11 novembro 2023

henrique risques pereira / saudades

 




 
Para além da muralha de água
há lágrimas
e poemas ciciados ao ouvido
e se diz da enseada sagrada
e do rio que rasga a terra
entre abismos verticais
olhos vítreos de águia ferida.
 
Cada coisa tem um segredo antigo
que a árvore é a floresta
que a gota cintilante é o vasto oceano
e que tu estás em tudo e tudo está em ti
e para sempre guardado em ti.
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003


10 novembro 2023

carlos edmundo ory / os meus mortos

 




 
Se perguntas por meu pai
(que se chamava Eduardo)
se perguntas por meu pai
direi que está deitado
 
Se perguntas por meu avô
(que se chamava Nicolau)
se perguntas por meu avô
direi que está dormindo
 
E se morre minha mãe
e se minha avó morre
não me perguntes que fazem
direi que estão sonhando
 
 
carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997



09 novembro 2023

jorge velhote / fria é a água na escuridão

 





 
.13.
 
Há uma árvore. Ignoras o seu nome
 
ou o vento que faísca nos seus ramos
 
como um braço contra a morte.
 
Há a água. Subitamente despedindo
 
contra o vento os caminhos
 
o canto altíssimo das aves.
 
E nos teus pulmões germina uma palavra
 
como um testamento – uma página
 
cerzindo a fotografia
 
de uma bala.
 
 
 
jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018
 





08 novembro 2023

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
I
 
De altos senhores sou escravo. Ordenavam eles
que antes da partida inevitável,
a última, a sem rota ou aventura,
vase, no debuxo perene da palavra,
para os meus, o que na vida fiz
para merecê-la. Eis porque estando o sol
no último compasso e já passada
a casa do escaravelho, o azul estaca
como um potro assustado, e a cerviz dobro
em mais este trabalho e obrigação.
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021
 


07 novembro 2023

josé gomes ferreira / pinhal

 




I

 

Poesia
– sabor próprio das palavras alheias
que se perderam dos objectos
naufragados na saliva das areias.
 
 
josé gomes ferreira
poesia V
pinhal - 1960
portugália
1973



06 novembro 2023

agustina bessa-luís / gostos




  

Um dos grandes factores do diálogo nos restaurantes e em todos os espaços gregários, é a discussão sobre os gostos, embora se saiba que não se discutem. Vendo bem as coisas, os gostos são um morbo cultural que justifica o tempo perdido em discuti-los. Vive-se muito de desinteligências menores, e por isso é que se alimentam cismas, birras, contrariações e fronteiras de todos os tipos. Os Portugueses não são muito caricatos nisso de odiar e aborrecer; talvez porque onde outros povos têm barreiras entre estado e costumes extremamente sádicos entre principados, nós temos passagens de nível. Melhor assim.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008


 

05 novembro 2023

joão habitualmente / pedras

 




 

 
Há pedras habitadas. Pássaros que não migram
só para não sofrerem a partida.
 
Esperam um ano a fio pelo regresso dos companheiros.
 
 
 
joão habitualmente
um dia tudo isto será meu
(uma antologia)
porto editora
2019


04 novembro 2023

luis cernuda / onde habite o esquecimento





 
Onde habite o esquecimento,
Nos vastos jardins sem madrugada;
Onde eu seja somente
Lembrança de uma pedra sepultada entre urtigas
Sobre a qual o vento foge à sua insónia.
 
Onde o meu nome deixe
O corpo que ele aponta entre os braços dos séculos,
Onde o desejo não exista.
 
Nessa grande região onde o mar, anjo terrível,
Não esconda como espada
A sua asa em meu peito,
Sorrindo cheio de graça etérea enquanto cresce a dor.
 
Além onde termine este anseio que exige um dono à sua imagem,
Submetendo a sua vida a outra vida.
Sem mais horizonte que outros olhos frente a frente.
 
Onde as dores e alegrias não sejam mais que nomes,
Céu e terra nativos em redor de uma lembrança;
Onde ao fim fique livre sem eu mesmo o saber,
Dissolvido em névoa, ausência,
Ausência leve como a carne de uma criança.
 
Além, além, longe;
Onde habite o esquecimento.
 
 
 
luis cernuda
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985
 



 

03 novembro 2023

arsenii tarkovskii / vida, vida

 




 

 

1.
 
Não acredito em pressentimentos, nem agoiros
Me assustam. Não evito a calúnia
Ou o veneno. Não há morte sobre a terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há
Que ter medo da morte aos sete nem aos setenta. O real e a luz
Existem, mas não a morte ou a treva.
Viemos hoje à enseada,
E o cardume da imortalidade veio
Quando eu puxava as redes.
 
 
arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987
 



02 novembro 2023

jorge de sena / suma teológica

 
 
Não vim de longe, meu amor, nem soçobraram
navios no alto mar, quando nasci.
 
Nada mudou. Continuaram as guerras;
continuou a subir o preço do pão;
continuaram os poetas, uma vez por outra,
a perguntar por ti.
 
É certo que, então, imensa gente
envelheceu instantânea e misteriosamente.
 
Mas até isso, meu amor, se não sabe ainda
se foi por minha causa,
se por causa de outros que terão nascido
ao mesmo tempo que eu.
 
 
 
jorge de sena
coroa da terra (1946)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972



01 novembro 2023

nuno júdice / poema

 




 
Os poetas a quem a morte surpreende,
quando jovens, juntam-se algures noutra superfície.
De noite, os seus uivos atingem o celeste rebordo
da esfera; um ouvido mais atento distinguirá,
de entre os mil ruídos da terrível noite,
o seu coro de imprecação e choro.
De dia, adormecidos sob a terra, dissolvem-se
na humidade e nas raízes. Só os seus olhos,
na feroz abertura das pálpebras, ainda brilham
e mexem. No entanto, se alguma imagem da passada
vida os atormenta e obceca, tornam-se baixos
e baços. Uma escura lágrima cai em terra,
e o lodo assim formado me serve de alimento.
Os meus lábios e a minha língua adquirem
a sua consistência, e o meu rosto lamacento
volta-se para baixo, de onde surge um barulho
de mãos e de pés,
um barulho de vento nos órgãos vazios.
 
 
nuno júdice
o mecanismo romântico da fragmentação
editorial inova
1975




31 outubro 2023

josé carlos ary dos santos / a bruxa

 



 

As tetas são balofas almofadas
recheadas de esterco e de patranhas
da boca fogem bichas torturadas
pelo próprio veneno das entranhas.
 
As pernas são varizes sustentadas
pela putrefacção das bastas banhas
os olhos duas ratas esfomeadas
e as mãos peludas tal como aranhas.
 
Nasce do estrume e vive para o estrume
a língua peçonhenta larga fel
e é uma corda que ela-própria-puxa.
 
Sai-lhe da boca pus e azedume
tem pústulas espelhadas pela pele
e é filha de si própria. É uma bruxa.
 
 
 
ary dos santos
o sangue das palavras (1979)
vinte anos de poesia
círculo d eleitores
1984
 



30 outubro 2023

mário de sá-carneiro / o pajem

 




 
 
Sozinho de brancura, eu vago – Asa
De rendas que entre cardos só flutua…
– Triste de Mim, que vivo de Alma prà rua,
E nunca a poderei deixar em casa…
 
                                           Paris – novembro 1915
 
 
 
mário de sá-carneiro
poemas
biblioteca editores independentes
assírio & alvim
2007