15 março 2024

paul éluard / a vitória de guernica

 
 
 
1
Belo mundo dos pardieiros
Da mina e dos campos
 
2
Caras boas para o fogo boas para o frio
Para as recusas para a noite para as injúrias para
                                                        [os golpes
 
3
Caras boas para tudo
Eis o vazio que vos fixa
Vossa morte vai servir de exemplo
 
4
A morte coração derrubado
 
5
Fizeram-vos pagar o pão
O céu a terra a água o sono
E a miséria
Da vossa vida
 
6
Diziam desejar a boa inteligência
Racionavam os fortes julgavam os loucos
Davam esmola dividiam um soldo ao meio
Saudavam os cadáveres
Cumulavam-se de delicadezas
 
7
Insistem exageram não são do nosso mundo
 
8
As mulheres as crianças têm o mesmo tesouro
De folhas verdes de Primavera e de leite puro
E de tempo
Nos olhos puros
 
9
As mulheres as crianças têm o mesmo tesouro
Nos olhos
Os homens defendem-se como podem
 
10
As mulheres as crianças têm as mesmas rosas
                                                          [vermelhas
Nos olhos
Cada uma mostra o seu sangue
 
11
O medo e a coragem de viver e de morrer
A morte tão difícil e tão fácil
 
12
Homens para quem este tesouro foi cantado
Homens por quem se perdeu este tesouro
 
13
Homens reais para quem o desespero
Alimenta o fogo devorador da esperança
Abramos juntos o último rebento do futuro
 
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977





14 março 2024

manuel resende / numa esquina numa retrete

 
 
 
Vêm-me de lá, de muito antigamente, umas dores no
      coração quando
O tempo me atravessa inutilmente o peito
E cada segundo se espeta carniceiro em mim em brasa
     antes de passar
Rápido e leve
Para o outro lado que não quero ver.
A noite onde mergulhamos, essa noite comprida, é de
     dentro que nos fala,
Como o mar já nos pulmões do náufrago.
Outros cantaram (e se calhar eu também) o troar das
     armas, a bela fúria das tempestades
O Ferro e o Fogo e o Juízo Final, o Deus dos Exércitos!
Mas que beleza pode haver
Em morrermos como cães ingurgitados de ódio, com as
     calças sujas de medo,
Numa esquina, numa retrete ou numa igreja?
O passado empurra-nos para a frente num metro a
     abarrotar
Os enjoados correm para o vómito.
 
 
 
manuel resende
em qualquer lugar seguido por
o pranto de bartolomeu de las casas
poesia reunida
edições cotovia
2018
 



13 março 2024

paulo da costa domingos / em voga

 



 
Um escritor cheio
de ferragem e tatuagem,
como um escravo, besta
de carga. Admira como não
cravaram ainda cravos
na palmilha de seu pé e não
lhe bolearam o casco…
 
Pedia você para o beijar
e festejar, e eu só dei
com penduricalhos
e a repulsa do papiro
engelhando os tempos
modernos sobre seu
estigmatizado corpo.
 
 
 
paulo da costa domingos
versos abrasileirados
& etc
2012
 




12 março 2024

leopoldo maría panero / o último espelho

 
 
                       Inspirado num pesadelo que teve por nome
                       «Maraba Dominguez Torán»
 
 

Todo aquele que atravessa o corredor do Medo
chega finalmente ao Último Espelho
onde uma mulher abraçada ao teu esqueleto nos mostra
frente a frente o inferno dos olhos selados
dos olhos fechados para sempre como numa máscara
mortuária representando no além o teatro último:
assim olhei eu os olhos que apagaram a minha alma
assim vi eu um dia que não existe no Último Espelho.
 
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019




 

11 março 2024

ângelo de lima / dizem os sábios

 



 
1

Dizem os sábios que já nada ignoram
Que alma, é um mito!...
Eles que há muito, em vão, dos céus exploram
O almo infinito…
Eles, que nunca achavam no ente humano
Mais que esta face
De ser finito, orgânico, o gusano
Que morre e nasce,
Fundam-se na razão.
                                      E a razão erra!...
 
Quem da lagarta a rastejar na terra
Pode supor,
Sonhar sequer, que um dia há-de nascer
A borboleta, aquela alada flor
Matiz dos céus?
Sábios, achai em vão o pode ser
Saber… só Deus.
 
O homem rasteja, semelhante ao verme
por que não há-de a paz da sepultura
– Quando labor sob a aparente calma!
Servir d’abrigo àquele ser inerme,
De que há-de um dia após tarefa oscura
Surgir vivaz, alada e flor, a Alma.
 
