13 agosto 2024

tiago araújo / as planícies extrovertidas

 



 

 
esta rua é o começo do mundo (todos os
lugares são o início do infinito que se estende em volta).
abrimos o universo fechado do corpo
em planícies extrovertidas
de onde se prolongam os caminhos
que nos levam aos móveis, à tinta branca das paredes,
à linha divisória entre a escuridão e a luz do sol
de alcântara, à rua onde passam os eléctricos,
e à última paragem, de onde tudo se estende de
forma concêntrica, como de todos os lugares,
os órgãos realizam a fotossíntese com a luz indirecta do rio
e chove sobre a pele
 
 
 
tiago araújo
fórmulas
quasi
2004



12 agosto 2024

fátima maldonado / meu pobre amante

 
 
 
Meu pobre amante
que te não fascina
mas se me falta
e se não o vejo
a saliva me seca
e me restringe a boca
e oculta na papila
o áfono cimento da recusa.
 
Se ao longe o lobrigo
e lhe sinto o desenho
e suspeito a boca
na cara se fixa
como se vela fosse num canto de sacada
ali logo me trunco
e me cindo em planos;
um só que continua
em direcção ao mar,
o outro que apodrece
 
e resta desprezado
e fica
coroa de tentáculos nas pedras recozidas
ao sol deste verão
entre portas abertas
e soleiras de escadas
circundadas por lousas
e azulejos vivos.
 
 
 
fátima maldonado
os presságios
os encontros
editorial presença
1983




 

11 agosto 2024

florbela espanca / para quê?!

 



 
Tudo é vaidade neste mundo vão ...
Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!
 
Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão! ...
 
Beijos de amor! Pra quê?! ... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!
 
Só neles acredita quem é louca!
Beijos de amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta! ...
 
 
 
florbela espanca
sonetos
livraria bertrand
1981



10 agosto 2024

maria teresa horta / universo

 
 
É nos olhos
que fracassamos
o céu
 
Doentes de poeira
por cada onda
repousamos as mãos
 
Proibidos de estarmos
em cada dorso – vidro
é olfacto o conteúdo
dos cardos
 
Cansados de universo
 
Claros totalmente claros
e descobertos
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
cidadelas submersas
dom quixote
2009





 

09 agosto 2024

john updike / no princípio

 



 

 

No princípio, a Cultura ilude-nos, mas a Natureza
acaba por nos apanhar. A minha pele, noto,
agora que tenho setenta e cinco anos,
pende, enrugada como essas dunas em Marte
que nos dizem que a vida lá devia ter existido –
lama monocelular em charcos estagnados.
Em Tucson, no final do filme, um homem no
espelho dos lavabos avançou para mim,
 
olhos desvairados e pequenos, cabelo branco,
pescoço hirto – que podia ser, tão hostil e estranho,
tão pronto para o lixo, como um saco de pipocas
nojento no seu revestimento de gordura velha?
Onde o rapaz de sardas que costumava espreitar
pelo espelho da frente, à saída para a escola?
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009




08 agosto 2024

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

 
 
II
 
Corpo meu, tão gentil, tão malferido,
partido e repartido nos transvios,
que repouso terás no chão da vida
se Amor te mata assim dia-após-dia?
 
Ainda se a morte fora só alegria
do reencontro dos amantes idos,
eu ia rindo empós esta agonia
a reviver os rostos hoje findos.
 
Mas obscuro é o claro fim, e eu fico
a carrear-te, corpo sempre aflito
entre a fome diária e a infinita.
 
Corpo meu, alma minha, quem diria
o que é a carne e o que seria o espírito
quando o Amor, gentil, une o indiviso?
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



07 agosto 2024

maria gabriela llansol / onde vais, drama-poesia?

 



 
XV
 
num desses momentos,
a objecto de beleza
sob o aspecto de uma abertura larga,
terá medo que o amor a desfeie e lhe roube o brilho que a en-
volve.
 
     Nesse momento, serei naturalmente implacável,
por ora, a única abertura visível é a porta da minha casa, la-
deada por duas lanternas.
     Dentro, e ao lado das nossas casas, estão várias casas,
 
abrigo que nos permitimos atingir quando sentimos fadiga.
Fadiga muito doce por não se querer sentir a fadiga cruel que
todo o vento brando, àquela hora, espalha pela clareira,
 
 
todos somos, de facto, incompletos a certas horas do dia, e
mostrei-lhe a Casa.
 
 
maria gabriela llansol
onde vais drama-poesia?
relógio d´água
2000
 




06 agosto 2024

sophia de mello breyner andresen / mãos

 
 
 
Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender
 
 
sophia de mello breyner andresen
coral 1950
obra poética I
caminho
1999
 



05 agosto 2024

fiama hasse pais brandão / do universo

 
 
 
Não o silêncio rodeia as palavras
nem as coisas. Vejamos a palavra ar
na esquadria da janela
atravessada pelos pardais,
sustida pelos telhados,
escavada mesmo pelas telhas e cornijas.
 
