19 maio 2024

rui caeiro / um corpo diz para outro corpo

 
 
Um corpo diz para outro corpo
vem-me dar de comer e de beber
ou antes como e bebe do meu corpo
e eu fico a olhar um e outro
ora participante interessado
esquecido de tudo o que é o resto
ora o mais frio dos voyeurs
por vezes o olhar não separa
os corpos o próprio e o alheio
o meu é como se fosse de um outro
o do outro será talvez meu
os corpos seguem o seu caminho
isto é devoram-se até cada
um se cansar de foder e de olhar
 
 
 
rui caeiro
o quarto azul e outros poemasl
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




18 maio 2024

rui lage / terminal

 
 
Chegaram ao terminal número Sete
Malas de cabalistas (dói-me a mão!),
Repescam-se com a vida que remete
Um regresso partido no coração.
 
Cabelos intocados, gabardines,
Crinas de cigarros, saias de solidão
E hei-de jazer sem que me ensines
Porque tudo corre da tua emoção.
 
Imóveis, sustentam-se de vontades
Aviões sobre nuvens encarceradas
Atrás do olhar ambos os lados das grades.
 
Humilde por me saber uma vela
Entre portas, entre correntes de ar,
Só para ti me acendo à janela.
 
                                           Bruxelas
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002





 

17 maio 2024

miguel filipe mochila / cravo


 

 
Entre os mil cravos da minha infância, escolhi o branco
          e breve aquele
que em San Juan achei havendo-o perdido
a milhares de quilómetros de Porto Rico
em meio do asfalto
em outro santo ido
Bento este, pobre
Ou seja, do Mato, vulgo Azaruja.
Morto, foi da morte que o colhi. Como explicar
que por o não ter visto nunca
outra vez além o vi.
Andar a tempo não é o mesmo que andar atento.
A gente desperta um dia neste estranho, estranho
          mundo, e principia sempre em,
e chega sempre, ao estrangeiro:
cândidas, e logo apaixonadas, e enfim frustradas, se nos
          perdem as coisas, as ideias, as grandezas,
e sobram-nos só aquelas, frugais e fraternas, que
          perdemos na infância.
A isto chamamos beleza, mas a beleza
está só nas coisas belas, e elas fogem-nos sempre, para
          que possamos
continuar a dizê-las belas, a beleza.
Como aquela flor da infância:
como explicar
que num futuro
campo
é que a perdi.
 
 
 
miguel filipe mochila
nervo/21
colectivo de poesia
maio/agosto 2024
 



 

16 maio 2024

maria alberta menéres / dois poemas do mar

 
 
 
1.
No quebrar de cada onda,
vive uma canção falhada!
 
 
– Mas não importa cantar.
 
 
Basta uma onda incompleta
para dar sentido ao mar…
 
 
2.
O silêncio dorme, estendido na areia.
 
Velam três rochedos,
todos três calados,
todos três olhando
sem compreender!
 
 
– Ai se Deus me desse esta ignorância calma,
feita de me cumprir, sem o saber…
 
 
 
maria alberta menéres
intervalo 1952
poesia completa
porto editora
2020
 




15 maio 2024

till lindemann / beleza

 



 
 
Quando as rosas florescem no jardim
só as rosas se veem,
os suspiros das violetas perdem-se no ar
e misturam-se com o cheiro das rosas
 
 
 
till lindemann
nas noites tranquilas
trad. pedro garcia rosado
alma mater
2018



14 maio 2024

edgar lee masters / ollie mcgee

 



 
Vistes caminhar pelas ruas da povoação
um homem cabisbaixo e de rosto cadavérico?
É o meu marido. Esse que, com secreta crueldade,
que nunca revelei, me roubou a juventude e a beleza;
até que, por fim, enrugada, com os dentes amarelos,
quebrado o meu orgulho, humilhada e submissa,
desci a esta cova.
E sabeis o que devora o coração do meu marido?
O rosto que eu fui, face ao rosto que ele me deu!
É isso que o arrasta para o sítio onde estou.
Na morte, assim, alcancei a minha vingança.
 
 
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003



13 maio 2024

charles bukowski / conselho amigável a imensos jovens adultos

 
 
 
Vai ao Tibete.
Anda de camelo.
Lê a bíblia.
Tinge os sapatos de azul.
Deixa crescer a barba.
Dá a volta ao mundo numa canoa de papel.
Assina o Saturday Evening Post.
Mastiga com o lado esquerdo da boca apenas.
Casa-te com uma mulher com uma perna e faz a barba
                                     com uma navalha de barbear.
E grava o teu nome no braço dela.
 
