01 março 2023

joan margarit / fascinante inverno

 



 

As papoilas vão desaparecendo,
eliminadas como ervas daninhas.
Em breve já se não prolongarão
as rubras pinceladas do vento pelos campos de trigo.
Quem poderá entender um dia
os quadros de Van Gogh?
Habito ainda um mundo familiar,
embora subtis mudanças já me avisem:
não voltará a ser o meu.
Não é nenhum inferno: permite compreender.
Vem o esquecimento, tranquiliza.
E volta, volta sempre, a alegria.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




28 fevereiro 2023

pier paolo pasolini / apontamento

 
 
Por que existe a poesia lírica? Porque só eu,
e mais ninguém no meu lugar, sei quais são as
                                            longas tradições
da dor que nasce da cor do ar que escurece;
a tarde e as nuvens anunciam, juntas, a noite
                                                  e o Inverno.
Que olhos se enchem desta triste luz a não ser
                                                      os meus?
 

 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




27 fevereiro 2023

joaquim manuel magalhães / a tolerância exige a reciprocidade

 



 

                     *
 
A tolerância exige a reciprocidade.
«Tenho tão presente
a grande dor» (Camões).
 
Um celerado pénis um torso
a clavícula parva de argumento,
nele o monopólio não intimava,
voga numa carapaça de trégua e linho
fluvial, em brejo de polimento.
Inculcaria turgidez a um impotente.
 
Melros em voo rasante.
A ilharga na polpa de cada dedo.
O meu rancor prega nele uma herança
de alevanto. Um adeus insensato
no índice da ternura.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
canoagem
relógio d´água
2021




26 fevereiro 2023

herberto helder / e eis súbito ouço

 



 

e eis súbito ouço num transporte público:
as luzes todas acesas e ninguém dentro de casa:
sete ou nove metros de labaredas,
e nem um grito, um sussurro, uma palavra:
só a casa ocupada pela grandeza da estrela,
a grandeza primeira
 
 
 
herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013





25 fevereiro 2023

a. c. swinburne / encontro



 
Se o amor fosse o que é a rosa,
     E eu fosse como uma folha,
As nossas vidas cresceriam juntas
No tempo sombrio ou no tempo de uma canção,
Nos campos ventosos ou nos cercados floridos,
     No prazer verde ou na dor sombria.
Se o amor fosse o que é a rosa
     E eu fosse como uma folha.
 
Se eu fosse o que são as palavras
     E o amor fosse como uma melodia
Com um duplo som e um único
Deleite confundir-se-iam os nossos lábios
Com alegres beijos como são os pássaros
     Que procuram a suave chuva do meio-dia.
Se eu fosse o que são as palavras
     E o amor fosse como uma melodia.
 
Se tu fosses a vida, meu amor,
     E eu, o teu amor, fosse a morte,
Brilharíamos e apagar-nos-íamos juntos
Antes de Março amenizar o tempo
Com o junquilho e o estorninho
     E o fecundo alento das horas.
Se tu fosses a vida, meu amor,
     E eu, o teu amor, fosse a morte.
 
Se tu fosses serva da dor
     E eu fosse o pajem da alegria,
Brincaríamos durante a vida e as estações
Com olhares amorosos e pérfidos,
Com lágrimas da noite e da manhã
     E os risos de donzela e adolescente.
Se fosses serva da dor
     E eu fosse o pajem da alegria.
 
Se tu fosses a dama de Abril
     E eu fosse senhor em Maio,
Arremessaríamos flores durante horas
E colheríamos flores durante dias
Até que o dia fosse sombrio como a noite
     E a noite como o dia fosse luminosa.
Se tu fosses dama de Abril
     E eu fosse senhor em Maio.
 
Se tu fosses a rainha do prazer
     E eu fosse o rei da dor,
Perseguiríamos juntos o amor,
Arrancaríamos as suas penas para voar
E daríamos ritmo aos seus pés
     E refrearíamos a sua boca.
Se tu fosses a rainha do prazer
     E eu fosse o rei da dor.
 
 
 
a. c. swinburne
poemas
tradução de maria Lourdes Guimarães
relógio d’ água
2006
 


 


24 fevereiro 2023

marcos foz / arca e usura

 
[…]
 
chegar a terra incógnita e
de mãos apertadas atrás das costas
explicar a nós mesmos que daí adiante
acabaram os desenhos no trilho poeirento
 
é tempo de tirar os açaimes às ideias
que moldam o caminho e de começarmos
a iniciação ao labor da batota espreitando
um pouco mais pelo limite da venda
 
com os sapatos a espelharem a barbárie
de quem se perdeu propositadamente
um moleiro apanha-nos entre a sombra
do moinho e o toque das buganvílias
 
pergunta-nos o ofício
e cegos de sol não temos oferenda convincente
até que o velho pergunta se somos poetas
que é hábito irem ali alguns amigos da sua filha
 
um rebuçado-surpresa invade-nos o palato
como se durante o sono nos enchessem a
boca de sargaço respondemos que não muito obrigado
– espero somente o vento certo para continuar
 
 
 
marcos foz
arca e usura
edição do autor
2019





 

23 fevereiro 2023

ángél gonzález / aniversário

 
 
Reparo nisto: em como me vou tornando
mais dúbio, mais confuso,
dissolvendo-me num ar
quotidiano, tosco
farrapo de mim, esfiapado
e de punhos esfolados.
 