Não o espaço rodeia as coisas
mas outras coisas. A mesa
rodeada por iguarias,
o mel e a água tendo em volta
a fonte, esta abraçada pela Terra.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




04 agosto 2024

bernardo soares / e os diálogos nos jardins fantásticos que contornam...

 
 
E os diálogos nos jardins fantásticos que contornam nada definidamente certas chávenas? Que palavras sublimes não devem estar trocando as duas figuras que se assentam no lado de lá daquele bule? E eu sem ouvidos apropriados para as ouvir, morto na polícroma humanidade!
 
Deliciosa psicologia das coisas deveras estáticas! A eternidade tece-a e o gesto que uma figura pintada tem desdenha, do alto da sua eternidade visível, a nossa transitória febre, que nunca se fixa numa atitude nem se demora nos portões de um esgar.
 
Não amamos, senão que fingimos amar. O verdadeiro amor, o imortal e inútil pertence àquelas figuras em que a mudança não entra, por sua natureza de estáticas. Desde que eu o conheço o japonês que se senta na curva do seu bule não mudou ainda... Não apertou nunca as mãos da mulher que está a um distar errado dele. Um colorido extinto como de um sol desaparecido irrealiza eternamente as encostas desse monte. E tudo aquilo obedece a um instante de pena.
 
Que curioso deve ser o folclore do colorido povo dos painéis. Uns amores de figuras bordadas — amores de duas dimensões, duma castidade geométrica deverá ser.
 
s.d.
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982



03 agosto 2024

al berto / doze moradas de silêncio

 
 
4
 
erva espezinhada poeira de sal nas unhas
dedos cansados de escutar o envelhecido latejar das pedras
olhar vago rasando o mar… azulino pássaro
no vagar do vento vem abrigar-se no meu peito
 
e o sol queima por dentro a boca e os cabelos
escolho um nome… ofereço-to
enquanto esboço percursos na ilusão de te reencontrar
mas deparo com estas dunas tristes… aridez contínua
ao longe
figueiras bravas debruçam-se para os corpos
protegendo-os do calor… onde terminará a visão?
 
teço nos lábios a líquida alegria dum fabuloso peixe
ouço o marulhar das estrelas… lembras-te?
ao anoitecer
 
     (resumo do dia:
                    chuviscos
                    breves dálias colhidas nos valados
                    passos hesitantes pelas águas
                    lenta fuga dos corpos
                    sombras ternas na folhagem das figueiras)
 
estendidos na erva para
 
 
 
al berto
doze moradas de silêncio 1978/1979
o medo
assírio & alvim
1997
 



02 agosto 2024

artur do cruzeiro seixas / esta pedra é uma casa

 



 

Esta pedra é uma casa
tão cega
como aquele céu lá no mais alto
que afinal precisa o mar
para se saber azul.
 
Sobre a mesa estrelas e uvas sempre renovadas
e a lisa parede branca        para as sombras
independentes
esquecerem a morte ali
onde sobra sombra sempre.
Onde a sombra assombra
suportando todo o peso do ar.
 
E lembro ainda o luar como uma areia muito fina
argamassa desta espessura que nos separa do poema perdido
subitamente tornado insecto
por intersecção do teu olhar.
 
Áfricas 65
 
 
 
artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002
 




01 agosto 2024

joaquim pessoa / canção de estar tão vivo

 


 

 

Tivera eu morrido trespassado
e menos me custara do que estar
de pé. E de tão vivo, assassinado.
Que a morte é ter vontade de cantar.
 
Tivera eu partido e não voltasse
às margens quase puras do meu Tejo.
Tivesse eu uma rosa e caminhasse.
Que a morte é dar a vida por um beijo.
 
Pudera eu dizer, amor, de nós
a ternura cobrindo a nossa cama.
Gritar por ti até perder a voz.
Que a morte está mais perto de quem ama.
 
Pudera então ao menos ficar mudo
e nada mais dizer. Nada cantar.
Como se já tivera eu cantado tudo
e a morte acontecesse devagar.
 
 
 
joaquim pessoa
125 poemas
antologia poética
litexa
1982