15 novembro 2023

serafín senosiáin / meshieu

  
Ouvi um grito
estranho,
debrucei-me,
e um rapaz
escuro dizia-me adeus
do seu barco.
Com a minha mão ao alto
fiquei mudo.
 
 
 
serafín senosiáin
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997





14 novembro 2023

benjamin péret / pobre trigo

  
O rei dizia ao seu povo
Que cada um pouse um pé no chão
e espere que o outro floresça
E dos pés esticados saíram espigas
belas como um relógio que se engana nas horas
Baloiçavam à cadência dos suspiros do rei
Como um navio antigo
e as suas cabeças entrechocavam-se
com um barulho de esqueleto a descer as escadas de pedra
 
Então considerando que o seu povo estava maduro como um
                                                                             general
o rei ergueu-se no seu trono
esbofeteou a rainha
e sacando da gadanha seu emblema
e picou o seu povo tão picadinho
que o vento levou para sempre
uma nuvem de poeira branca
 
 
 
benjamin péret
sol de bolso
uma antologia de poemas
trad. regina guimarães
contracapa
2023




 

13 novembro 2023

francisco brines / o azul




 

 
     Busquei o azul, perdi a juventude.
Os corpos, como ondas, rompiam-se
em areias desertas. Houve amor
no recanto florido de um jardim
fechado. E quis achar palavras
que alguém pudesse amar, e elas velaram-me.
Estou a chegar ao fim. Cega meus olhos
um desolado azul iluminado.
 
 
 
francisco brines
a última costa
trad. josé bento
assírio & alvim
1997
 



 

12 novembro 2023

adília lopes / maria andrade

  
Maria Andrade
só com o Ciclo Preparatório
e sem saber
o que é um adjectivo
dedica-se ao estudo
da Termodinâmica Generalizada
frequenta mesmo um curso pago
no Centro Paroquial dos Anjos
o professor diz aos alunos
que ao fim de umas tantas lições
o que uma dona de casa
poupa no gás
dá-lhe para pagar o curso
e depois começa a dar-lhe mesmo
para fazer poupança
e investir
é assim que é feita
a auto-avaliação dos conhecimentos
Maria Andrade delicia-se
com a teoria
da água a ferver
do banho-maria
do frigorífico
da panela de pressão
da garrafa termos
(ah as paredes adiabáticas)
da caixa Tupperware
do demónio de Maxwell
gere o arquivo dos virginais tricots
como um sistema
minimizando a entropia dele
ou seja as traças
e a moda
influenciando
o ambiente turbulento de mudança
pelo uso do marketing
e da publicidade
que funciona com a moda
mas não com as traças
 
 
 
adilia lopes
dobra
poesia reunida
a continuação do fim do mundo (19995)
assírio & alvim
2021




11 novembro 2023

henrique risques pereira / saudades

 




 
Para além da muralha de água
há lágrimas
e poemas ciciados ao ouvido
e se diz da enseada sagrada
e do rio que rasga a terra
entre abismos verticais
olhos vítreos de águia ferida.
 
Cada coisa tem um segredo antigo
que a árvore é a floresta
que a gota cintilante é o vasto oceano
e que tu estás em tudo e tudo está em ti
e para sempre guardado em ti.
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003


10 novembro 2023

carlos edmundo ory / os meus mortos

 




 
Se perguntas por meu pai
(que se chamava Eduardo)
se perguntas por meu pai
direi que está deitado
 
Se perguntas por meu avô
(que se chamava Nicolau)
se perguntas por meu avô
direi que está dormindo
 
E se morre minha mãe
e se minha avó morre
não me perguntes que fazem
direi que estão sonhando
 
 
carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997



09 novembro 2023

jorge velhote / fria é a água na escuridão

 





 
.13.
 
Há uma árvore. Ignoras o seu nome
 
ou o vento que faísca nos seus ramos
 
como um braço contra a morte.
 
Há a água. Subitamente despedindo
 
contra o vento os caminhos
 
o canto altíssimo das aves.
 
E nos teus pulmões germina uma palavra
 
como um testamento – uma página
 
cerzindo a fotografia
 
de uma bala.
 
 
 
jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018
 





08 novembro 2023

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
I
 
De altos senhores sou escravo. Ordenavam eles
que antes da partida inevitável,
a última, a sem rota ou aventura,
vase, no debuxo perene da palavra,
para os meus, o que na vida fiz
para merecê-la. Eis porque estando o sol
no último compasso e já passada
a casa do escaravelho, o azul estaca
como um potro assustado, e a cerviz dobro
em mais este trabalho e obrigação.
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021
 


07 novembro 2023

josé gomes ferreira / pinhal

 




I

 

Poesia
– sabor próprio das palavras alheias
que se perderam dos objectos
naufragados na saliva das areias.
 
 
josé gomes ferreira
poesia V
pinhal - 1960
portugália
1973



06 novembro 2023

agustina bessa-luís / gostos




  

Um dos grandes factores do diálogo nos restaurantes e em todos os espaços gregários, é a discussão sobre os gostos, embora se saiba que não se discutem. Vendo bem as coisas, os gostos são um morbo cultural que justifica o tempo perdido em discuti-los. Vive-se muito de desinteligências menores, e por isso é que se alimentam cismas, birras, contrariações e fronteiras de todos os tipos. Os Portugueses não são muito caricatos nisso de odiar e aborrecer; talvez porque onde outros povos têm barreiras entre estado e costumes extremamente sádicos entre principados, nós temos passagens de nível. Melhor assim.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008


 

05 novembro 2023

joão habitualmente / pedras

 




 

 
Há pedras habitadas. Pássaros que não migram
só para não sofrerem a partida.
 
Esperam um ano a fio pelo regresso dos companheiros.
 
 
 
joão habitualmente
um dia tudo isto será meu
(uma antologia)
porto editora
2019


04 novembro 2023

luis cernuda / onde habite o esquecimento





 
Onde habite o esquecimento,
Nos vastos jardins sem madrugada;
Onde eu seja somente
Lembrança de uma pedra sepultada entre urtigas
Sobre a qual o vento foge à sua insónia.
 
Onde o meu nome deixe
O corpo que ele aponta entre os braços dos séculos,
Onde o desejo não exista.
 
Nessa grande região onde o mar, anjo terrível,
Não esconda como espada
A sua asa em meu peito,
Sorrindo cheio de graça etérea enquanto cresce a dor.
 
Além onde termine este anseio que exige um dono à sua imagem,
Submetendo a sua vida a outra vida.
Sem mais horizonte que outros olhos frente a frente.
 
Onde as dores e alegrias não sejam mais que nomes,
Céu e terra nativos em redor de uma lembrança;
Onde ao fim fique livre sem eu mesmo o saber,
Dissolvido em névoa, ausência,
Ausência leve como a carne de uma criança.
 
Além, além, longe;
Onde habite o esquecimento.
 
 
 
luis cernuda
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985
 



 

03 novembro 2023

arsenii tarkovskii / vida, vida

 




 

 

1.
 
Não acredito em pressentimentos, nem agoiros
Me assustam. Não evito a calúnia
Ou o veneno. Não há morte sobre a terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há
Que ter medo da morte aos sete nem aos setenta. O real e a luz
Existem, mas não a morte ou a treva.
Viemos hoje à enseada,
E o cardume da imortalidade veio
Quando eu puxava as redes.
 
 
arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987