11 julho 2023

claudio rodríguez / alta jorna

 



 

Feliz quem um bom dia sai humilde
e segue pelas ruas, como em tantos
dias da sua vida, e não o espera
e, súbito, o que é isto?, olha para cima
e vê, encosta o ouvido ao mundo e ouve,
caramba, e sente içar-se entre os seus passos
o amor da terra, e continua, e abre
a sua oficina real, e nas suas mãos
luz limpo o seu ofício, e no-lo entrega
com o coração porque ama, vai ao trabalho
a tremer como um rapaz que comunga,
mas sem caber na própria pele, e quando
se apercebe finalmente do simples
que foi tudo, e já com a jorna ganha,
volta para casa alegre e sente alguém
a segurar-lhe a aldrava, e tem razão.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019




10 julho 2023

anna akhmatova / elegias do norte

  
(5)
(sobre os anos 10)
 
 
E nenhuma infância cor-de-rosa…
Nem pequenas sardas, nem ursinhos, nem anéis de cabelo,
Nem tias bondosas, nem tios aterradores, nem mesmo
Amigos entre pequenas pedras de rio.
A mim própria desde o próprio início
O sonho de alguém parecia ou o delírio
Ou o reflexo em espelho alheio,
Sem nome, sem carne, sem razão.
Já sabia a lista dos crimes
Que devia cometer.
E eis que, andando qual sonâmbula,
Entrei na vida e assustei a vida:
Diante de mim estendia-se como um prado,
Onde outrora passeava Proserpina,
Diante de mim, sem raízes, sem jeito,
Abriram-se portas inesperadas,
E saíam gentes e gritavam:
«Ela chegou, ela por si própria chegou!»
Mas eu olhava-os com espanto
E pensava: «Perderam o juízo!»
E quanto mais me elogiavam,
Quanto mais me admiravam,
Mais medo me dava neste mundo viver
E mais me apetecia despertar,
E sabia que pagaria muito caro
Na prisão, no túmulo, no manicómio,
Em qualquer lugar onde devem acordar
Os como eu – mas continuava a tortura da felicidade.
 
4 de Julho de 1955
Moscovo
 
 
 
anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003





09 julho 2023

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
228
 
Neo-apocalipse: Quando a população do mundo tiver aumentado tanto que o seu peso ultrapasse todas as leis conhecidas, então tudo se soltará da superfície da terra e os próprios seres que hoje eu me admiro de não ver cair pelo espaço fora irão cair ainda mais infinitamente pelo espaço de não-ser.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006






08 julho 2023

fátima maldonado / tríptico viril

  
1
 
Imigrantes partíamos
Em busca da fortuna
Num barco chamado «Boa Nova».
Suportavas-me em cheio
no peito aberto
um vento em risco
naufragava
onde Tiepolo propusera
outras nuvens.
A quilha abria o mar
que se dobrava.
Era preciso alimentar
um filho
os olhos forçavam
o vestido
e na fímbria da saia
a denúncia das folhas.
Ao entregar-te a sopa
abriu-se-te a camisa
e um rastilho de pele
sitiou-me a cabeça.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
três poemas sacros e um tríptico viril
averno
2021




07 julho 2023

fiama hasse pais brandão / lisboa sob névoa

 



 
Na névoa, a cidade, ébria
oscila, tomba.
Informes, as casas
perdem o lugar e o dia.
Cravadas no nada,
as paredes são menires,
pedras antigas vagas
sem princípio, sem fim.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




06 julho 2023

fernando alves dos santos / pela beira do mar

 
 
Pela beira do mar ando
suspenso de areia
segredada nas palavras
eco de convívios
sem promessas sem finalidades.
Diz-me o mar responsável
pelas mesmas vozes
pelas repetidas cores
pelas iguais névoas
que entre as areias e os limos
vivem o desespero.
Afronto com as virtudes
que acodem à minha voz
e pelo mar se imitam
no meu entendimento.
– O meu trabalho é pescar a semente
às vezes informe mas sucessiva.,
às vezes paradoxo da razão,
clara, acentuada, humana
nova dimensão do mar.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005
 





05 julho 2023

luís quintais / ética

 



 
Vou falhando as pequenas coisas
que me são solicitadas.
Sentindo que as ciladas
se acumulam cada vez que falo.
Preferi hoje o silêncio.
A ausência de equívocos
não é partilhável.
No inegociável deste dia,
destituo-me de palavras.
Deixa-nos demasiados sós,
visitados pelo pensamento.
 
