14 janeiro 2014

hans-ulrich treichel / brecht no banho



Lá está o peito
chato, algo cavado,
gira a espuma em finos
flocos cinzentos, um dedo
preto do pé, um leve assobio, uma
tosse, o charuto:
Brecht no banho.

Em cuecas, é certo,
e no entanto lava-se, com
manha, mesmo aqui.



hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994



13 janeiro 2014

alexandre o'neill / amigo



Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra amigo!

  
"Amigo" é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

"Amigo" (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
"Amigo" é o contrário de inimigo!
"Amigo" é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

"Amigo" é a solidão derrotada!
"Amigo" é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
"Amigo" vai ser, é já uma grande festa!



alexandre o'neill
tomai lá do o'neill, uma antologia
círculo de leitores
1986




12 janeiro 2014

antónio ramos rosa / uma pausa, não de plumas, mas elástica


              
                 1 
  
 Uma pausa, não de plumas, mas elástica, 
 que demorasse em si a paz ardente 
 e o ardor profundo de uma alta instância. 
 Que fosse o esquecimento na folhagem 
 e a espessa transparência da matéria. 
 O pulso pronunciaria a amplitude 
 do instante inocente. A obra acender-se-ia 
 na inteligência dos signos mais aéreos. 
  
                 2 
  
 A inadvertência pode ser um prelúdio carnal 
 na volúvel leitura de quem adormeceu. 
 O sono dá ao sangue o ócio e as cores do enxofre. 
 Por uma forma ausente a matéria ramifica-se 
 na insolência branda de umas ruínas perfeitas. 
 Um aroma rebenta da axila negra de um animal de vidro. 
 Como um veleiro de fogo uma cabeleira ondula. 
 A garganta do mar atira os seus pássaros de espuma. 
 Uma rapariga de pedra caminha entre os arbustos de fogo. 
 É a abundância da origem e o seu orvalho azul. 
 São as armas vegetais sobre as janelas da terra. 
 É a frescura do vidro nas cintilantes sílabas. 
  
                 3 
  
 Na justa monotonia do meio-dia 
 oiço o prodígio do repouso e a paixão adormecida. 
 O concêntrico sopro imobiliza-se. É uma lâmpada 
 de pedra fulgurante. Tudo é nítido mas ausente. 
 O mundo todo cabe no olvido e o olvido é transparência 
 de um denso torso que a nostalgia acende. 
 No silêncio sinto numa só cadência 
 a vociferação e o tumulto das pálpebras e dos astros. 
 Pelas veias o fogo da cal é branco e liso 
 e a mais remota substância culmina num rumor redondo. 



antónio ramos rosa
a rosa esquerda
1991




11 janeiro 2014

fiama hasse pais brandão / da figura das coisas




Hoje, os vendavais
que dão novos ângulos
à figueira nua de folhas,
cujos troncos se desencontram
como riscos feitos no azul
pelo Deus ignoto,
começaram, ou recomeçaram,
o que é o mesmo,
porque ano após ano,
o deus risca nos céus
traços diversos únicos.



fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002



08 janeiro 2014

josé agostinho baptista / espelho demente


Antes que chegue ao fim diga-se por que param os olhos 
diante da luz.
Excessivo fulgor, um espelho demente? 
Ouve-se um grito no interior dos céus quando a amendoeira 
despenha as suas pérolas.


josé agostinho baptista
biografia
assírio & alvim
2000



07 janeiro 2014

wallace stevens / as cortinas na casa do metafísico


Acontece que a ondulação destas cortinas
Está cheia de largos movimentos; como o lento
Esvaziar da distância; ou como nuvens
Inseparáveis das suas tardes;
Ou a mudança da luz, o gotejar
Do silêncio; o sono largo e a solidão
Da noite, em que todo o movimento
Está para alem de nós, à medida que o firmamento,
Subindo e descendo, desvela
A imensidão final, ousada visão.


wallace stevens
harmónio
trad. jorge fazenda lourenço
relógio d´água
2006



05 janeiro 2014

antónio gedeão / forma de inocência


Hei-de morrer inocente
exactamente
como nasci.
Sem nunca ter descoberto
o que há de falso ou de certo
no que vi.


Entre mim e a Evidência
paira uma névoa cinzenta.
Uma forma de inocência,
que apoquenta.


