08 agosto 2023

pedro de queirós tavares / se tens fósforos

 



 

Moço eu fui criado entre pencas e canetilhas
umas eram-me comparsas outras baionetas
enquanto o cilindro miraculava o quente na água
o cão varria a cauda do gato coçado para debaixo do sofá
descascava-se o feijão e a peneira fazia cara de prisão
cara de apicultor e vez de harpa
o poço chorava gravilha
lágrimas armadilhadas à cata de joelhos
o vizinho da muleta trazia (de certeza) cabeças de gado no saco
malhava-se dos portões pagavam-se fogueteiros
corava-se a roupa na eira remedavam-se feridas
abafavam-se carraças com éter davam-se eclipses
trepavam-se escadotes que eram marmeleiros
porque tinham sido mesmo marmeleiros eu vira
o serrote lambê-los moço
 
 
 
pedro de queirós tavares
se tens fósforos
fresca / poetria
2023
 
 
 

 

 


07 agosto 2023

antónio gancho / o arco-da-velha

 




 
O Arco-da-Velha possui as cores da bandeira portuguesa
e isso é porque tu tens a certeza? e isso é porque tu tens a certeza?
mas no entanto já toda a gente sabe que também o Arco-da-Velha
contém as cores da bandeira portuguesa
vermelho por baixo e o verde por cima.
No entanto se enquanto quanto
mais prima mais se lhe arrima
é porque qual a razão do Arco-da-Velha falta então
a loucura de todo o Céu feito diabrura.
É ou não é meus amigos
e prossigo-vos que
sem os trigos da seara nada se faz que mara mais de o ver
antes este Arco-da-Velha depois
se depois então deste nascer o Arco-Íris depois de nascer.
 
 
 
antónio gancho
o ar da manhã
gaio do espírito (dez. 85 / Fev. 86 )
assírio & alvim
1995




06 agosto 2023

herberto helder / teoria sentada

 
 
IV
 
Quando já não sei pensar no alto de irrespiráveis irrespiráveis
montes, e ouço muitas vozes por dentro,
e as estrelas se desdobram à volta, então.
E já não sei como posso imaginar por baixo
das traves da cabeça por baixo
das traves rijas do céu, quando então.
Não sei como não posso fechar em duas conchas
essa pérola, essa dureza
preciosa e feroz
envolta
pelo frio, quando já não sei pensar.
Irrespiravelmente como então.
Quando já nada sei menos ser o mais puro
dos cantores que pararam diante dos montes direitos
abrasados. Dos que se calaram. Dos
cantores.
O mais puro dos cantores fulminados.
Quando já não sei falar, e acabo.
Quando então irrespiravelmente puro
por este lado, por aquele, por outro mais novo
lado. Quando digo: não sei.
E os montes compridos então para cima e eu
em baixo irrespiravelmente digo: não sei como:
pensar, respirar, dizer, saber.
Então irrespiravelmente quando puro e não
sei. E acabo.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
teoria sentada
assírio & alvim
1996





05 agosto 2023

antónio osório / o betão armado

 
 
A tristeza das pessoas.
A tentação da infelicidade.
A crueza, os arremessos,
a leonina inventiva.
Como sabem desfazer.
O horror que sentem.
A falta de escrúpulos.
De consentida fragilidade:
dar, num verso, a outra face.
 
 
 
antónio osório
casa das sementes, poesia escolhida
décima aurora (1982)
assírio & alvim
2006




04 agosto 2023

cesare pavese / passarei pela praça de espanha

 
 
O céu estará límpido.
As ruas abrir-se-ão
sobre as colinas de pinheiros e pedra.
O tumulto das ruas
não modificará esse ar imóvel.
As flores salpicadas
de cores, que há nas fontes,
piscarão os olhos como mulheres
divertidas. As escadas
os terraços e as andorinhas
cantarão ao sol.
Abrir-se-á aquela rua,
as pedras cantarão,
o coração baterá em sobressalto
como a água nas fontes –
será esta a voz
que subirá as tuas escadas.
As janelas saberão
o valor da pedra e do ar
matinal. Abrir-se-á uma porta.
O tumulto das ruas
será o tumulto do coração
na luz perdida.
 
Serás tu – imóvel e clara.
 
 
                   28 de Março de 1950
 
 
 
cesare pavese
virá a morte e terá os teus olhos (11 Março-11 Abril, 1950)
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021
 



03 agosto 2023

edmundo de bettencourt / nebulosa



 

Certo passado audaz sempre revive,
apenas, sob um céu menos escuro.
Quem vive para o futuro,
já o vive!
 