 
 
luís quintais
lamento
livros cotovia
1999



04 julho 2023

olga ivanova / encontro-me comigo todos os dias

 
 
Encontro-me comigo todos os dias
Nunca me deixo sozinha a mim mesma
Não fico nem um segundo longe da minha vista
Por isso não consigo compreender
O que pode ter acontecido
A este rosto
Que me devolve o olhar
A partir destas velhas fotografias.
 
 
 
olga ivanova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 


03 julho 2023

joão pedro grabato dias / a arca

  
XII
 
Poderemos então ser simples como
as leis do universo, simples como
o nascer e viver e o morrer
simples como sempre o desejamos
simples como um esperma derramado
dentro ainda da órbita do desejo
simples como um fruto consumido
no perímetro da sede, ou denso mosto
ingurgitado num tempo de riso
logo após o desejo e aquém do tédio.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021





02 julho 2023

rosa alice branco / amor cão

  
 
                                       Num dia frio de Inverno,
                                             observei a seguinte cena
 
 

A pele renova-se tão pouco
longe dos centros urbanos. O vento
que vem do mar evapora-se nas ruas desertas
onde alguém escreveu o meu nome em sal e escamas,
um pedinte na boca do metro e o cão sentado
como se soubesse que os seus dias são ao desbarato
enquanto o vagabundo esboça umas notas
na garganta cheia de pigarro. Um chapéu com
algumas moedas. Ser dono requer alguma propriedade,
neste caso feita de moedas baratas. É visível
que ambos têm a boca escancarada de outras fomes.
Tudo depende da linha: amarelo, azul, malmequer.
Bem! Nem tudo pode ser azul, ninguém nos prometeu
nomes como «felicidade». Por isso prepara-te
para esta hora em que o metro regressa vazio
sem uma paragem que abrigue as bocas no amor.
 
 
 
rosa alice branco
amor cão
e outras palavras que não adestram
assírio & alvim
2022





01 julho 2023

antónio pedro / igual

 
 
Eu já nem sei quem sou. Se o soube um dia
Foi um engano leve de momento:
Vi através de mim um pensamento,
E imaginei que já me conhecia.
 
Eu não sinto na alma um só tormento,
Nem a dor – é mentira – me assedia,
Só uma calma imensa anestesia
O meu crime maior: o sentimento.
 
E eu posso lá dizer que sei quem sou!
Nunca mudei, a vida não mudou.
Eu hei de ser eternamente igual…
 
Nasceu a minha mágoa só de mim…
A minha vida há de seguir assim
E hei de ser sempre o mesmo por meu mal!
 
 
 
antónio pedro
exílio d’ alma
poesia (1926-1929)
edições cosmorama
2016
 



30 junho 2023

juan manuel bonet / escrever

 
 
Escrever – como se nada fosse importante –
o simples passar das horas
sentado na esplanada de um café
de uma província espanhola.
Escrever, como se estivesse escrito
que o ruído dessas chávenas no mármore
tivesse que passar o arroio límpido
de uns versos.
Escrever, como se nada fosse.
 
 
 
juan manuel bonet
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




29 junho 2023

paul bowles / cena VII

 
 
Secar é a única missão do sol.
Não é o prazer dos insectos ou o chicote dos morcegos.
A salgada erupção depois do amor,
Que sabes tu dessas coisas, tu que o devias saber?
O fogo lento, o banho dormente,
A tua ignorância do porvir, a tua surda bondade.
Os farrapos do sol esvoaçam para ferir os teus olhos.
A cama é um refúgio, mas há mosquitos no quarto.
Ranger de dentes, ausência de lágrimas, inércia.
Um forte abraço, nenhuma faca, a tua falsa surpresa.
O sol movia-se, e a terra, noutros tempos.
Agora os abutres voam muito alto, mudos, sobre os sinos.
 
 
                                                                              1940
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008