20 agosto 2023

josé manuel teixeira da silva / porto, traseiras da sé

 



 
                                              para os meus pais
 
 

São nossos, tão de longe, esses olhos
Por aqui sempre ficaram
no esplendor reverso das traseiras
Longamente inscrevem, na luz que os enruga
a mais aérea e límpida gravura
 
Tudo o que da água sabe o filho de um peixe
assim nos ensinam, distraídos
a inclinar a cabeça, como evitar
a demorada disposição da terra
um tempo que em relances se acumula
 
Encontramo-nos todos nestes pátios
inocentes das nuvens que nos sabem
Há luzes que se acendem a espaços
pelo granito, caliça, ferros, aquela torre
Alguém de novo as vê uma primeira vez
 
 
 
josé manuel teixeira da silva
as súbitas permanências
quasi
2001




19 agosto 2023

guilherme gontijo flores / desiderium



 
Como quem vê no céu
que estrelas faltam
achar em cada falta
seu desejo
& assim deliberadamente
desastrá-lo
 
 
 
guilherme gontijo flores
carvão: :capim
artefacto
2017


 



18 agosto 2023

josé carlos barros / poema

 
 
Até à praia vinham do mar alto, às
vezes. Traziam cordas e cigarros, lenços
e perfumes, óculos e usos
tão diferentes. Misturavam tudo nos copos,
dançavam em cima das mesas, partiam
vidros, pediam em voz alta
mais cerveja, música, vinho, tiravam
droga dos bolsos fundos. Tinham sempre
dinheiro para trocar por um corpo, e
depois um corpo para trocar por
dinheiro. Faziam tatuagens nos
braços, atavam os pulsos que
cortavam, contavam segredos até
de manhã. Nunca se cansavam.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020
 



17 agosto 2023

rui diniz / postal com guache

 
 
Com Zelkie, com Vania. Ou um remoto retrato
De Dorian Gray. Eis como vivo – digo para mim.
Há sangue. Bebem beer na gare do midi.
Mas eu exilei-me em Toledo,
comprei livros. Durmo. Como laranjas num bar.
E quando é noite sonho cavalos, como suas narinas
Alargando cheiram o perigo.
 
Com Tom, pergunto. Um tom de sinos em infâncias
com vasos etruscos. Dilatam os rostos nos sons. São
os criados, no fundo, varrendo o desconsolo. Há anos.
Com uma faixa azul sobre o vestido de organdi branco:
Vania vestida para beber gin. Ou um remoto cais.
Ou um quadro de bosch. Com figos,
na prisão.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




16 agosto 2023

Isabel de sá / memória de infância

 
 
O corpo do rapaz irradiava um esplendor juvenil. Os músculos eram macios, a pele coberta por uma penugem ainda leve.
 
Atravessáramos o Inverno absorvidos pela ânsia de conhecimento. Não seria especialmente a ternura ou o afecto que nos unia, antes a aventura dos corpos no extremo da adolescência. Ele tinha uma forma peculiar e sensível de brincar com os meus cabelos muitos lisos, fazendo passar por eles os dedos como agulhas. Este corpo de rapaz vivera no poema.
 
Um mamilo pequeno e claro trouxera à minha pele lenta memória de infância: a menina que um dia me tomara por recém-nascido alimentando-me do sue brevíssimo seio.
 
Chegara Setembro com a poalha ténue do entardecer. Nossos corpos entravam no estado adulto onde cada um procurava o poema, isolado numa solidão própria.
 
 
 
 
isabel de sá
semente em solo adverso (poesia reunida)
em nome do corpo 1985
officium lectionis edições
2022
 




15 agosto 2023

luís filipe parrado / álvaro de campos revisited (2019)





 
Sim,, tenho tudo,
tudo o que preciso de ter,
as unhas sujas de terra,
a possibilidade
dos mais vastos domínios,
o cordel de enrolar o pião.
Sim, tenho tudo.
Só não tenho o pião.
 
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021





 

14 agosto 2023

ruy belo / efeitos secundários

 
 
É bom estarmos atentos ao rodar do tempo
O outono por exemplo tem recantos entre
dia e noite ao pé de certos troncos indecisos
cercados um por um de sombras envolventes
 
Rente às árvores vamos, húmidos humildes
Dizem que é outono. Mas que época do ano
toca nestas paredes que roçamos
como gente que vai à sua vida
e não avista o mar, afinal símbolo de quanto quer,
ó Deus, ó mais redonda boca para os nomes das coisas
para o nome do homem ou o homem do homem?
 
