26 setembro 2023

william carlos williams / a um discípulo solitário

 
 
Repara, mon cher,
que mais importante é a lua
inclinada
sobre o campanário
do que a sua cor
de rosa nacarado.
 
Mais importante
é o nascer do dia
do que o céu
pálido
como uma turquesa.
 
Mais importantes
são as linhas convergentes
do campanário
que, sombrias
se juntam no zimbório –
repara como
o seu reduzido ornamento
pretende interceptá-las –
 
Tão inútil é o seu afã!
Repara como as linhas convergentes
da agulha hexagonal
se escapam para cima –
recuando, separando-se!
– sépalas
que guardam e contêm
a flor!
 
Repara
como imóvel
a lua cheia
jaz protegida pelas linhas.
É verdade:
nas leves cores
da manhã
 
pedra parda e ardósia
brilham em laranja e azul-escuro.
 
Mas repara
no opressivo peso
do edifício atarracado!
Repara
na claridade de jasmim
da lua.
 
 
 
william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993
 



25 setembro 2023

pedro de queirós tavares / pardaleco

 
 
 
Sou este migalho de aldrabice
que vive nas árvores ocas
(tolhido para não afugentar os pintassilgos)
sempre com os pés para a noite como se a luz me denunciasse:
atentem, ali vai a versão pardaleco do homem possível
Entretenho-me a fazer fogueiras com as mãos
apesar de encarquilhadas de tanto escarafunchar os olhos
o segredo é não esbanjar as pinhas
é tudo o que sei sobre calor
Sou esta batota que escorraça em leque
e só está bem na cama
com o focinho enterrado na própria máscara
de gesso de viúvo de colisão entre comboios
favoreço o musgo
e sou inseparável desta colecção de navalhas imaginárias
não acredito em meias
só em música desgrenhada
Deixo palitos por todo o lado
como um gatuno morto por ser apanhado
cheio de ouro a escorrer-lhe dos dentes
o meu espelho é o vácuo
até te mostrava a barriga não fossem as marcas dos rodados
há uma toupeira no meu estandarte
e uma mulher invisível de bonita
por quem espero
 
 
pedro de queirós tavares
se tens fósforos
fresca / poetria
2023
 



24 setembro 2023

vergílio ferreira / não tenhas pena de ser mortal

 




 

155 – Não tenhas pena de ser mortal e de não conheceres a eternidade. Porque a eternidade está em ti, no momento incrível de te desprenderes do teu corpo, da sua miséria e estrume, e te pensares a ti mesmo e te sentires ser. Ou quando uma imagem de outrora, luminosa, ténue, se abre ao teu imaginar. Ou quando, fulminante, uma obra de arte. Ou quando, violento intenso instantâneo, o todo de uma mulher. Ou quando pela manhã a terra espera em silêncio que o dia vá começar. Ou quando. A eternidade mora em nós e na vida, deixa apenas que ela se diga e te habite. E serás mais do que Deus, cuja eternidade passou.
 
 
vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004




23 setembro 2023

fernando namora / pacto

 
 
Não me estendas a mão
como quem devolve
o que dado não foi.
Quando a deres
a mão já não será tua
mesmo antes de dada ser.
 
É assim que aceito
entrares em mim
sem de ti saíres.
É assim que nos
saberemos tu e eu
sendo um
sem deixarmos
de ser dois.
 
 
 
fernando namora
nome para uma casa
livraria bertrand
1984
 




22 setembro 2023

rui s. magalhães / um rapaz de uma ilha

 



 

um rapaz de uma ilha reparou tardiamente na sua
sombra e procurou um homem velho que lhe disse:
é cedo para lhe teres ódio e há muitas coisas
fora do chão para tentares ainda entender
respondeu o juvenil: mas é negra e persegue-me
vem na manhã atar-me as pernas
vende-me à noite ao horizonte
anuindo, o velho disse: a maneira que há é
correr com força na direcção do meio dia
quando a vires fraca olha o sol a prumo
para que com ele a mates de uma vez e a sua
negrura se vá espalhar ao resto do que tem a nossa ilha
estarás livre por tão preso nela te achares
e o rapaz assim fez
 
 
 
rui s. magalhães
nervo/19 stembro/dezembro 2023
colectivo de poesia
2023
 
 
 

 


21 setembro 2023

arvo mets / ausente

 
 
 
Desvaneço-me na primavera
ou numa multidão
ou numa poça
 
por vezes no azul
 
não faz sentido procurarem-me:
estou bem
 
 
 
arvo mets
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 
 


20 setembro 2023

novalis / a linguagem



 

