13 setembro 2021

joão miguel fernandes jorge / canção para nenhum caminho

 
 
 
Trabalha nas obras camarárias
à entrada do Passeio Alegre. A mão vigorosa compões a terra.
Afasta-se com um balde, para regressar com a novidade de
um boné de pala vermelha – protege-lhe o
rosto. Vejo-o da varanda. A minha casa
pertence-lhe;
nunca o saberá. Ofereci-lhe, prata envelhecida, o meu tempo.
Não vai suspeitar
que também o meu próprio tempo lhe pertence.
Não terá as palmeiras, a pedra perfeita dos obeliscos à
entrada do romântico passeio. Ele canta –
  o desfazer do exacto tempo passado: o que foi meu
entrego ao abrigo dos seus braços      a inclemência da velhice
apodera-se do oriente eslavo, da sua vida. Na Foz do Douro um dia
 
 
o enganoso dia da fortuna.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004





 

12 setembro 2021

juan ramón jimenez / eu não voltarei

 
4
 
Eu não voltarei. E a noite
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.
 
Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.
 
Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.
 
Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.
 
E tocará esse piano
como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.
 
 
 
juan ramón jimenez
antologia poética
tradução de josé bento
relógio d’ água
1992







11 setembro 2021

a. c. swinburne / tivesse eu sabido

 
 
 
Tivesse eu sabido, quando a vida era como um vento tépido e
                                                                                  feliz,
Brando e ruidoso na aurora e na névoa brilhante do orvalho,
Que havia de chegar o tempo em que, suspirando, os corações
                                                                                diriam:
          «Tivesse eu sabido…»
 
Nem sequer as rosas rindo ao beijarem-se,
Nem, ao sol, o mais encantador riso ondulante do mar,
Teriam vindo fascinar a minha alma para que neles reparasse.
 
Agora o vento é como uma alma desterrada a rezar inutilmente
As preces que não conseguimos ouvir se o coração lhes resiste,
Agora que a minha própria alma, à deriva e perdida como o vento,
                                                                                     suspira:
          «Tivesse eu sabido.»
 
 
 
a. c. swinburne
poemas
tradução de maria Lourdes Guimarães
relógio d’ água
2006

 





 
 
 

10 setembro 2021

anne perrier / toda a vida quotidiana

 



Toda a vida quotidiana
Está ali
Um rosto sob as persianas
Que se descem
O sol suave
Que vai morrer de cabeça para baixo
E o dia debatendo-se
Como uma abelha finíssima
Entre dois dedos
 
 
 
anne perrier
descida brusca de temperatura
alguma poesia suíça
tradução de luís filipe parrado
contracapa
2021

 




 


09 setembro 2021

gottfried benn / ameaça

 
 
Mas sabe-o:
Vivo dias de fera. Sou uma hora de água.
À tarde isto adormece-me as pálpebras como floresta e céu.
O meu amor sabe só poucas palavras:
Tão bem se está junto ao teu sangue.
 
 
gottfried benn
50 poemas
tradução vasco graça moura
relógio d’água
1998








08 setembro 2021

pierre louÿs / a chuva

 
IX
 
Uma chuva miudinha embebeu tudo,
com muita doçura e em silêncio. Ainda chove um pouco.
Vou sair. Abrigar-me sob as árvores. Descalça.,
para não sujar os sapatos.
 
Na primavera, a chuva é deliciosa. Os ramos,
cobertos de flores molhadas, exalam um perfume
que me entontece. Vê-se brilhar ao sol a pele delicada
das árvores.
 
Dá pena ver tantas flores no chão. Tende piedade
das flores caídas. Não devem ser varridas e misturadas
com a lama, mas deixadas para as abelhas.
 
Os escaravelhos e as lesmas cruzam o caminho
por entre as poças de água; não quero pisá-los,
nem assustar o lagarto dourado que se espreguiça
e pisca os olhos.
 
 
 
pierre louÿs
o sexo de ler de bilitis
bucólicas em panfília
trad. maria gabriel llansol
relógio d´água
2010





07 setembro 2021

charles simic / luz de verão

 
 
Gosta de igrejas vazias
À hora azul do amanhecer.
 
As sombras a afastarem-se
Como cortinas de um espectáculo de feira.
 
Os olhos do crucificado
Postos para baixo fixamente
 
Como se visse os pés ensanguentados
Pela primeira vez.
 
 
 
charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018





06 setembro 2021

essma’il kho’i / no eclodir do outono

 
 
 
No eclodir do outono estou de pé.
No eclodir do outono
     – iludir-me-ei, talvez? –
        as folhas, estas ciganas felizes,
            prepararam a festa do levantar do acampamento.
Em todas as asas do vento
     as árvores ergueram chafarizes
        de fogos-de-artifício.
E na algazarra, prenhe de silêncio,
     a alegre fénix das cores e perfumes,
        sobre a frieza e as cinzas da aragem
            eriça sua plumagem.
«Voltarei»
     sussurra.
A sua volta
     é segura.
E contra a morte
     a folha
            se mostra mais forte.
No eclodir do outono estou de pé.
Meus olhos cheiram
Tantas cores verdadeiras
No limiar do perecer e do não-ser
E no meio dos aromas do murchar e do carinho.
O que perece na co resplende
Até onde meu olhar se estende.
E do perfume a cor eu vejo
     no perfume da cor.
Tão leve estou
Que meu Eu à luz e às moscas se parece.
E a suave carícia do ar,
No ciciar da seda do vento nocturno
Pesa, soturno,
     sobre as asas da pomba do meu Eu.
 