Futuro!
Quando te posso ver, por ti, plena aurora,
condena-te a presença:
és este agora
que possuo
como a abelha suga a rosa…
e sem que o resto me importe.
 
Mas ante sou depois, ver-te ou pensar-te
é ver uma nebulosa
– é como pensar na morte.
 
 
 
edmundo bettencourt
o momento e a legenda (1917-1930)
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999
 



 

02 agosto 2023

a. dasilva o. / nossa senhora do abs

 



 
Nossa senhora do absinto
e seus virgos marujos
abismossínios processados em poemas
 
Barcos de poesia
transportam
refugiados
engarrafados
 
Vejo um cadáver ao longe
 
A bela
vela do Restelo
 
Não pesco almas
Nem sou obra dum espírito superior
Nem sobre as águas caminho
Não passo dum saco de lixo
dentro da moby dik
 
 
 
a. dasilva o.
eufeme
magazine de poesia n.º 4
julho/setembro 2017
eufeme
2017



01 agosto 2023

carlos bessa / em defesa do campismo selvagem

 




 
Passei a infância a fazer campismo selvagem.
Mal via um livro acampava logo.
Um dia li não sei onde que o campismo
selvagem era mau para as minorias e fiquei triste.
Coitadas das minorias. Que seria delas sem
um pouco de comiseração? Mas como nunca
fui de igrejas, continuei a acampar onde
me apetecia. O pior é que, aos poucos,
acampar assim deixou de ser banal
e tornou-se assunto doutras minorias.
E eu, pobrezinho, lá tive que ou ficar
em casa ou passar a dormir na pensão.
 
 
 
carlos bessa
telhados de vidro n.º 11
novembro 2008
averno
2008
 
 

 

 

 


31 julho 2023

eugénio de andrade / o copo de água

 



 

Devia ser nos começos do verão, os inumeráveis jacarandás de Jerez de la Frontera estavam em flor. Nos pátios da luxuosa vivenda onde me haviam instalado (que o Governo confiscara a um riquíssimo produtor de vinhos da região por fraude fiscal, agora destinada a hospedar gente da cultura), os repuxos erguiam os seus irisados fios de água para logo os deixar cair molemente na face doutras águas cativas em grandes taças de mármore, onde já flutuavam uma ou outra flor de jacarandá. Aquele rumor, a que se misturava às vezes algum canto de ave, parecia-me então a música do paraíso.
 
Durante aqueles dias, eu ficava por ali sentado toda a manhã com os meus papéis e um copo de água, que o caseiro me punha em cima da mesa, um copo de cristal com grinaldas de flores gravadas na parte superior, poucas coisas haverá tão bonitas como um copo de água fresca no verão, mesmo quando o vidro não tem a o brilho e a transparência do cristal. O caseiro, cuja voz vinda doutro pátio me prendia a atenção com cantares andaluzes muito ornamentados, também colocava cuidadosamente à noite, na minha mesa de cabeceira, um copo de água em tudo semelhante àquele de que falei. E como lhe referisse a beleza, ele ofereceu-me, ao partir, o que estava no meu quarto, como lembrança da minha passagem pela casa. É esse copo que, desde então – e já lá vão tantos anos! – tenho à cabeceira, e sempre com água fresca, como se o verão e a luz dos jacarandás durassem eternamente.
 
 
Foz do Douro, 24.3.2001
 
 
 
eugénio de andrade
inimigo rumor número 14
1º semestre 2003
livros cotovia
2003
 




30 julho 2023

josé maría zonta / tsiang lin e a tempestade

 
 
Passo bem com a tempestade
 
embora esteja claro que, no final, me destruirá
e terei que reconstruir-me com o que restar na praia, madeira,
caracóis, fogueiras apagadas
 
e animais que já não sabem se são da terra, do ar ou do mar.
 
Já não seria eu, é claro, terias que ter um pouco de paciência,
poderias descarrilar-me com um beijo
 
ou engasgar-me com um rolo de sushi. Nada de grave: o pior
que poderia acontecer era não me lembrar que me amas.
 
Porque nenhuma tempestade me fará esquecer que te amo.
 