Banho lustral de ausência é este tempo
de pés postos na terra em puro esquecimento
E vamo-nos perdendo de nós mesmos, vamos
dispersos em bocados, vítimas do vento
ficando aqui, ali, nalgum lugar que amamos
Nada mais do que terra há quem ao corpo nos prometa
Quem somos? Que dizemos?
        Reúna-nos um dia o toque da trombeta
 
 
ruy belo
todos os poemas I
sete coisas verdadeiras
assírio & alvim
2004




13 agosto 2023

qassim haddad / esta pessoa que eu não conheço

 
 
Esta pessoa que eu não conheço
e que não me conhece,
porque é que demora tanto
e me deixa
na solidão desta calçada.
 
 
 
qassim haddad
um árabe é um árabe/é um árabe, um árabe
breve antologia de poesia árabe
versões e traduções joana santos e andré simões
contracapa
2022





12 agosto 2023

giórgios seféris / negação

 
 
Na praia do mar, bem guardada,
branca pomba, ao mei’dia,
a sede que a gente sentia
– e a água salgada!
 
Escrevemos o nome dela
na loura areia lisa,
mas ao de leve sopra a brisa
e a escrita já se vela.
 
Com que alma e força desmedida
com que chama e paixão,
levámos nossa vida, em vão!
E mudámos de vida!
 
 
                  De Strofi, 1931
 
 
 
giórgios seféris
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. de manuel resende
língua morta
2021
 

11 agosto 2023

margaret atwood / sombra

 
 
Alguém deseja o teu corpo.
 
Qual é o negócio?
Implorar, pedir emprestado, comprar ou roubar?
Sarjeta ou pedestal?
É sempre assi com os corpos
que alguém quer.
 
O que vale isso para ti?
Uma rosa, um diamante,
um fantástico milhão, uma piada, uma bebida?
A história de que este gosta de ti?
 
Poderias concede-lo, este corpo,
como criatura generosa que és,
ou desligar e tê-lo arrebatado
e nunca saberias.
 
Despede-te dele, do corpo
que já foi teu.
Está a correr bem,
está enrolado em peles, está a dançar
ou a esvair-se além num prado.
 
Também já não precisavas dele,
atraía demasiada atenção.
Ficas melhor só com uma sombra.
 
Alguém deseja a tua sombra.
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021



10 agosto 2023

paul celan / no poço do tempo

 
 
NO POÇO DO TEMPO,
decifrando o mundo:
 
a gaivota entra e fica,
a greda ganha forma,
 
do gelo em frente
acena aquele que é para mim
e para o mundo o mais perigoso
dos nomes.
 
 
 
paul celan
a morte é uma flor
trad. de joão barrento
relógio d´água
2022




09 agosto 2023

charles bukowski / advertência

 
 
os cisnes afogam-se em água de esgoto,
retirem os avisos,
testem os venenos,
arredem a vaca do touro,
a peónia do sol,
arranquem da minha noite os beijos de alfazema,
mandem as sinfonias para o meio da rua
como pedintes,
afiem as unhas,
flagelem as costas dos santos,
atordoem sapos e ratos para o gato,
queimem quadros deslumbrantes,
mijem na madrugada,
o meu amor
está morto.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018
 



08 agosto 2023

pedro de queirós tavares / se tens fósforos

 



 

Moço eu fui criado entre pencas e canetilhas
umas eram-me comparsas outras baionetas
enquanto o cilindro miraculava o quente na água
o cão varria a cauda do gato coçado para debaixo do sofá
descascava-se o feijão e a peneira fazia cara de prisão
cara de apicultor e vez de harpa
o poço chorava gravilha
lágrimas armadilhadas à cata de joelhos
o vizinho da muleta trazia (de certeza) cabeças de gado no saco
malhava-se dos portões pagavam-se fogueteiros
corava-se a roupa na eira remedavam-se feridas
abafavam-se carraças com éter davam-se eclipses
trepavam-se escadotes que eram marmeleiros
porque tinham sido mesmo marmeleiros eu vira
o serrote lambê-los moço
 
 
 
pedro de queirós tavares
se tens fósforos
fresca / poetria
2023