10 março 2024

rui penote coias / se quiseres que eu me perca

 
 
Se quiseres que eu me perca, buscarei outra ilha.
Esperarei a morte diante dos olhos,
o milhafre junto à ravina de crisântemos.
Ao longe, correndo para a primeira luz do dia,
estarei à tua espera, acenando com a mão esquerda,
avançando sobre o mar.
não te esqueças:
aprendi um dia que deus nos traz um sono
leve que nos cega.
 
 
rui penote coias
hífen 10 maio 1997
cadernos semestrais de poesia
anos noventa (alguns poetas)
1997
 



09 março 2024

eva ruivo / que tradição a vossa

 
                                                                 
 
Que tradição a vossa! Maltratar espanholas.
o calor e o frio da minha época
jamais me hão-de largar: uma coisa é
foder, outra sofrer influências
na pele, ter exércitos de terracota fundo… «Bem
que vinham de mal comer,
que não tinham aonde ir dançar…» Não
interrompa! Ninguém
que da morte saiba o sabor que ela tem,
tão sem razão, lhe suportará os versos.
 
Uma dinastia inteira de ossos e solidão,
raparigas do campo quem voz rezará o terço
quando um homem escreve asneiras,
mimos a raparigas levantadas ou não?
 
 
eva ruivo
hífen 10 maio 1997
cadernos semestrais de poesia
anos noventa (alguns poetas)
1997




08 março 2024

rui pires cabral / fim de semana

 



 

 
Fim de semana nos arredores
onde quer que a luz se encoste, aquele domingo de maio
ouvindo os sinos em Mafra. No escuro eu já caminhava
para ti? Cada manhã posso dizer: ainda se mexem
os dias, tenho um préstimo para estes braços.
 
No pequeno café onde calha
trazes uma razão agarrada, guardas o meu movimento em ti
como num mapa. A Califórnia toda enfeitada no lustro
das fotografias, os lagos frios de Lausanne
ou Genève, o que é que isso interessa agora?
 
Descascas uma laranja para mim. Com a música alto
levamos livros e cigarros para a cama, os estores estão corridos
desde o princípio da tarde.
 
 
 
rui pires cabral
hífen 10 maio 1997
cadernos semestrais de poesia
anos noventa (alguns poetas)
1997



07 março 2024

manuel antónio pina / o braço

 






 
O braço que falta ao mendigo é que o sustenta –
É ele que na sombra mexe os cordelinhos
De milhões misteriosos de dedinhos
Com que o mendigo se coça e se alimenta.

 
                            O cego que toca violino na esqui-
                            na da Rua de Santa Teresa e da Ga-
                            leria de Paris

 
 
Entre o cego e a música é que o braço se coloca,
Tão célere que o cego não entende
Dos braços da música que toca
Qual o que abraça qual o que ele estende.
 
 
 
manuel antónio pina
ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde
erva daninha
1982
 


06 março 2024

manuel a. domingos / segredo

 
 
 
Estas coisas
só minhas:
o medo
de morrer
 
e a maneira
como deitado
olho o tecto
a pensar o dia
 
 
 
manuel a. domingos
aprendiz
volta d´mar
2019




05 março 2024

gerrit kouwenaar / isto não

 
 
 
Isto não é bonito
isto não é ilegível
isto não é para crianças
 
isto não é linguagem cifrada
isto não dignifica o povo
 
isto é o lado de dentro
da tua porta de fora, isto
deves conhecer: a tua mão
colada ao trinco
 
no capacho debaixo dos pés
o jornal o semanário o mensário
o anuário
 
está calor e está a nevar
está a morrer em paz, a letra
comeu tudo, nada
é mentira, nada é passado, nada
foi digerido –
 
 
 
gerrit kouwenaar
uma migalha na saia do universo
antologia da poesia neerlandesa do século vinte
selecção de gerrit komrij
tradução de fernando venâncio
assírio & Alvim
1996




 

04 março 2024

fiama hasse pais brandão / do espaço-tempo?

 
 
 
Sobre o telhado, feito de espaço
que remata as paredes da casa,
as altas chaminés com o fumo desta hora
sobem no tempo, brancas e vãs.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002





03 março 2024

antónio ramos rosa / sujei o teu nome




 

Sujei o teu nome
para me libertar de ti
o sujo foi sombra
teu nome esqueci-o
 
O sujo era ferida
e eu falso cantava
Não reconheci a minha voz
Ai que deserta liberdade
 
Preso de novo
que rede tamanha
de laços e vozes
Um eco talvez
um eco incessante
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985




 

02 março 2024

josé pascoal / convocatória




 
Sem título,
Sem mandato,
Convoco todos os sócios
Da poesia
E dos seus afluentes,
Para uma assembleia geral
Sem ordem de trabalhos,
A realizar no Dia-de-São-Nunca,
À hora nona dos calvários,
E cada um de vós traga
O que lhe der na gana,
O que lhe deram de prenda,
Seja o que for,
Para afogarmos no álcool
Dos livros
Esta sempre latente
E lancinante dor.
 
 
 
josé pascoal
ponto infinito
editorial minerva
2018




 

01 março 2024

antónio franco alexandre / duende





 

4.

Guardado na redoma o antigo pó
das perplexas ruínas de sodoma,
e aberto no jardim o estandarte
de livre amor em todos os sentidos,
ficou para mim só este interdito
modo de te querer sem nome ou emblema,
nem arte certa que na escola ensine
do poema o ruído mais decente.
Nem sei se existes nesse espaço oco
onde passam ridículos cometas
anunciando o fim de toda a terra;
se ao deixares-me se rasgou o tempo,
a água se fez ar, e fogo o vento;
ou se existe outro mundo além da pele.
 
 
 
antónio franco alexandre
duende
assírio & alvim
2002
 



 

29 fevereiro 2024

joaquim manuel magalhães / era como estar só

 




 
 
Era como estar só. Mas
estar só e feliz.
A varanda envidraçada,
o cheiro do café, um ramo
chamado pelo sono.
Sombras de sol batiam
no chão de madeira velha.
Restos de água da noite
brilhavam nos vidros
os primeiros insectos.
A maresia das aves costeiras
lanceoladas de luz.
Os olhos pousavam à espera
de te voltar a ter.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
de súbito
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990
 




28 fevereiro 2024

fernando pinto do amaral / escotomas

 
 
5.

Sempre que as sombras crescem, esta ferida
abre-se em mim – recordação
de um paraíso inabitável. Sonho,
mas cada sonho deixa atrás de si
a cicatriz de um beijo que adormece
nos meus lábios desertos.
 
Sempre que a lua acorda e espalha
o seu perfume azul neste jardim,
a luz de uma pergunta sobe, agonizante,
pela atmosfera pouco a pouco
mais fria, rarefeita. A minha sede
precisa desse voo,
dessa fé que renasce e procura
beber algum presságio nas estrelas,
florescer na penumbra, acreditar
na memória de Deus
sob o gelo dos olhos que flutuam
de céu em céu, de vida em vida, às vezes
tão perto de um oásis.
 
 
 
fernando pinto do amaral
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




27 fevereiro 2024

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo

 




 
7
 
do meu braço
a mancha de sangue
corre incessantemente
 
comboio esperado há muito
sombra da noite
talvez o corvo
em que não acreditamos
 
em criança aprendi
a olhar a lua distante
mar ignorado da memória
– lâmina aguda e
extremamente fina –
 
a grande aranha do tempo
duas asas       sono que
nos foi dado outrora
 
 
                                   junho- 1950
 
 
 
mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018