Escova os dentes com gasolina.
Dorme todo o dia e trepa às árvores à noite.
Sê um monge e bebe buckshot e cerveja.
Mete a cabeça debaixo de água e toca violino.
Faz dança do ventre diante de velas cor-de-rosa.
Mata o teu cão.
Concorre a Presidente da Câmara.
Vive num barril.
Parte a cabeça com um machado.
Planta túlipas à chuva.
 
Mas não escrevas poesia.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018
 



12 maio 2024

elizabeth bishop / cidade nocturna

 



                                

[Do avião]
 
Nenhum pé o conseguia suportar,
os sapatos são demasiado finos.
Vidro partido, garrafas partidas
montes deles a arder.
 
Por cima daquelas fogueiras
ninguém conseguia caminhas:
aqueles ácidos flamejantes
e diversos sangues.
 
A cidade queima lágrimas.
Um lago enrugado
de um verde azulado
começa a fumegar.
 
A cidade queima o crime.
– Para a libertação do crime
o calor central
tem de ser assim intenso.
 
Linfa diáfana,
túrgido sangue vivo,
salpicam o exterior
com coágulos de ouro
 
para onde correm, fundidos,
nos subúrbios escuros,
verdes e luminosos
rios de silicato.
 
Uma lagoa de betume
um grande magnate
chorava sozinho,
uma lua escurecida.
 
Um outro exaltava
um arranha-céus.
Olhem! Incandescente,
os seus fios gotejam.
 
O incêndio
luta por ar
num terrível vácuo.
O céu está morto.
 
(Porém, há criaturas,
cuidadosas, suspensas.
Poisam os pés, caminham
Verde, vermelho; verde, vermelho.)
 
 
 
elizabeth bishop
geografia III
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
2006
 



11 maio 2024

emily dickinson / entre a forma de vida e a vida

 
 
 
Entre a forma de Vida e a Vida
É tão grande a diferença
Como o Álcool entre o Lábio
E o Álcool no Jarro
Este – excelente a manter –
Mas no desejo em êxtase
O sem rolha é melhor –
Eu sei porque provei
 
 
 
emily dickinson
duzentos poemas
trad. ana luísa amaral
relógio d´água
2014




10 maio 2024

louise glück / neve de primavera

 
 
 
Olha o céu nocturno:
há em mim dois eus, dois tipos de poder.
 
Estou aqui contigo, à janela,
a ver como reages. Ontem
a lua ergueu-se sobre a terra húmida no jardim.
Agora, a terra cintila como a lua,
matéria morta incrustada de luz.
 
Já podes fechar os olhos.
Ouvi o teu pranto, e o pranto antes do teu,
e o que eles exigiam.
Mostrei-te o que desejas:
não crença, mas rendição
à autoridade, o que depende da violência.
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020




09 maio 2024

wislawa szymborska / poema para

 
 
Houve uma vez. Criou o zero.
Num incerto país. À luz de estrela
já porventura extinta. Entre datas
nas quais alguém jurou. Sem um nome,
polémico que fosse. Não deixando
abaixo do seu zero uma ideia simples e dourada
sobre a vida, que é aquilo que é. A lenda ao menos
de ter um dia acrescentado um zero à rosa
que colheu e feito um ramalhete.
De que, estando a morrer, partiu para o deserto
num camelo de cem bossas. De ter adormecido
à sombra das palmas da vitória. De que acordará
quando estiver já tudo contado
até ao mais pequeno grão de areia. Que homem este!
Interstício entre facto e pensamento
Passou despercebido. Refractário
a todos os destinos. Repelindo
cada silhueta que lhe dou.
Sobre ele se adensou um silêncio sem cicatriz na voz.
Transfigurou-se a ausência em horizonte.
O zero escreve-se sozinho.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998




 

08 maio 2024

giórgios seféris / automóvel

 
 
Na estrada, abraço de compasso,
dois braços, um apelo,
dedos de vento no cabelo
mil milhas no regaço,
 
vamos os dois livres, sem cruz,
chibata no olhar langue;
são-nos enfeites alma e sangue,
e vamos nus! Nus! Nus!
 
Nesse leito de alto espaldar
de almofadas de penas,
ao longe fogem nossas penas,
qual peixe à beira-mar.
 
E nos dois braços estendidos,
apenas corpos, vamos,
pelos dois lados, em dois ramos,
corações repartidos.
 
De Strofi, 1931
 
 
 
giórgios seféris
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. de manuel resende
língua morta
2021





 

07 maio 2024

ángeles mora / a rua em que tu vives

 
 
Não faço nada desde que te vi.
Os livros continuam abertos onde estavam.
Os cadernos em branco.
O relógio mudo.
O calendário, ai,
deteve-se num dia…
 
Não faço nada desde que te vi.
 
Mas os meus passos aprenderam
O caminho da tua casa.
 
 
 
ángeles mora
poesia espanhola de agora I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997