E compreendo: vivi
mais um ano, e isso é muito duro.
Bater o coração todos os dias
quase cem vezes por minuto!
 
Para viver um ano é preciso
morrer muitas vezes muito.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 


22 fevereiro 2023

anna akhmatova / no quadragésimo ano

 



4.
 
Era eu a que sabia da insónia
Todos os precipícios e veredas,
Mas esta é um tropel de cavalaria
Ao uivo de clarim que ficou selvagem.
Entro em casas esvaziadas,
No recente aconchego de alguém.
Tudo silencioso, só as brancas sombras
Nos alheios espelhos flutuam.
E lá na neblina o quê – a Dinamarca,
A Normandia ou dantes
Eu própria estive aqui,
E isto – uma reedição
Dos minutos para sempre esquecidos?
 
1940
 
 
anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003 




21 fevereiro 2023

juan manuel villalba / teoria do caos

 
 
Tudo começou cedo, na cozinha.
O café estava frio
e o sal ocultou-se no açucareiro.
Passou uma noite má, os ruídos não deixaram
dormir a sua mulher e as crianças tinham febre.
Do céu a chuva ameaçava
negar a promessa de um dia bom.
Há mais de um mês que procurava emprego.
Mandou um murro na mesa;
o copo caiu ao chão
e o café manchou-lhe as calças.
Sentada, com as mãos na cara,
a mulher desatou num pranto seco.
Gritou: não posso mais, esta casa é minha
e sou apenas a escrava de um escravo,
vai-te, deixa-me só com a porca da minha vida.
As crianças começaram a chorar no quarto.
Então explodiu, voltou a mesa,
e na mulher deixou as marcas
roxas de uns murros: um resumo sucinto
da simples teoria do fracasso.
Saiu de casa. Entrou na rua.
A chuva atravessava o ar parado.
Apenas pensava como evitar os charcos.
 
 
 
juan manuel villalba
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 
 


20 fevereiro 2023

juan vicente piqueras / história universal

 



 
Um homem nasce chora cresce ri
sofre e faz sofrer caminha canta
tem sede fome frio medo pressa
perde-se transborda arde sorri.
 
Um homem sozinho no meio da noite
assobia para amansar os monstros que o habitam.
 
Abraça empurra mata beija morre
cansa-se de si mesmo apaixona-se
dá-se à vida sabe que se acaba
que escorre o que é por entre os dedos.
 
Um homem olha o céu as nuvens e diz-se
em silêncio que breve
que bela e fugidia é, foi, a vida.
 
 
 
juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019




19 fevereiro 2023

josé de almada negreiros / itinerário sobre o joelho

 


 

Nascer
vir a este mundo
é acordar legível do sono eterno.
Maravilhoso (e é) que seja acordar
traz mistura pessoal:
preferia não ter nascido.
Fazemos parte de animal perpétuo
que exige o nosso serviço dele.
Mas um é passageiro
tem que inventar optimismo e graça
e permanecer acordado o animal perpétuo.
Nascemos órgão e seremos, afinal, o todo do organismo.
Personalidade não é senão o ímpeto para nos deixarmos de nascidos intactos
é condição primeira do ser vivo eterno que somos.
Nasce segunda vez o que morre a morte primeira.
Nasce-se segunda vez o ser vivo eterno que somos.
Iremos por onde não há adesão possível à segunda vida
porta do eterno.
Depois é o silêncio que fala
a paz que nos esperava.
 
 
 
josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017




18 fevereiro 2023

jorge luís borges / bairro norte

 
 
Esta declaração é um segredo
vedado plo descuido e a inutilidade,
segredo sem mistério ou juramento
que apenas é assim por indiferença:
hábitos de homens e de anoiteceres detêm-no
e preserva-o o esquecimento, que é o modo mais pobre do mistério.
 
Houve um tempo em que o bairro era amizade,
um caso de aversões e afectos, como as outras coisas do amor;
mal persiste essa fé
nuns factos distantes que hão-de morrer:
na milonga que lembra as Cinco Esquinas,
no pátio como firme rosa sob os altos muros,
no letreiro desbotado que ainda diz La Flor del Norte,
nos rapazes de guitarra e baralho de cartas,
na trôpega memória de algum cego.
 
Este disperso amor é o nosso desanimado segredo.
 
Uma coisa invisível faz perecer o mundo,
um amor não mais amplo que uma música.
O bairro afasta-se de nós,
as baixas varandinhas de mármore não enfrentam o céu.
O nosso carinho acobarda-se em tédios,
e é outra a estrela de ar das Cinco Esquinas.
 
Mas sem ruído e sempre,
em coisas mudas e perdidas, como estão sempre as coisas,
no comerciante de borracha, com o seu listrado céu de sombra,
na taça que recolhe o primeiro e o último sol,
perdura este facto amistoso e prestável,
a lealdade obscura que os versos declaram:
o bairro.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. I
caderno san martín  (1929)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




17 fevereiro 2023

roberto juarroz / também traímos a água

 



 
Também traímos a água.
 
A chuva não se reparte para isso,
o rio não corre para isso,
o charco não se detém para isso,
o mar não é presença para isso.
 
Novamente perdemos a mensagem,
as vogais abertas
da linguagem da água,
a sua inaudita transparência palpável.
 
Nem sequer soubemos
beber a transparência.
Beber algo é aprendê-lo.
E aprender a transparência é começar
a aprender o invisível.
 
 
 
roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018