19 julho 2023

miguel serras pereira / da insónia

 
 
Perdem-se todos os caminhos dessa casa
que não pára ao longe de fechar-se à tua espera
e de novo o cavalo do sono cai exausto
nas areias onde o tempo foi vencido
e as aves de passagem se esquecem de voltar
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
corça 1982
barricada de livros
2022
 





18 julho 2023

yvette k. centeno / primeiro tempo

 
 
 
Os amantes têm de ser terrivelmente inconscientes.
Porque se conhecem o mistério perde-se o sentido e o amor
e apesar de amantes ficam absurdos e cansados.
Assim se diluíram num beijo, momento sem limite dentro deles.
Assim ficaram longas horas estendidos um no outro.
Assim deixaram que os outros, os alheios, corressem de amanhã em amanhã
e só eles ficaram imóveis no passado.
Assim se esqueceram de si próprios, como um relógio muito velho
sem despertador.
Os ponteiros andavam ao contrário e não ultrapassavam nunca a Hora.
 
 
 
yvette k. centeno
opus 1
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019
 



17 julho 2023

sophia de mello breyner andresen / espera

 
 
Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa
 
É então que se vê o passar do silêncio
 
Navegação antiquíssima e solene
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
a noite e a casa
obra poética
assírio & alvim
2015
 

16 julho 2023

mário de sá-carneiro / esta inconstância de mim próprio

 



 
Esta inconstância de mim próprio em vibração
É que me há-de transpor às zonas intermédias,
E seguirei entre cristais de inquietação,
A retinir, a ondular… Soltas as rédeas,
Meus sonhos, leões de fogo e pasmo domados a tirar
A torre de oiro que era o carro da minha Alma,
Transviarão pelo deserto, moribundos de Luar –
E eu só me lembrarei num baloiçar de palma…
Nos oásis depois hão-de se abismar gumes,
A atmosfera há-de ser outra, noutros planos;
As rãs hão-de coaxar-me em roucos tons humanos
Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes…
 
 
 
mário de sá-carneiro
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da
poesia moderna portuguesa
organizada por Herberto helder
assírio & alvim
1985
 




15 julho 2023

a. m. pires cabral / a andorinha ou tudo é relativo

 
 
Da andorinha dificilmente se dirá
que é um animal feroz. Pelo contrário,
convêm-lhe adjectivos como grácil.
 
Mas a grácil andorinha abre
para o mosquito uma boca aterradora.
 
 
 
a.  m. pires cabral
resumo, a poesia em 2009
assírio & alvim
2010





14 julho 2023

luis buñuel / não me parece bem não me parece mal

 




 
Eu creio que por vezes nos contemplam
à nossa frente     atrás de nós     ao nosso lado
uns olhos rancorosos de galinha
mais terríveis do que a água podre das grutas
incestuosos como os olhos da mãe
que morreu no patíbulo
pegajosos como um coito
como a gelatina que os abutres engolem
 
 
Creio que hei-de morrer
de mãos espetadas na lama dos caminhos
 
 
Creio que se nascesse um filho
ele quedar-se-ia eternamente a olhar
as bestas que copulam ao entardecer
 
 
 
luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977
 



13 julho 2023

a. c. swinburne / solidão

 
 
Mar e depois o mar, areia e depois a vastidão de areia,
     Aqui marfim suave, ali fendido e sulcado pelas águas
     Que através de sulcos escorrem suavemente como chuva ou
                                                                                    neve,
Alongando-se solitárias e tranquilas sob o doce
Brilho cinzento dos céus cujo sorriso nas ondas e na praia
     Refulge como o de um homem que sorri por saber
     Que nenhum sonho pode escarnecer da sua fé,
Nem as nuvens se parecerem ao mar ou à terra vivos.
Há um limite para toda esta desolação,
Para estas falésias desfiguradas e mutiladas,
Para estas eminências arruinadas de muralhas minadas pelo
                                                             mar que deslizam
     Para o mar com todos os seus taludes de flores batidas pelo
                                                                                  vento,
Mas felizes por viver, antes que a esperança se aquiete
     Sob o tumulto das sombrias e densas ondas e horas?
 
