26 fevereiro 2025

mar becker / caderno dos fins



 

 
outros amaram em mim a mulher
 
a ti peço para amar
a sombra
 
ama-me os fios de cabelo que caem
o farelo à ponta dos dedos
a poeira das unhas recém-lixadas
 
ama na minha boca a palavra que nunca é dita
 
ama os meus livros aquele que achei num sebo
e que decidi comprar só pela dedicatória
datada de junho de 1732
 
ver a caligrafia de um morto desejando boa leitura
a outro morto
duas mãos se encontrando assim, cobertas
de esquecimento e pó
 
 
 
mar becker
wladimir vaz (fotografia)
a mulher submersa
urutau
2021





 

25 fevereiro 2025

alejandra pizarnik / gestos para um objecto

 
 
               
Em tempo adormecido, um tempo como uma luva sobre um tambor.
 
Os três que em mim contendem ficámos no móvel ponto fixo e não somos nem um é nem um estou.
 
Antigamente os meus olhos procuraram refúgio nas coisas humilhadas, desamparadas, mas em amizade com os meus olhos eu vi, vi e não aprovei.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
el infierno musical (1971)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020


 

24 fevereiro 2025

amalia bautista / um tempo feliz

 


 
 
Era um tempo feliz. Naquele tempo
sustentavam-me as pernas o andaime
que sustentava e encerrava o mundo.
Não houve ninguém mais simples naquele tempo,
ninguém mais inocente do que eu mesma.
Não houve nenhum sinal que me falasse
da dor, da ansiedade e do desastre.
 
 
 
amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013




23 fevereiro 2025

eunice de souza / temporários

 
 
 
Casas temporárias para os vivos
Temporária a tenda para o casamento
Temporário o transporte
para a última viagem
Temporário o chão
que pisamos.
 
 
 
eunice de souza
coração de abacate
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2018





 

22 fevereiro 2025

antonia pozzi / reflexos

 
 
Palavras – vidros
que infielmente
reflectis o meu céu –
 
pensei em vós
ao anoitecer
numa rua sombria
quando sobre as pedras da calçada caiu uma vidraça
e durante muito tempo os estilhaços
espalharam luz pela terra –
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 



21 fevereiro 2025

herberto helder / a água nas torneiras, nos diamantes, nos copos




 

 
A água nas torneiras, nos diamantes, nos copos.
E entre inocência e inteligência estudava-se a arte.
Exemplo: a arte do ar queimado que passa pela boca
se a mão de alguém entra por mim dentro
e revolve
canos grossos, artérias, intestinos,
o sangue.
Deus, mão entrada.
A voz encurva-me todo.
Nos fulcros, à mesa, pelo fogo, onde as linhas se encontram nos grandes
objectos do mundo, sento-me,
e alimento-me, e a fruta adoça-se até ao oculto,
e eu sei tudo, e esqueço.
Quis Deus que eu entenebrecesse.
Que se fizesse em mim a abertura por onde saem
madeiras frias, ferros
para os talheres,
carne,
e jarras que trepidam com a força das corolas,
diamantes por onde se bebe.
Deus disse: um idioma que brilhe.
E eu trabalho para este espeço em que ponho a mão a peso
de sangue, o dom
de exercer os instrumentos terrestres.
Se vibram os arcos da respiração,
Se a baforada encrespa o ar quente das linhas.
 
 
 
herberto helder
a faca não corta o fogo
assírio & alvim
2008



 

20 fevereiro 2025

mahmud darwish / só me resta

 
 
 
só me resta
perder-me pela tua sombra, que é a minha.
só me resta
habitar a tua voz, que é a minha.
 
afastei-me da cruz estendida
como claridade em horizonte que não se inclina
até ao mais minúsculo monte que a vista alcança
mas não achei minha ferida, minha liberdade.
 
porque não sei onde moras
não encontro o caminho,
e porque meu dorso não se apoia em ti com pregos
inclinei-me tanto
como teus céus fazem
a quem espreita de escotilhas de avião
 
devolve-me os pedaços do meu nome
para que possa convocar as fibras das árvores
devolve-me as letras do meu rosto
para que possa chamar as tempestades próximas
devolve-me aas razões do meu prazer
para que possa invocar esse regresso sem razão
 
porque a minha voz está seca como pau de bandeira
e a minha mão vazia como o hino nacional
porque a minha sombra é ampla como se fora uma festa
e os traços do meu rosto se passeiam de ambulância,
porque eu não sou mais que isto:
o cidadão de um reino que não nasceu ainda.
 