 

«A linguagem», disse Henrich, «é verdadeiramente um pequeno mundo em sinais e sons. Assim como o Homem a domina, também quereria dominar o grande Mundo e nele poder exprimir-se. E é exactamente nesta alegria de manifestar no Mundo o que lhe é exterior, o poder fazer isso, que é, no fundo, o impulso originário da nossa existência, que reside a origem da Poesia.»
 
 
novalis
fragmentos de novalis
tradução de rui chafes
assírio & alvim
1998



 

19 setembro 2023

antonin artaud / pois o fim é que é o início

 

 


 
Pois o fim é que é o início.
                    E esse fim
                    é aquele mesmo
                    que elimina
                    todos os meios.
 
 
 
antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019






18 setembro 2023

leopoldo maría panero / o suplício

 



 

 
A febre assemelha-se a Deus.
A loucura: a última oração.
Durante muito tempo bebi de um estranho cálice
feito de álcool e fezes
e vi na maré da taça os peixes
atrozmente brancos do sonho.
E ao levantar a taça, digo
a Deus, ofereço-te este suplício
e esta história nascida do sangue
que de todos os olhos brota
como se me ordenasse que beba, como se me ordenasse que morra
para que quando no fim não for ninguém
seja igual a Deus.
 
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019




17 setembro 2023

bernardo soares / floresta

 
 
 
Mas ah, nem a alcova era certa — era a alcova velha da minha infância perdida! Como um nevoeiro, afastou-se, atravessou materialmente as paredes brancas do meu quarto real, e este emergiu nítido e menor da sombra, como a vida e o dia, como o passo do carroceiro e o som vago do chicote, que põem músculos de se levantar no corpo deitado da besta sonolenta.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




16 setembro 2023

herberto helder / teoria sentada

 
 
V

Muitas canções começam no fim, em cidades
estranhas. Sei
que a felicidade dos meses é ao meio e a força
de um homem é ao meio
da vida pura. Mas são muitas
as canções que começam no fim.
É no fim que secamente falam do ardor
ao meio
da cidade e da existência que se volta
para si, de rosto — tremente
e verde de sua ilusão. Canções cada vez
mais no seu fim, tão secas voltadas
imenso para trás. Para onde
é todo o poder. Conheço
horríveis canções cor de coisas transtornadas.
Canções ainda repletas de peixes, flechas, dedos
agudos abertos em torno do sexo.
Começam no fim do seu pensamento.
São para morrer na véspera, com um lento
pavor no coração e o povo
atónito por todos os lados. Porque o povo
não sabe que um homem morre antes da sua
última canção.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
teoria sentada
assírio & alvim
1996




15 setembro 2023

louise glück / vésperas

 



 
Sei o que planeavas, o que querias fazer ao ensinar-me
a amar o mundo, a fazer com que eu não pudesse
nunca abandoná-lo, afastá-lo para sempre –
ele está em todo o lado: se fecho os olhos,
o canto dos pássaros, o perfume de lilás na Primavera nascente, o
     perfume das rosas de Verão:
e tu queres tirar-mo, queres levar cada flor, cada união à terra –
porque haverias d me ferir, porque haverias de me querer
desolada no final, a menos que me quisesses tão faminta de esperança
que eu recusaria ver que finalmente
nada me fora deixado em herança, acreditando antes que
no fim de tudo só tu me foras deixado.
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020




14 setembro 2023

andrés trapiello / o rio

 
 
Para mim que encanto tem um rio
com barcos na margem.
Estar junto da água e ver correr
voluptuosas nuvens na sua ampla corrente.
Arranjar um sítio aí, entre as ervas
azuladas, um vão donde ver
como é coisa pouca a nossa vida
e não ser vistos. E olhar os barcos
esticando e distendendo
uma corda de esparto no verde
caudal, com a água da chuva
apodrecendo nas suas tábuas. Esperar
a tormenta e contemplar o céu
vagabundo e anil. Ouvir o ruído
de gotas no rio, seus castelos
como tímbalos delicados.
E pensar, se se puder,
em quem amamos muito
ou se então não amamos, não pensar,
não pensar, não pensar.
E voltar os nossos olhos
para esse mudo decurso, e vazios
ficar sem que saibamos
quanto tem de sonho
o frio e a dor
e esses barcos sem gente
uns nos outros batendo
ou se poderemos despertar um dia.
 
 
 
andrés trapiello
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997