 
 
a. c. swinburne
poemas
tradução de maria lourdes guimarães
relógio d’ água
2006
 



12 julho 2023

adam zagajewski / a alma

 




 

Tu sabes que não nos é permitido usar o teu nome.
E nós sabemos que és inexprimível,
anémica, muito frágil e suspeita
de misteriosas faltas na infância.
Sabemos que não te é permitido morar agora
nem na música, nem nas árvores do crepúsculo.
Sabemos – ou melhor, assim nos foi dito –
que não existes em lado nenhum.
E no entanto continuamos a ouvir a tua voz fatigada
– no eco, na queixa, nas cartas que nos
escreve do deserto grego Antígona.
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017




11 julho 2023

claudio rodríguez / alta jorna

 



 

Feliz quem um bom dia sai humilde
e segue pelas ruas, como em tantos
dias da sua vida, e não o espera
e, súbito, o que é isto?, olha para cima
e vê, encosta o ouvido ao mundo e ouve,
caramba, e sente içar-se entre os seus passos
o amor da terra, e continua, e abre
a sua oficina real, e nas suas mãos
luz limpo o seu ofício, e no-lo entrega
com o coração porque ama, vai ao trabalho
a tremer como um rapaz que comunga,
mas sem caber na própria pele, e quando
se apercebe finalmente do simples
que foi tudo, e já com a jorna ganha,
volta para casa alegre e sente alguém
a segurar-lhe a aldrava, e tem razão.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019




10 julho 2023

anna akhmatova / elegias do norte

  
(5)
(sobre os anos 10)
 
 
E nenhuma infância cor-de-rosa…
Nem pequenas sardas, nem ursinhos, nem anéis de cabelo,
Nem tias bondosas, nem tios aterradores, nem mesmo
Amigos entre pequenas pedras de rio.
A mim própria desde o próprio início
O sonho de alguém parecia ou o delírio
Ou o reflexo em espelho alheio,
Sem nome, sem carne, sem razão.
Já sabia a lista dos crimes
Que devia cometer.
E eis que, andando qual sonâmbula,
Entrei na vida e assustei a vida:
Diante de mim estendia-se como um prado,
Onde outrora passeava Proserpina,
Diante de mim, sem raízes, sem jeito,
Abriram-se portas inesperadas,
E saíam gentes e gritavam:
«Ela chegou, ela por si própria chegou!»
Mas eu olhava-os com espanto
E pensava: «Perderam o juízo!»
E quanto mais me elogiavam,
Quanto mais me admiravam,
Mais medo me dava neste mundo viver
E mais me apetecia despertar,
E sabia que pagaria muito caro
Na prisão, no túmulo, no manicómio,
Em qualquer lugar onde devem acordar
Os como eu – mas continuava a tortura da felicidade.
 
4 de Julho de 1955
Moscovo
 
 
 
anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003





09 julho 2023

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
228
 
Neo-apocalipse: Quando a população do mundo tiver aumentado tanto que o seu peso ultrapasse todas as leis conhecidas, então tudo se soltará da superfície da terra e os próprios seres que hoje eu me admiro de não ver cair pelo espaço fora irão cair ainda mais infinitamente pelo espaço de não-ser.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006






08 julho 2023

fátima maldonado / tríptico viril

  
1
 
Imigrantes partíamos
Em busca da fortuna
Num barco chamado «Boa Nova».
Suportavas-me em cheio
no peito aberto
um vento em risco
naufragava
onde Tiepolo propusera
outras nuvens.
A quilha abria o mar
que se dobrava.
Era preciso alimentar
um filho
os olhos forçavam
o vestido
e na fímbria da saia
a denúncia das folhas.
Ao entregar-te a sopa
abriu-se-te a camisa
e um rastilho de pele
sitiou-me a cabeça.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
três poemas sacros e um tríptico viril
averno
2021




07 julho 2023

fiama hasse pais brandão / lisboa sob névoa

 



 
Na névoa, a cidade, ébria
oscila, tomba.
Informes, as casas
perdem o lugar e o dia.
Cravadas no nada,
as paredes são menires,
pedras antigas vagas
sem princípio, sem fim.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002