01 fevereiro 2023

francis ponge / o pão



 

A superfície do pão é maravilhosa primeiro por causa desta impressão quase panorâmica que dá: como se se tivesse ao dispor, sob a mão, os Alpes, o Taurus ou a Cordilheira dos Andes.
 
Assim pois uma massa amorfa enquanto arrota foi introduzida para nós no forno estelar, onde, endurecendo, se afeiçoou em vales, cumes, ondulações, ravinas… E todos esses planos desde então tão nitidamente articulados, essas lajes finas em que a luz aplicadamente deita os seus lumes, – sem um olhar sequer para a flacidez ignóbil subjacente.
 
Esse lasso e frio subsolo que se chama o miolo tem o seu tecido semelhante ao das esponjas: folhas ou flores são aí como irmãs siamesas soldadas por todos os cotovelos ao mesmo tempo. Logo que o pão endurece essas flores murcham e contraem-se: destacam-se então umas das outras e a massa torna-se por isso friável.
 
Mas quebremo-la, calemo-nos: porque o pão deve ser na nossa boca menos objecto de respeito do que de refeição.
 
 
 
francis ponge
le parti pris des choses
alguns poemas
tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996


 



31 janeiro 2023

emanuel jorge botelho / retrato de jean genet por leonor fini, em 1950

 



 
os dias eram um
grande clarão de vinagre,
vê-se no teu rosto,
ardido de ir morrendo
sobre um chão raso de aspas.
 
olhas para cima
ou para a ponta de uma chama
como se por aí chegasse,
quase intacta,
a asa de todas as palavras.
 
há tanto frio no traço que te deram,
e até se ouve o teu coração.
 
 
 
emanuel jorge botelho
resumo
a poesia em 2013
assírio & alvim
2014
 



30 janeiro 2023

alberto pimenta / o dia tem 24 horas

 



 
o dia tem 24 horas
 
os canais de televisão
em conjunto
fazem delas perto de 100
 
a banca
para organizar
os seus assaltos súbitos
à bolsa
e vice-versa
trabalha em conjunto ou em separado
mais de 300 horas por dia
que depois
podem render
mais de cem mil salários anuais
de cem mil trabalhadores
 
os curso de balística
do exército e da polícia
ocupam entre todos eles
muitas centenas de horas
por dia
a treinar
a fatalidade e o erro científicos
 
para derrotarem o adversário
em décimas de segundos
ou menos
os atletas treinam
sem trégua
milhares de horas por ano
durante vários anos da sua vida
 
o homem aproveita
engenhosamente
o tempo
e nos intervalos
produz os novos escravos
do novo tempo
 
os donos dele
sucedem-se
 
o tempo tem dono
e é hereditário
 
 
 
alberto pimenta
resumo
a poesia em 2012
assírio & alvim
2013
 




29 janeiro 2023

david teles pereira / pequena elegia da memória

 


 

Não nego que me sinto vencido
pela tua distância,
uma pedra e um pouco de gelo no sangue
uma violeta na primavera desta morte em flor.
A aflição não passa,
ainda que eu permaneça na defensiva, dia após dia,
na retaguarda
do teu afecto.
 
Tocar-te o músculo, tal como a um livro de biblioteca.
Mas agora, o que se mantém vivo e fresco
No teu estojo de ossos? Assim, dizem,
Se retira aos nossos restos, ainda que dignos,
O nervo e a tentação do teu nome.
 
Não dizer o teu nome, nunca. Não pode dar-se
tesouro eterno assim a mãos que me recusaram.
Quanto mais morres, mais difícil é dizer-te,
 
mais fácil é dizer apenas… corpo.
 
 
 
david teles pereira
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012
 



28 janeiro 2023

josé carlos barros / as páginas dos romances

 




 

Arriscávamos o salto mortal
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa.
As obras da escola eram a nossa perdição:
 
as fasquias de alumínio, o ondulado de luzalite
das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados
 
à tarde erguíamos muros no combarro com tijolo
de quinze, marcávamos com estacas de pinho
o perímetro exterior do pavilhão, ligávamos a betoneira
a olhar em sobressalto os movimentos oscilatórios
 
do balde. Penso que era assim. Às vezes
pergunto o que fica dos livros, o que pertence
e não pertence à literatura, o que acrescentaram
à nossa vida as páginas dos romances.
 
 
 
josé carlos barros
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010






27 janeiro 2023

adil jussawalla / o local da bomba

 
 
Como se os corpos quebrados fossem os ombros
Famintos de uma rapariga; como se o cascalho poeirento
Fosse o seu cabelo em estrela-do-mar sobre uma almofada,
Com os meus dedos abriria caminho por entre o saibro.
 
Forçaria a entrada dos meus ossos nos ombros
Ossudos destas casas com cicatrizes, como
Passo por cima dos seus telhados apinhados como sardinhas, escon-
                    didos;
Poderia alcançar, agarrar e limpar a sua lata gordurosa.
 
Mas as crianças atirando pedras, entrincheiradas atrás dos montes de
                    terra,
Gritam e matam e amarrotam-se como envelhecidas folhas de jornal,
Insatisfeitas com imaculados céus de paz,
E eu começo a contar os meus inimigos.
 
A violência é uma cultura descoberta em pátios de recreio.
As cidades caem para que deixem respirar as suas crianças.
 
 
 
adil jussawalla
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de cecília rego pinheiro
assírio & alvim
2001




 
 

26 janeiro 2023

antónio pedro / devagar

 
 
XIX
O silêncio tem coisas complicadas!
– Ando perdido à roda de mim mesmo
Em horas demoradas…
E os mortos são a esmo
De mãos dadas…
 
Caio dentro de mim como dum poço!
(Enão há nada apenas porque há tudo)
Não adivinho nem ouço,
Somente sinto macio…
 
Que é o silêncio, um vazio
Poço
De veludo.
 
