30 setembro 2023

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
337
 
A minha poética do real manda-me que o diga. Mas o que vêem os meus olhos? O melhor do que eu vejo não se vê olhando. Penso nisso e depois escrevo: como eu gostava de poder acreditar nessa vaidade que a todos deita por terra.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 






29 setembro 2023

ana luísa amaral / a impossível sarça





 
Que mais fazer
se as palavras queimam
e tanta coisa em fumo em tanta coisa
sarças ardentes do avesso
o fogo em labaredas que mais
fazer
 
Que mais fazer
se nem a água tantas vezes
descrita        abençoada
mas de mais e cristã
também castigo
 
Mas como nem castigo
nem as nuvens de fumo na sarça
do avesso
se tudo no avesso
das palavras
 
que não chegam
– mas cegam
 
 
ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011
 


 


28 setembro 2023

wislawa szymborska / sorrisos

 
                                                              
 
Mais alma põe o mundo em ver do que em ouvir.
Os homens de estado têm que sorrir.
Sorrir é sinal de que mantêm a calma.
Seja o jogo ínvio, os interesses outros,
incerto o final, é sempre um consolo
ver a dentadura branca e cordial.
 
Têm que gentis mostrar os seus rostos,
nas salas de encontro, lajes de aeroportos.
Moverem-se lestos, parecerem felizes.
Este acolhe aquele, diz adeus ao outro.
Uma cara risonha é sempre precisa
para o ajuntamento, para a objectiva.
 
Os dentistas, tratando os diplomatas,
são o garante de triunfos espantosos.
Caninos fidedignos, condignos incisivos,
não podem faltar nos transes perigosos.
Os tempos não vão ainda de feição
a que se possa ver nas faces uma simples tristeza.
 
Pensa quem sonha, que a humanidade fraterna de certeza
há-de mudar o mundo na terra dos sorrisos.
Eu cá duvido e, sejamos mais precisos, os estadistas
não deviam rir-se assim e dar tanto nas vistas.
Só às vezes: é primavera, é outono,
sem crispações nem urgência escusada.
É triste por sua natureza o ser humano.
A minha esperança é vê-la um dia revelada.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 




27 setembro 2023

wallace stevens / mulheres vulgares



 

Então da pobreza delas se ergueram,
Dos catarros secos, e para as guitarras
Esvoaçaram
Através dos muros do palácio.
 
Atiraram para trás a monotonia,
Distraídas da sua penúria, e, indolentes,
Abarrotaram
Os átrios nocturnos.
 
Os camarotes envernizados repletos ali
Murmuravam zia-zia e a-zia, a-zia.
O luar
Defraudava os candelabros.
 
E os vestidos frios que usavam,
Na vápida neblina das janelas de sacada,
Ficavam sossegados
Enquanto inclinadas observavam
 
Dos peitoris das janelas os alfabetos
Beta b e gama g,
Estudando
Os arabescos oblíquos
 
Do céu e do celestial argumento.
E aí leram acerca do leito nupcial.
Ti-lili-oh!
E leram longamente.
 
Os magros guitarristas nas cordas
Arranhavam um-dia e um-dia, um-dia.
O luar
Ergueu-se no chão de areia.
 
Quão nítidos se fizeram os penteados,
A pedra de diamante, a pedra de safira,
As lantejoulas
Dos finos leques!
 
Insinuações de desejo,
Conversa pujante, idêntica em todas,
Quitação gritada
Aos átrios escuros.
 
Então da pobreza delas se ergueram,
Das guitarras secas, e para os catarros
Esvoaçaram
Através dos muros do palácio.
 
 
 
wallace stevens
harmónio
trad. Jorge fazenda Lourenço
relógio d´água
2006
 



 

26 setembro 2023

william carlos williams / a um discípulo solitário

 
 
Repara, mon cher,
que mais importante é a lua
inclinada
sobre o campanário
do que a sua cor
de rosa nacarado.
 
Mais importante
é o nascer do dia
do que o céu
pálido
como uma turquesa.
 
Mais importantes
são as linhas convergentes
do campanário
que, sombrias
se juntam no zimbório –
repara como
o seu reduzido ornamento
pretende interceptá-las –
 
Tão inútil é o seu afã!
Repara como as linhas convergentes
da agulha hexagonal
se escapam para cima –
recuando, separando-se!
– sépalas
que guardam e contêm
a flor!
 
Repara
como imóvel
a lua cheia
jaz protegida pelas linhas.
É verdade:
nas leves cores
da manhã
 
pedra parda e ardósia
brilham em laranja e azul-escuro.
 
Mas repara
no opressivo peso
do edifício atarracado!
Repara
na claridade de jasmim
da lua.
 