E assim
     sou eu,
Que, se soubessem
     Os sábios, os mártires, os santos e Deus,
Saberiam,
Que,
Se é preciso ser,
Assim se precisa ser.
No eclodir do outono
                                       cantarei
Esta certeza mais límpida que o sol:
A morte é apenas um sono.
[…]
E não é a folha
                            que cai.
É a morte que sai
                                em debandada.
E assim a tristeza mais alegre se faz
     que, em meu ânimo e sangue.
        caia uma chuva de estrelas.
E sou eu, de quem o verso se agrada.
 
 
 


essma’il kho’i
trad. kurt scharf
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001





 

05 setembro 2021

antónio osório / o tempo no baloiço pendulava

 
 
O tempo no baloiço pendulava
era infindo, dependente, meu.
Sob a latada o tempo eu conduzia,
ele voava segundo a segundo,
rebanho, sem poeira, desfilava.
 
Quase tocava nos cachos de uva.
Outro tempo infiltrava-se nos bagos,
Chamava pardais, abelhas, cestos vindimos,
e embrandecia, adoçava a sua queda.
 
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982

 




04 setembro 2021

manuel cintra / com o verão

 

                                                                                                                                                                                                                        (com o verão)
 


 
Ali mesmo onde o salitre ano após ano vai beijando o estuque em desejos redondos de espuma seca. Ali onde num segundo entre parêntesis, dois lábios mais quentes do que o ar ambiente se tocam quase sem som, num até logo que podia ser escondido em avenidas de pétalas e fica feito receptáculo, desventrando a rua.
 
A rua, essa carne sulcada de rodas e vestida de janelas, que atravessa por ano tantas estações como qualquer mulher, articula-se rodeando os meus pés de olhares cúmplice, cheios de sola e de varão.
 
Beber o brilho súbito do beijo dos outros. Sentir a ausência de gosto na ausência do beijo que os outros não se dão. Receber a alegria que os tons de luz procuram em cada puxador de porta. A forma opaca e dura de tantas mãos segurando chávenas de café escuro atrás de vidros atrás de horas dentro de mãos.
 
Ia-se dizer uma piada, sente-se o eco, não se chega a rir.
 
(vejo de longe o teu olho pintado. As tuas palavras que entram na tarde, trocam mãos, constroem minutos com casitas de som e outras de silêncio. Depois tocas objectos com ondas nas sobrancelhas e fogem-te os olhos para a luz. Nos teus passos certos, alguma coisa que treme e tornas a segurar, como um volante pequeno.)
 
Enquanto vou contando uma história diferente em cada rosa vermelha. Adquirindo um tanto de optimismo, um tanto de azedume, em doses pouco lógicas, sempre antes de uma rosa e depois de outra.
 
Na música, os meus olhos dão corridas de braços abertos enchendo o chão de passos de todos os formatos, pernas sustendo corpos que seguram olhos lançam corridas e depois se esquecem de lançar. Um riso tímido corta o ar de queima-me. Crianças de pouco tamanho organizam explorações a canteiros e tocam e retocam a terra juntando palmas de mãos.
 
 



manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981





03 setembro 2021

paul éluard / irmãs de esperança

 
 
Irmãs de esperança ó mulheres corajosas
Que contra a morte tendes feito um pacto
O de unir as virtudes do amor
 
Irmãs sobreviventes
Que jogais vossa vida
P’ra que a vida triunfe
 
Aproxima-se o dia ó irmãs de grandeza
Para rir das palavras guerra dor e miséria
E do que foi a dor já nada restará
 
Cada rosto terá seu direito à carícia.
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971





02 setembro 2021

antónio ramos rosa / como se fora aqui

 
 
Como se fora aqui aqui começo
Aqui procuro o gesto de encontrar
onde a procura é febre jovem pressa
a cidade se inclina por um tornozelo lúcido
rodopia a palavra que num lance se espera
o pulso livre martela a luz das têmporas
uma lâmina de água ondula no silêncio
a cidade transpira num corpo desnudado
por uma fenda vivíssima o espaço se ilumina
o poema atravessa o vidro do instante
 
Aqui encontro a chama adormecida errante
 
Como se fora aqui aqui começo
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985





01 setembro 2021

joaquim manuel magalhães / cortei uma folha doutra terra

 
 
Cortei uma folha doutra terra
com que nas noites sem frio saíamos a passear.
Ouvi a tua voz ao telefone, rouca,
no susto de mentir, e foi então
que subiu o perfume da flor
ao arame enferrujado dos sentimentos,
os sentimentos à poeira indecifrável
com que te dizia “já és de novo
a ilusão”, o que não amava,
o que sentado ao carro no arrabalde
me dizia, encolhendo os ombros,
“tudo há-de passar”. E passou.
A porta fechou-se, o som do motor
perdeu-se no ruído monstruoso da avenida.
 
 

joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990