 
 
josé maría zonta
tradução de élia calvo
nervo/1
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018




 
 
 

29 julho 2023

dennis cooley / eles sofrem de má circulação

 



 
já alguma vez vos escutastes a vós mesmos
é verdade que nunca escutais ninguém
          mas por que não tentais para variar
ficar acordados e ver o que acontece para variar
 
 
vós nessas vossas celas monásticas nessa vossa comunhão de antos
alguma vez vos ocorreu como sois onanistas
como sois dados a poupanças poupar isto poupar aquilo
o quanto sois guiados por lucros pregais a re
tenção de depósitos esse cu forreta essa economia de sangue
quero dizer tendes já montes de hemorroidas & isso não chega
é preciso ter mais até onde chega essa sede de sangue
vós & a vossa pena capital
 
 
sofreis de má circulação varizes
incham essas barrigas de sapo de juros tingidos de sangue azul
claro que há mau sangue entre nós que é que
quereis vós e a vossa má língua como fazeis estalar
o porta-moedas os lábios apertados púrpuros & presumidos
quase gritam há uma terrível
obstipação precisais de soltar-vos
vós & as vossas luas cintadas
essa persistência parva & presa com ligas
 
 
precisais de pôr as coisas em circulação estais a morrer
gangrenados do coração envilecido & cartilaginoso
precisais de comer o meu corpo para vos fortificardes
mais cedo ou mais tarde havereis de comer
as minhas palavras minhas senhoras & meus senhores palavra
da forma que comeis dos outros as suas escudelas de sangue
 
 
apenas pode significar uma coisa os pequenos espíritos vis
que amealhais fazem-vos temer a inflação a maré vermelha
o raide vermelho quando fingindo ser uma flor
de parede sois reconhecidos como o banco de sangue
ambulante que na verdade sois sujeito a levantamentos
adiantamentos nacionalizações impostos a sin
taxe de renovação todas as purgas não temais
alinhai comigo eu hei-de salvar-vos
de vós mesmos caros cidadãos
 
 
 
in Seeing Red. Winnipeg: Turnstone Press, 2003, pp. 115-116
 
 
 
dennis cooley
tradução de manuel portela
relâmpago
revista de poesia
nr. 17/10 2005
a tradução de poesia
fundação luís miguel nava
2005




28 julho 2023

alexandre sarrazola / café mounir

 
 
em torno da praça e de seu solitário cedro em círculos cegos
          caminhavam os velhos
a sineta de um mendigo e a obstinada fuga à palavra (seus
          eufemismos todos);
na mesa do Café Mounir, hoje à chuva, o lugar-comum do meu chá
          por beber
um engulho no telefonema breve: a voz do teu filho a dizer-me que
          quiseste ficar
no lugar em que a terra se te encostou ao peito largo de cedros faias
          e aveleiras
 
 
coxeavam em círculos ainda assustados, sempre de mãos dadas, pela
          praça do minarete
engalanada com reclames luminosos em línguas nazarenas; um cão
          cego à minha beira
submergiam do aquário índigo das ruas (olhos ao alto) e cegos
          jamais se perdiam
– sob as luzentes águas da montanha – de mãos dadas andavam;
          um cão à tua beira
 
 
eu pousava o auscultador e o fumo subia da minha boca para um
          retrato de Hayworth
pendurado em frente ao pórtico da esplanada, por detrás da
          teleboutique e das revistas:
e tu com ele para o canídeo dorso do céu – só esta noite – órfão
          de estrelas
 
 
 
alexandre sarrazola
resumo, a poesia em 2013
assírio & alvim
2014
 




27 julho 2023

ricardo gil soeiro / visita nocturna



 
Às vezes, em navegáveis noites de
luar, acordo dentro dos teus sonhos.
E se assim te invado, sem desculpa,
nem pudor, a intimidade violada,
é para dizer-te num sussurro que
sou bem real, não essa imagem
gasta de boneco alado, viajando
em imperceptíveis caudas de cometas.
Com passos de veludo, para não ser grande
o sobressalto, percorro em câmara lenta
os corredores da tua alma adormecida,
plantando a semente de promessas adiadas.
De tudo me sirvo: deixo postais de viagem,
triviais fotografias e até ridículas cartas de amor.
Em vão procuro convencer-te de que existo,
à margem silenciosa da história dos humanos.
Terminada, porém, a noctívaga expedição,
a verdade é que tudo fica na mesma:
e já que assim te esqueces de mim,
apressar-me-ei a apagar sem remorsos
os vestígios da breve passagem sonâmbula.
Quando, esquecido, regressares das estrelas
mais tardias, reconhecerás, afinal, que terei
sido sempre eu a fiel morada que buscavas.
Então, e só então, perdurarei eu, mortal e
imperfeito, no rasto de cinza que deixares.
 
 
 
ricardo gil soeiro
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015