 
 
william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993
 



25 setembro 2023

pedro de queirós tavares / pardaleco

 
 
 
Sou este migalho de aldrabice
que vive nas árvores ocas
(tolhido para não afugentar os pintassilgos)
sempre com os pés para a noite como se a luz me denunciasse:
atentem, ali vai a versão pardaleco do homem possível
Entretenho-me a fazer fogueiras com as mãos
apesar de encarquilhadas de tanto escarafunchar os olhos
o segredo é não esbanjar as pinhas
é tudo o que sei sobre calor
Sou esta batota que escorraça em leque
e só está bem na cama
com o focinho enterrado na própria máscara
de gesso de viúvo de colisão entre comboios
favoreço o musgo
e sou inseparável desta colecção de navalhas imaginárias
não acredito em meias
só em música desgrenhada
Deixo palitos por todo o lado
como um gatuno morto por ser apanhado
cheio de ouro a escorrer-lhe dos dentes
o meu espelho é o vácuo
até te mostrava a barriga não fossem as marcas dos rodados
há uma toupeira no meu estandarte
e uma mulher invisível de bonita
por quem espero
 
 
pedro de queirós tavares
se tens fósforos
fresca / poetria
2023
 



24 setembro 2023

vergílio ferreira / não tenhas pena de ser mortal

 




 

155 – Não tenhas pena de ser mortal e de não conheceres a eternidade. Porque a eternidade está em ti, no momento incrível de te desprenderes do teu corpo, da sua miséria e estrume, e te pensares a ti mesmo e te sentires ser. Ou quando uma imagem de outrora, luminosa, ténue, se abre ao teu imaginar. Ou quando, fulminante, uma obra de arte. Ou quando, violento intenso instantâneo, o todo de uma mulher. Ou quando pela manhã a terra espera em silêncio que o dia vá começar. Ou quando. A eternidade mora em nós e na vida, deixa apenas que ela se diga e te habite. E serás mais do que Deus, cuja eternidade passou.
 
 
vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004




23 setembro 2023

fernando namora / pacto

 
 
Não me estendas a mão
como quem devolve
o que dado não foi.
Quando a deres
a mão já não será tua
mesmo antes de dada ser.
 
É assim que aceito
entrares em mim
sem de ti saíres.
É assim que nos
saberemos tu e eu
sendo um
sem deixarmos
de ser dois.
 
 
 
fernando namora
nome para uma casa
livraria bertrand
1984
 




22 setembro 2023

rui s. magalhães / um rapaz de uma ilha

 



 

um rapaz de uma ilha reparou tardiamente na sua
sombra e procurou um homem velho que lhe disse:
é cedo para lhe teres ódio e há muitas coisas
fora do chão para tentares ainda entender
respondeu o juvenil: mas é negra e persegue-me
vem na manhã atar-me as pernas
vende-me à noite ao horizonte
anuindo, o velho disse: a maneira que há é
correr com força na direcção do meio dia
quando a vires fraca olha o sol a prumo
para que com ele a mates de uma vez e a sua
negrura se vá espalhar ao resto do que tem a nossa ilha
estarás livre por tão preso nela te achares
e o rapaz assim fez
 
 
 
rui s. magalhães
nervo/19 stembro/dezembro 2023
colectivo de poesia
2023
 
 
 

 


21 setembro 2023

arvo mets / ausente

 
 
 
Desvaneço-me na primavera
ou numa multidão
ou numa poça
 
por vezes no azul
 
não faz sentido procurarem-me:
estou bem
 
 
 
arvo mets
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 
 


20 setembro 2023

novalis / a linguagem



 

 

«A linguagem», disse Henrich, «é verdadeiramente um pequeno mundo em sinais e sons. Assim como o Homem a domina, também quereria dominar o grande Mundo e nele poder exprimir-se. E é exactamente nesta alegria de manifestar no Mundo o que lhe é exterior, o poder fazer isso, que é, no fundo, o impulso originário da nossa existência, que reside a origem da Poesia.»
 
 
novalis
fragmentos de novalis
tradução de rui chafes
assírio & alvim
1998



 

19 setembro 2023

antonin artaud / pois o fim é que é o início

 

 


 
Pois o fim é que é o início.
                    E esse fim
                    é aquele mesmo
                    que elimina
                    todos os meios.
 
 
 
antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019






18 setembro 2023

leopoldo maría panero / o suplício

 



 

 
A febre assemelha-se a Deus.
A loucura: a última oração.
Durante muito tempo bebi de um estranho cálice
feito de álcool e fezes
e vi na maré da taça os peixes
atrozmente brancos do sonho.
E ao levantar a taça, digo
a Deus, ofereço-te este suplício
e esta história nascida do sangue
que de todos os olhos brota
como se me ordenasse que beba, como se me ordenasse que morra
para que quando no fim não for ninguém
seja igual a Deus.
 
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019