 
 
mahmud darwish
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução adalberto alves
assírio & alvim
2001




19 fevereiro 2025

alain morin / 13 de junho…

 
 
 
     Procuro como um requinte o ângulo na beleza. Que nenhum dos livros empilhados saia da esquadria. Concebo assim uma arquitectura sensorial para o que tenta ser torre no acanhado espaço onde resido. Uma pilha de livros é um templo onde venero um deus indelével, informulado, hermeticamente fechado. Abrir um deles constitui um esforço sagrado que pode afectar todo o edifício. Às vezes, deslocando cuidadosamente os livros através da pilha, procuro casar determinado título com outro, para ver que consequências essa união mágica produz. Outras, é da colisão entre dois autores que, através da fermentação da sombra, espero conseguir um álcool celeste.
 
 
alain morin
trad. luís miguel nava
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990
 




18 fevereiro 2025

antónio barahona / legenda para uma fotografia do autor

 
 
 
legenda para uma fotografia do autor com Hernâni Taveira no jardim constantino em 1959
 
 
Passaram alguns anos:
uns suicidaram-se outros não têm o braço esquerdo
as mil e uma noites surrealistas
já foram escritas
hoje uma elegia amanhã o amor louco
para o ano uma viagem religiosa
ao lugar do crime
 
éramos nós
tu o amigo dos óculos chineses
do gato voador no vidro
dos cavalos azuis a emergir dum espelho
eu de semblante vítreo taciturno
olhando a morte que te escolheu primeiro
 
 
1970
 
 
 
antónio barahona 
resumo, a poesia em 2011
documenta
2012
 




 

17 fevereiro 2025

manuel de freitas / such a sad machine





 

 
                    no Estádio, com o Diogo Vaz Pinto
 
 
                         
Talvez hoje, de certa maneira,
tenha percebido. Há uma idade
em que acreditamos na poesia,
em que julgamos (coitados
de nós) a única saída possível.
 
Tocar na capa de um livro ou
numa «suffering jukebox»
torna-se quase a mesma coisa.
O mundo pede-nos desespero
– e nós tentamos dar-lho.
 
Há uma idade, um desencontro,
um fim sem recomeço que teima
em nomear mortos impartilháveis,
versos longos que celebram o luto
de haver versos, de haver morte.
 
Mas já não é a idade certa, aquela
em que tolerávamos poetas
e poemas que cresceram ao contrário,
por nos ser mais próximo o final da noite,
essa morte retórica que nos embebedava tanto.
 
Não sabíamos, mas acreditávamos
– na poesia ou noutra merda qualquer
que não viesse sujar o azul das mesas,
esta cor baça que persiste e que
fomos, de comum acordo, dissipando.
 
Uma idade em que nos apetecia ainda
falar de idade, sem futuro nem constrangimentos.
(Deixa-me ao menos pagar-te a cerveja.
Começou a chover. É demasiado tarde
para quem nunca esteve aqui
 
e espera, sentado, que lhe digam que morreu.)
 
 
 
manuel de freitas
telhados de vidro/12
averno
2009






 

16 fevereiro 2025

fernando luís / num café de Bolonha

 
 
6

Desta névoa em cerco
crescem rosas para ti,
o nublado anil das quimeras,
riscos de um destino dilacerado.
 
A paz das águas sobre
o mundo reacende o torpor
de deus encarcerado, a memória
do estrangeiro deposto sob
a tua vida, sobressalto do sangue,
do inquieto, imortal e solitário
sopro a que chamas alma.
 
E com uma pedra engastada
em cada gesto vais
matar o chacal dos teus sonhos,
dessa névoa em cerco imaginada.
 
 
 
fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





15 fevereiro 2025

regina guimarães / catalogue raisonné

 
 
 
Havia essas manhãs imaginárias
em que o sol passava debaixo da porta
como uma carta breve, um magro recado,
e essas outras
históricas
em que o sol arrombava a porta
sem historiador.
 
Saíamos mais cedo do que o costume
para confiar a palavra a um transeunte
embrulhada num pano muito branco.
 
E o primeiro com quem dávamos de cara
era mendigo e tão pedinte
que a nossa espinha se curvava
em jeito de amor envergonhado
porque outro sentimento não nos ocorria.
 
Corríamos contra o tempo.
Pela rua fora
aos encontrões
furávamos caminho por entre a multidão mole
e o ar duríssimo.
 
O que fazíamos pelas más razões
voltaríamos a fazer
a cometer
cada vez mais gratuitamente.
Sempre em nunca
ávidos de nunca
sem sempre.
 
 
 
regina guimarães
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015
 



14 fevereiro 2025

carlos saraiva pinto / farás do sono o abrigo

 
 
 
farás do sono o abrigo
dos anjos lentos.
 
a visão melancólica
dos rios obstinados.
 
ao menos uma vez
 
como a dimensão
dos pequenos passos
a caminho das mãos dissolvidas.
 
o rosto é meigo.
 
o lugar diante dos peixes
espalhará a neblina
tocada em mel a indiferença
que povoou de ausência
as libélulas interiores.
 
ó saliva inconsolável dos deuses.
no lado esquerdo do peito
o musgo dispersivo cobre o tempo
subtis pormenores
de gestos que escapam.
 
a minha memória parou.
o sofrimento vigia os mares
e na película dos amieiros
a noite cai árida e grave.
 
só o viajante da noite
contempla o mármore da face.
ouve a densa página das dunas,
 
os órfãos iluminados da chuva,
nas pegadas solitárias do outono
sobre os abismos do oeste.
 
descerás assim despido de luz
à verdura da terra
 
e a extensa morte
cobrirá de lama e sulcos
o teu reino.
 
 
 
carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001