 
 
antónio pedro
devagar 1929
poesia (1926-1929)
edições cosmorama
2016
 




25 janeiro 2023

juan luis panero / autobiografia

 
 
Uma casa vazia, outra demolida,
uma criança morta a quem contam histórias,
fantasmas despedidos que se desvanecem,
cinza e osso, pedras derrotadas.
Quartos alugados, repetidos espaços fugazes,
as marcas dos corpos nos lençóis,
uma pesada ressaca sem destino,
vozes que ninguém escuta, imagens de sonhos.
Desnecessárias páginas, gaivotas na janela,
mar ou deserto, brancos despojos,
sinais e rostos na parede da memória.
Papilas sujas de sol no México, firmes
os olhos redondos da caveira
contemplam passado, presente, futuro,
sombras tenazes, metáforas gastas.
Olho sem ver aquilo que já vi,
informe fumo que se esfuma,
invisível mortalha debaixo de nuvens fugazes.
Fumo na noite e no súbito nada.
 
 
 
juan luis panero
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997





 

24 janeiro 2023

tahar ben jelloun / cicatrizes do sol

 
 
Tu que não sabes ler
pega nos meus poemas
e nos meus livros
 
Faz deles uma fogueira para aquecer a tua solidão
que cada palavra alimente a tua brasa
que cada sopro se perpetue no céu que se abre
 
Tu que não sabes escrever
que o teu corpo e o teu sangue me contem a história
do país
fala
 
Seria ilusão do arco-íris
ser apenas de ti
deste corpo mutilado
 
Eu lerei os livros ao contrário
para ler melhor um prado de flores sobre o teu rosto
 
Eu falarei a língua do campo e da terra
para entrar na multidão que se rebela
 
Eu desembarcarei nas feridas da tua memória
e habitarei o teu corpo que se cala
Nós anunciaremos juntos a primavera às crianças
dos terrenos baldios.
 
 
 
tahar ben jelloun
um árabe é um árabe/é um árabe, um árabe
breve antologia de poesia árabe
versões e traduções joana santos e andré simões
contracapa
2022
 
 
 

23 janeiro 2023

joan brossa / o tempo

 
 
Este verso é o presente.
 
 
O verso que acabam de ler é já o passado
– ficou para trás depois da leitura –
O resto do poema é o futuro,
que não está ao vosso
alcance.
 
 
As palavras
estão aqui, tanto faz que as leiam
como não. E nenhum poder terrestre
o pode alterar.
 
 
 
joan brossa
transversões
poemas reescritos em português
por zetho cunha gonçalves
contracapa
2021





22 janeiro 2023

pedro homem de mello / rua do paraíso

 
 
De dia
Como seria?
 
Alguém me disse: - Era estreita…
Mas por mim julgo: - Era larga.
 
Tanta saudade hoje a enfeita,
Bela e amarga!
 
Cumpriu-se nela a promessa
Da raiz do coração.
 
Era uma rua de Leça,
Onde os outros nunca vão.
 
– A Rua do Paraíso…
 
E aquele nome foi posto,
No meu peito e no meu rosto,
Com água do teu sorriso.
 
 
 
pedro homem de mello
grande, grande era a cidade… (1955)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




21 janeiro 2023

paul éluard / aurora

 



 

Do sol que corre sobre o mundo
Estou tão certo como de ti
O sol deu à luz a terra
 
Um sorriso a raiar as noites
Sobre o rosto despojado
De uma adormecida a sonhar a aurora
 
O grande mistério do prazer
Esse estranho torneio de brumas
Que nos leva a terra e o céu
 
Mas nos deixa um ao outro
Feitos um para o outro eternamente
Ó tu que arranco ao esquecimento
 
Ó tu que eu quis feliz
 
 
 
paul éluard
últimos poemas de amor
roupeiras ligeiras
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002





20 janeiro 2023

vergílio ferreira / o nada é impensável

 



326 – Não o perguntes. Basta pensar no que se perdeu não de há muito tempo até hoje. Ídolos das artes e letras, do futebol, da política, do que parecia bem ou mal. Tens razão, agora é diferente. Porque o que se sente no vento, o que se percebe na voz inaudível de um incerto aviso de morte não tem que ver com o mais e o menos, o que sobra do que se eliminou, mas com tudo o que se imaginou de toda a ordem da vida. Um homem novo está a nascer e não traz sinais do nosso sangue, do modo de se ser humano como limite de tudo o que se precisa imaginar. Será possível conceber-se um ser humano que nada tenha a ver com o ser-se homem? Um homem que se reconheça numa ordem de ser pensante e sensível? Hoje já não precisa de saber a tabuada para fazer contas, de saber ler e escrever para existir o livro e a carta, de haver amor ou simples atracção para produzir humanidade, de quaisquer regras para a consciência existir, se saber o que é isso de consciência para haver culpa ou remorso. O que se segue é ininteligível para um modo de haver entendimento das coisas. O que se segue começa no nada e o nada é impensável. Pois. Mas não te faças perguntas sobre um nada a começar. E acaba tu nos limites do que te foi pensar e sentir o justo e o injusto e tudo o mais que te ordenou o seres vivente na ordenação de tudo o que te coube. Porque amanhã nada te existe e o mundo terá portanto acabado. Não te canses a perguntar. E sê inteiro para quando a morte chegar cumprir o seu dever e tu o teu para não chegar em vão.
 
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001