Mais que apoquenta:
enregela
como um gume
vertical.
E uma espécie de ciúme
de não poder ver igual.



antónio gedeão




04 janeiro 2014

conceição riachos / levitação




               a madrugada veio lenta
               em fios serenos e pássaros doces
     (luz tecida e destecida nos buracos redondos
                              da persiana)
                              sentinela branda


     sons leves                      reticentes
               trocam o passo ao poema a nascer



     conceição riachos
     “oficina de poesia”
      nr. 3 junho 2004
      coimbra



03 janeiro 2014

luis amorim de sousa / um outro que não eu



um outro que não eu
bem mais voraz
concreto
e subtil
te poderá depois talvez contar
destes momentos cúmplices de agora
perfeitos na intimidade
da vaga dor de cabeça

não te posso adiar por minha culpa
não te posso invocar
por excesso de altruísmo ou de rancor

arquitectura fria
dum gesto quase orgulho
do que já lá não coube
se nutre a tua imagem

mais fácil do que tudo
seria perdoar-me

perde-se o vício
por falta de virtude



luis amorim de sousa
signo da balança
1968




02 janeiro 2014

antónio franco alexandre / na lista



Na lista dos teus fins venho no fim
de uma página nunca publicada,
e é justo que assim seja. Embora saiba
mexer palavras, e doer de frente,
e tenha esse talento conhecido
de acordar de manhã, dormir à noite,
e ser, o dia todo, como gente,
nunca curei, como previa, a lepra,
nem decifrei o delicado enigma
da letra morta que nos antecede.
Por muito te querer, talvez pudesses
dar-me um lugar qualquer mais adiante,
despir-te de pudor por um instante
e deixá-lo cobrir-me como um manto.



antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996



01 janeiro 2014

fernando pessoa / livro do desassossego



"Quando ponho de parte os meus artifícios e arrumo a um canto, 
com um cuidado cheio de carinho  - com vontade de lhes dar beijos
- os meus brinquedos, as palavras, as imagens, as frases - 
fico tão pequeno e inofensivo, tão só num quarto tão grande e tão triste,
tão profundamente triste!...

Afinal eu quem sou, quando não brinco? 
Um pobre órfão abandonado nas ruas das sensações, 
tiritando de frio às esquinas da Realidade, 
tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da Fantasia. 
De meu pai sei o nome; disseram-me que se chamava Deus,
mas o nome não me dá ideia de nada. 
Às vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e choro, 
e faço-me uma ideia dele a que possa amar...
Mas depois penso que o não conheço, que talvez ele não seja assim, 
que talvez seja nunca esse o pai da minha alma...

Quando acabará isso tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, 
e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto as mãos da noite 
por entre os meus farrapos? Se um dia Deus me viesse buscar 
e me levasse para a sua casa e me desse calor e afeição...
Às vezes penso isto e choro com alegria a pensar que o posso pensar...
Mas o vento arrasta-se pela rua fora e as folhas caem no passeio...
Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum...
E de tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, 
que nenhum Amor quis para seu filho adoptivo, 
nem nenhuma Amizade para seu companheiro de brinquedos.

Tenho frio de mais. 
Estou tão cansado no meu abandono. 
Vai buscar, ó Vento, a minha Mãe. 
Leva-me na Noite para a casa que não conheci...
Torna a dar-me, ó Silêncio imenso, a minha ama 
e o meu berço 
e a minha canção com que eu dormia..."



fernando pessoa
livro do desassossego
por bernardo soares
ática
1982




31 dezembro 2013

ruy belo / a mão no arado



Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente


ruy belo
o problema da habitação
1962




30 dezembro 2013

andre breton / a respeito de divindades



                                                        A Louis Aragon


«Pouco antes da meia-noite perto do cais.
«Se uma mulher desgrenhada te seguir não te importes.
«É o azul. Nada deves temer do azul.
«Haverá grandes rendas de seda numa árvore.
«O campanário da aldeia de cores esbatidas
«Vai servir-te de ponto de referência. Aproveita a ocasião,
«Não esqueças. O geyser escuro que lança contra o céu rebentos de feto
«Saúda-te.»

                 A carta lacrada com três peixes
Passava agora na luz dos subúrbios
Como um cartaz de domador.
                                          De resto
A bela, a vítima, aquela a quem chamavam
No bairro a pequena pirâmide de resedá
Descosia só para si uma nuvem tal qual
Um saquitel de piedade.
                                   Mais tarde a armadura branca
Que se ocupava entre outros dos trabalhos domésticos
Cada vez mais à vontade agarrava com força
O menino da concha, aquele que ia ser...
Mas silêncio. Um braseiro já dava ensejo
No seu seio a um arrebatador romance de capa
E espada.
              Sobre a ponte, à mesma hora,
Assim a cabeça de gata do orvalho baloiçava.
A noite, - e as ilusões estariam perdidas.


Eis os frades brancos que voltam das vésperas
Com uma grande chave por cima da cabeça.
Eis os arautos pardos; eis por fim a carta
Ou os lábios: meu coração é um cuco de Deus.

Mas enquanto ela fala, só fica uma parede
A bater contra um túmulo como uma vela mestra.
A eternidade procura um relógio de pulso.
Pouco antes da meia-noite perto do cais.


andre breton
clair de terre, 1923
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994