 
 
ângelo de lima
poesias completas
assírio & alvim
2003




10 março 2024

rui penote coias / se quiseres que eu me perca

 
 
Se quiseres que eu me perca, buscarei outra ilha.
Esperarei a morte diante dos olhos,
o milhafre junto à ravina de crisântemos.
Ao longe, correndo para a primeira luz do dia,
estarei à tua espera, acenando com a mão esquerda,
avançando sobre o mar.
não te esqueças:
aprendi um dia que deus nos traz um sono
leve que nos cega.
 
 
rui penote coias
hífen 10 maio 1997
cadernos semestrais de poesia
anos noventa (alguns poetas)
1997
 



09 março 2024

eva ruivo / que tradição a vossa

 
                                                                 
 
Que tradição a vossa! Maltratar espanholas.
o calor e o frio da minha época
jamais me hão-de largar: uma coisa é
foder, outra sofrer influências
na pele, ter exércitos de terracota fundo… «Bem
que vinham de mal comer,
que não tinham aonde ir dançar…» Não
interrompa! Ninguém
que da morte saiba o sabor que ela tem,
tão sem razão, lhe suportará os versos.
 
Uma dinastia inteira de ossos e solidão,
raparigas do campo quem voz rezará o terço
quando um homem escreve asneiras,
mimos a raparigas levantadas ou não?
 
 
eva ruivo
hífen 10 maio 1997
cadernos semestrais de poesia
anos noventa (alguns poetas)
1997




08 março 2024

rui pires cabral / fim de semana

 



 

 
Fim de semana nos arredores
onde quer que a luz se encoste, aquele domingo de maio
ouvindo os sinos em Mafra. No escuro eu já caminhava
para ti? Cada manhã posso dizer: ainda se mexem
os dias, tenho um préstimo para estes braços.
 
No pequeno café onde calha
trazes uma razão agarrada, guardas o meu movimento em ti
como num mapa. A Califórnia toda enfeitada no lustro
das fotografias, os lagos frios de Lausanne
ou Genève, o que é que isso interessa agora?
 
Descascas uma laranja para mim. Com a música alto
levamos livros e cigarros para a cama, os estores estão corridos
desde o princípio da tarde.
 
 
 
rui pires cabral
hífen 10 maio 1997
cadernos semestrais de poesia
anos noventa (alguns poetas)
1997



07 março 2024

manuel antónio pina / o braço

 






 
O braço que falta ao mendigo é que o sustenta –
É ele que na sombra mexe os cordelinhos
De milhões misteriosos de dedinhos
Com que o mendigo se coça e se alimenta.

 
                            O cego que toca violino na esqui-
                            na da Rua de Santa Teresa e da Ga-
                            leria de Paris

 
 
Entre o cego e a música é que o braço se coloca,
Tão célere que o cego não entende
Dos braços da música que toca
Qual o que abraça qual o que ele estende.
 
 
 
manuel antónio pina
ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde
erva daninha
1982
 


06 março 2024

manuel a. domingos / segredo

 
 
 
Estas coisas
só minhas:
o medo
de morrer
 
e a maneira
como deitado
olho o tecto
a pensar o dia
 
 
 
manuel a. domingos
aprendiz
volta d´mar
2019




05 março 2024

gerrit kouwenaar / isto não

 
 
 
Isto não é bonito
isto não é ilegível
isto não é para crianças
 
isto não é linguagem cifrada
isto não dignifica o povo
 
isto é o lado de dentro
da tua porta de fora, isto
deves conhecer: a tua mão
colada ao trinco
 
no capacho debaixo dos pés
o jornal o semanário o mensário
o anuário
 
está calor e está a nevar
está a morrer em paz, a letra
comeu tudo, nada
é mentira, nada é passado, nada
foi digerido –
 
 
 
gerrit kouwenaar
uma migalha na saia do universo
antologia da poesia neerlandesa do século vinte
selecção de gerrit komrij
tradução de fernando venâncio
assírio & Alvim
1996




 

04 março 2024

fiama hasse pais brandão / do espaço-tempo?

 
 
 
Sobre o telhado, feito de espaço
que remata as paredes da casa,
as altas chaminés com o fumo desta hora
sobem no tempo, brancas e vãs.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002





03 março 2024

antónio ramos rosa / sujei o teu nome




 

Sujei o teu nome
para me libertar de ti
o sujo foi sombra
teu nome esqueci-o
 
O sujo era ferida
e eu falso cantava
Não reconheci a minha voz
Ai que deserta liberdade
 
Preso de novo
que rede tamanha
de laços e vozes
Um eco talvez
um eco incessante
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985