhos
e não ouça nada.
Quando nada sentir,
tem de sentir o que sente.
Ou será que também é daqueles
que sangram a cada tiro?
O meu conselho é gorduras vegetais
e inteligência animal.
No entanto, tudo com medida
e sempre de cabeça inclinada.
O resto é bastante simples.
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994
04 julho 2008
narração
Este homem caminha a chorar
ninguém sabe dizer porquê
às vezes pensam que são os amores perdidos
como aqueles que tanto nos atormentam
à beira-mar no verão com os gramofones.
A outra gente cuida dos seus trabalhos
papéis intermináveis crianças que crescem, mulheres
com dificuldades em envelhecer
ele tem dois olhos como papoilas
como primaveris papoilas cortadas
e duas pequenas fontes na cavidade dos olhos.
Caminha pelas estradas nunca se deita
galgando pequenos quadrados no dorso da terra
máquina de um tormento infindo
o qual acabou por não ter importância.
Alguns outros ouviram-no falar
sozinho enquanto passava
de espelhos quebrados anos antes
de figuras quebradas dentro de espelhos
que já ninguém pode juntar.
Outros ouviram-nos dizer do sono
imagens de horror no limiar do sono
rostos insuportáveis de ternura.
Habituámo-nos a ele bem arranjado e tranquilo
acontece apenas que caminha a chorar continuamente
como os salgueiros à beira do rio que vês do comboio
quando acordas mal disposto numa alba cheia de nuvens.
Habituámo-nos a ele não representa nada
como todas as coisas às quais vocês se habituaram
e falo-vos dele porque não encontro
nada a que vocês não estejam habituados;
as minhas vénias.
yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
03 julho 2008
edmund white
a vida privada de um rapaz
(...)
Não, do que eu gostava era do budismo dos primeiros tempos
do Hinayana, daquelas austeras instruções que conduziam a
uma extinção do desejo (em sânscrito, nirvana significa «extinguir»,
como «extinguimos» a vela de uma chama). Sentia uma grande
afinidade com esta religião que odeia a vida de uma forma muito curiosa,
que nos ensina que não temos alma e que o eu não passa
de um depósito de bagagens onde foram guardados estes e
aqueles embrulhos ou pacotes (com as etiquetas de emoções,
sensações, memórias e assim por diante), os quais não tardarão
a ser recolhidos por diferentes proprietários, um esvaziamento
que deixará o depósito de bagagens ditosamente vazio.
Este esvaziamento, este aniquilamento, é o que o cristão mais teme,
mas o que o budista mais veementemente deseja - ou desejaria,
se o desejo não fosse precisamente aquilo que tem de ser extirpado.
O desejo - a ânsia de sexo, dinheiro, fama, segurança - acorrenta-nos
ao mundo e condena-nos à reencarnação , «o ciclo da reencarnação»,
que eu imaginava como uma roda a que o pecador era bem atado
e estirado, a roda que o esmagava à medida que rodava, mas que,
crueldade das crueldades, não o matava nunca.
Sentia a necessidade de me libertar do desejo. Não devia querer nada.
Não devia sentir afectos. Acima de tudo, nada de atracções.
Devia renunciar a toda a esperança, planos, felizes expectativas.
Devia estudar o esquecimento. Devia dar cama e mesa ao silêncio
e pagar propinas ao vazio. Mesmo a mais ténue luzinha de desejo
devia ser apagada. Todos os fios deviam ser arrancados
até que todos os mecanismos deixassem de funcionar
e todos os ponteiros apontassem para zero.
edmund white
a vida privada de um rapaz
trad. josé vieira de lima
publicações dom quixote
1996
(...)
Não, do que eu gostava era do budismo dos primeiros tempos
do Hinayana, daquelas austeras instruções que conduziam a
uma extinção do desejo (em sânscrito, nirvana significa «extinguir»,
como «extinguimos» a vela de uma chama). Sentia uma grande
afinidade com esta religião que odeia a vida de uma forma muito curiosa,
que nos ensina que não temos alma e que o eu não passa
de um depósito de bagagens onde foram guardados estes e
aqueles embrulhos ou pacotes (com as etiquetas de emoções,
sensações, memórias e assim por diante), os quais não tardarão
a ser recolhidos por diferentes proprietários, um esvaziamento
que deixará o depósito de bagagens ditosamente vazio.
Este esvaziamento, este aniquilamento, é o que o cristão mais teme,
mas o que o budista mais veementemente deseja - ou desejaria,
se o desejo não fosse precisamente aquilo que tem de ser extirpado.
O desejo - a ânsia de sexo, dinheiro, fama, segurança - acorrenta-nos
ao mundo e condena-nos à reencarnação , «o ciclo da reencarnação»,
que eu imaginava como uma roda a que o pecador era bem atado
e estirado, a roda que o esmagava à medida que rodava, mas que,
crueldade das crueldades, não o matava nunca.
Sentia a necessidade de me libertar do desejo. Não devia querer nada.
Não devia sentir afectos. Acima de tudo, nada de atracções.
Devia renunciar a toda a esperança, planos, felizes expectativas.
Devia estudar o esquecimento. Devia dar cama e mesa ao silêncio
e pagar propinas ao vazio. Mesmo a mais ténue luzinha de desejo
devia ser apagada. Todos os fios deviam ser arrancados
até que todos os mecanismos deixassem de funcionar
e todos os ponteiros apontassem para zero.
edmund white
a vida privada de um rapaz
trad. josé vieira de lima
publicações dom quixote
1996
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